FACULDADE PARAÍSO DO CEARÁ - FAP
CURSO DE DIREITO
FRANCISCO GILSON SOBREIRA DE MELO FILHO
LIMITAÇÕES ACERCA DA AUTONOMIA DA VONTADE NOS CONTRATOS DE CONSUMO
JUAZEIRO DO NORTE
2014
FRANCISCO GILSON SOBREIRA DE MELO FILHO
LIMITAÇÕES ACERCA DA AUTONOMIA DA VONTADE NOS CONTRATOS DE CONSUMO
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Direito, da Faculdade Paraíso do Ceará - FAP, em cumprimento dos requisitos necessários para obtenção do título de Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Angelo Victor
JUAZEIRO DO NORTE
2014
RESUMO
Desde a edição do Código de Napoleão, no ano de 1804, um antigo postulado permeia a teoria dos contratos: o contrato faz lei entre as partes (pacta sunt servanda). Até os dias atuais alguns operadores do Direito ainda continuam a seguir a risca essa ideia, cunhada em uma sociedade marcada pelo Liberalismo em todos os setores, inclusive no âmbito do Direito. Uma visão excessivamente ampla acerca do alcance da autonomia da vontade das partes contratantes acabou gerando uma serie de injustiças, principalmente nas relações consumeristas, passando o direito a servir como instrumento de repressão justamente as pessoas que mais precisam de sua proteção, que são aqueles que estão no polo mais vulnerável dessas relações. Essa visão não mais se sustenta atualmente, uma vez que o ordenamento jurídico pátrio permeia-se por uma série de princípios e regras que buscam, acima de tudo, a ideia de igualdade material entre as pessoas. Essas novas normas limitadoras de ordem pública têm sua força consagrada constitucionalmente e passam a limitar mais especificamente o principio da autonomia da vontade com as disposições expressas no Código de Defesa do Consumidor. O presente trabalho aborda exatamente a necessidade da imposição de limites a liberdade de contratar, apresentando, também, disposições reguladoras trazidas pelo próprio CDC.
Palavras-chave: Autonomia da Vontade das Partes; Relação de Consumo; Contratos, Código de Defesa do Consumidor.
ABSTRACT
Since the publication of the Napoleonic Code, in the year of 1804, an old premise permeates the theory of contracts: the contract is the law between the parties (pacta sunt servand). Until today some operators of law still continue to follow strictly that idea, coined in a society marked by liberalism in all sectors, including under the law. An overly broad view in the scope of autonomy of the will of the contracting parties has led to a series of injustices, especially in consumers relations, making the law as an instrument of repression to the very people who most need its protection, which are those that are in the most vunerable polo of these relationships. This view is no longer tenable now, since the legal order permeates up through a series of principles and rules that seek, above all, the idea of substantive equality between people. These new public policy standards have its strength positively valued constitutionally, dedicating itself specifically to limit the principle of autonomy of the will, with express provisions in the Consumer Protection Code. This paper addresses exactly the need for limitations on freedom of contract, showing some regulatory provisions brought by the CDC. Key-words: Autonomy of the Will of the Parties; Consumption Ratio; Contracts, Consumer Protection Code.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 4
2 AUTONOMIA DA VONTADE COMO ELEMENTO ESSENCIAL DO CONTRATO ............ 6
2.1 Conceitos preliminares ........................................................................................ 6
2.2 Conceito de Autonomia da Vontade.............................................................8
2.3 Da Evovução da Autonomia da Vontade nos Contratos............................9
2.3.1 Atual Estágio da Autonomia da Vontade nos Contratos......................19
3 A CONSTRUÇÃO DA IDÉIA DE CONTRATOS DE CONSUMO .......................... 17
3.1 Consumidor ................................................................................................. 17
3.1.1 Pessoa Jurídica Como Consumidora......................................................19
3.1.2 Equiparação ao Consumidor...................................................................20
3.2 Fornecedor...................................................................................................21
3.3 Produtos e Serviços....................................................................................22
3.4 Relação de Consumo..................................................................................24
4 AUTONOMIA DA VONTADE NOS CONTRATOS DE CONSUMO.......................25
4.1 Necessidade de Limitação da Autonomia da Vontade............................25
4.1.1 Função Social do Contrato......................................................................28
4.1.2 Princípio da Boa-Fé Objetiva...................................................................30
4.1.3 Princípio da Equivalência Material do Contrato....................................33
4.2 Das Formalidades Essenciais à Validade Dos Contratos Consumeristas De Adesão.................................................................................................................36
4.3 Das Práticas e Cláusulas Abusivas.........................................................38 5 CONCLUSÃO.........................................................................................................41
6 REFERÊNCIAS................................................................................................................43
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INTRODUÇÃO
É grande a importância de abordar o tema da autonomia da vontade nos contratos de consumo, pois se deve ter em mente a vulnerabilidade do consumidor, não podendo ficar este sem amparo, a mercê das artimanhas de alguns fornecedores que inserem em seus contratos cláusulas absurdas e, inclusive, sentem-se resguardados pelo principio da autonomia da vontade. Todavia, esquecem-se tais fornecedores que a Lei Consumerista não tolera essas atitudes, estando à lei 8078/90 e os princípios constitucionais nela inseridos acima dos postulados que simplesmente norteiam as relações meramente contratuais
A autonomia da vontade das partes sempre foi considerada uma das pedras de toque da Teoria dos Contratos. Trata-se da ideia de que pessoas livres e conscientes podem estabelecer em um contrato tudo àquilo que desejarem, sem que nenhum terceiro possa intervir nessa relação, nem mesmo o Estado.
Como corolário natural da ideia da liberdade de contratar está a o pacta sunt servanda. Segundo tal brocardo, se uma pessoa, dentro de sua liberdade, se obrigou a determinadas prestações em um contrato, suas disposições são justas e devem ser cumpridas obrigatoriamente.
Porém, a história do Direito mostra que as proposições acima formuladas não podem ser aplicadas sem seus devidos temperamentos.
O presente trabalho busca abordar de forma objetiva a necessidade de se limitar o princípio da autonomia da vontade das partes, especialmente quando se trata de relações de consumo, apresentando disposições do Código de Defesa do Consumidor que limitam esse principio na busca de uma maior proteção para a parte hipossuficiente dessa relação.
Para a concretização deste trabalho fora empregado o método de pesquisa exegético-jurídico que permite interpretar a letra da lei, bem como informações apresentadas por juristas e estudiosos sobre o tema. Utilizou-se também o método bibliográfico, fazendo uso de fontes documentais indiretas secundárias explorando doutrina de grande respaldo na seara acadêmica sob diversas formas, por meio de livros, artigos científicos e documentação oficial.
O método de abordagem desta pesquisa é o método dedutivo, visto que a análise do tema foi explanada de modo a enfatizar os aspectos gerais em
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detrimento das especificidades do tema. No que tange ao método de procedimento foi usado o monográfico, e técnica de pesquisa com base em documentação direta e indireta, através de pesquisa bibliográfica e documental.
A monografia é composta por três capítulos dispostos para o melhor entendimento no assunto.
No primeiro capítulo, Autonomia da vontade como elemento essencial do contrato, será feita, inicialmente, uma breve analise das premissas preliminares importantes (fato jurídico, ato jurídico e negocio jurídico) para se chegar a um conceito de contrato. Em seguida será abordado o conceito de Autonomia da Vontade, fazendo uma analise como esta evoluiu no decorrer do tempo nos contratos até chegar nos dias de hoje..
No segundo capítulo, A construção da idéia de contratos de consumo, é feita a analise dos sujeitos (consumidor e fornecedor) e dos objetos (produtos e serviços) que compõem uma relação consumerista, formando ao final um conceito desta.
No terceiro capítulo, Autonomia da vontade nos contratos de consumo, analisa-se a necessidade de limitação do principio da autonomia da vontade, que viria a acontecer com a maior interferência do Estado nas relações entre particulares através de leis de ordem publica que imporiam limites a este princípio, apresentando os princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva e da equivalência material, os quais relativizaram a utilização da autonomia da vontade nos contratos. Por fim, trata-se a problemática dos contratos de adesão, e as práticas e cláusulas abusivas.
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AUTONOMIA DA VONTADE COMO ELEMENTO ESSENCIAL DO CONTRATO
Neste capítulo, será feita uma abordagem histórica sobre os contratos, analisando suas classificações, características e finalidades desde Roma Antiga à atual fase do Direito.
Por conseguinte, será realizada uma abordagem geral sobre conceitos preliminares de importância para o entendimento dos contratos.
2.1 CONCEITOS PRELIMINARES
Antes de adentrar no conceito propriamente dito dos contratos, faz-se necessário fixar algumas considerações preliminares, das quais as mais importantes são sobre: os fatos jurídicos; os atos jurídicos (lícitos e ilícitos); e os negócios jurídicos.
Fatos jurídicos são quaisquer eventos, emanados ou não da vontade humana, que produzam efeitos na ordem jurídica (GONÇALVES, 2008, p. 276). São, assim, fatos jurídicos tanto a queda de um raio sobre um carro ou a aprovação de uma pessoa em um concurso público, como um contrato de compra e venda.
Dentro da conceituação de fato jurídico, destacam-se uma gama de acontecimentos, importantíssimos sob a ótica do Direito, que são emanados da vontade humana e estão aptos a criarem ou extinguirem direitos e obrigações. É exatamente esta a conceituação de ato jurídico. Assim, atos jurídicos são os atos de vontade humana capazes de produzir efeitos jurídicos, tenham ou não as pessoas intenção precípua de gerar tais efeitos.
Dentro da categoria dos atos jurídicos, que são aqueles derivados da vontade humana, existem ainda os lícitos e os ilícitos.
Os chamados atos jurídicos ilícitos são aqueles que decorrem da vontade humana, mas que são contrários ao ordenamento jurídico, gerando em regra, o dever de indenizar o prejudicado por sua realização.
Os atos lícitos que são os praticados de acordo com o Direito, podendo ser divididos em: atos meramente lícitos, atos-fatos jurídicos e negócios jurídicos.
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Os chamados atos jurídicos meramente lícitos são aqueles acontecimentos oriundos da vontade humana, que repercutem na órbita jurídica, mas que são realizados sem a intenção específica de criar ou extinguir direitos específicos. O agente simplesmente pratica o ato, por vontade própria, sem se preocupar especificamente quais efeitos dali decorrerão, como ocorre, por exemplo, com uma pintura sobre uma tela por um louco.
Os ditos atos-fatos jurídicos são o meio termo entre os atos meramente lícitos e os negócios jurídicos. Nessa subespécie, o ato é praticado com a vontade específica de criar determinados efeitos jurídicos, mas essa vontade é tida pelo direito como não qualificada.
Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2008, p.301-302) trazem exemplos referentes ao ato-fato jurídico:
Excelente exemplo de Ato-fato jurídico encontramos na compra e venda feita por crianças. Ninguém discute que a criança, ao comprar o doce no boteco da esquina, não tem a vontade direcionada à celebração do contrato de consumo. Melhor do que considerar, ainda que apenas formalmente, esse ato como negócio jurídico, portador de intrínseca nulidade por força da incapacidade absoluta do agente, é enquadrá-lo na noção de ato-fato jurídico, dotado de ampla aceitação social.
Nessa situação de compra e venda realizada por uma criança, no caso de um objeto de pequeno valor, a vontade da criança não é reconhecida pela lei como apta, por si só, a gerar direitos, mas na prática a situação em muito se aproxima a de uma contratação, reconhecendo-se então a validade do negócio jurídico.
Já os Negócios Jurídicos são uma espécie de atos jurídicos em que a vontade humana é qualificada e busca a produção de específicos efeitos jurídicos. Aqui o declarante da vontade procura uma específica relação jurídica, não se contendo em simplesmente enunciar a sua vontade, mas buscando uma determinada consequência com sua manifestação. Existe uma verdadeira regulamentação da autonomia privada nos negócios jurídicos.
É exatamente dentro da classificação de negócios jurídicos que vamos, finalmente, achar os contratos, que são uma espécie de negócio jurídico bilateral, necessitando para sua formação da manifestação de vontade de mais de uma pessoa.
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Dessa forma, o contrato é conceituado por Carlos Roberto Gonçalves (2010, p.22):
O contrato é uma espécie de negócio jurídico, que depende para a sua formação, da participação de pelo menos duas partes. É, portanto, negócio jurídico bilateral ou plurilateral. Com efeito, distinguem-se, na teoria dos negócios jurídicos, os unilaterais, que se aperfeiçoam pela manifestação de vontade de apenas uma das partes, e os bilaterais, que resultam de uma composição de interesses. Os últimos, ou seja, os negócios bilaterais, que decorrem de mutuo consenso, constituem os contratos. Contrato é portanto, como dito, uma espécie do gênero negócio jurídico.
Cabe ainda destacar o conceito de contrato exposto na obra de Caio Mário da Silva Pereira (2006, p.14): “Com a pacificidade da doutrina, dizemos então que o contrato é um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos”.
Obtido o significado do instituto contrato, torna-se salutar uma conceituação do que viria a ser relação consumerista, a qual possui importância fundamental para o desenvolvimento deste trabalho
2.2 CONCEITO DE AUTONOMIA DA VONTADE
Pode-se dizer que a autonomia da vontade das partes fixa a ideia de que a ordem jurídica concede aos indivíduos a liberdade para contratar segundo os seus interesses, os quais devem ser respeitados contra eventuais vontades futuras das partes, em razão da estabilidade adquirida com a assinatura dos contratos (pacta sunt servanda).
Trata-se de uma garantia dos indivíduos contra ingerências desarrazoadas do Estado. Protege-se, em suma, a possibilidade de se fixar livremente o conteúdo do contrato, o qual será realizado nos moldes do princípio da liberdade contratual.
Caio Mario da Silva Pereira (2006, p. 24) aponta que a liberdade de contratar se concretiza nos quatro momentos fundamentais da existência do contrato. O autor leciona que existe, em primeiro lugar, a liberdade de contratar ou não. O individuo não é obrigado a firmar contrato com ninguém e, portanto, só o firmaria se quisesse.
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Em um segundo plano, a liberdade de contratar é vista como a liberdade de escolha do indivíduo quanto à outra pessoa que irá figurar no contrato. Nesse ponto só se contrataria com quem quisesse.
Em um terceiro momento, a liberdade de contratar significa a possibilidade de se escolher efetivamente quais cláusulas conterão o contrato, se estas, não forem de interesse do indivíduo, ele não terá obrigação de contratar.
Em um quarto, e último, momento, segundo o autor, a liberdade de contratar confere a qualquer das partes, após a conclusão do contrato, o direito de exigir-lhe o cumprimento, podendo valer-se da jurisdição estatal para se fazer cumprir a vontade expressa no momento de constituição do contrato.
Em arremate, Caio Mário Pereira da Silva (2006, p. 26) finaliza afirmando que: “Em suas linhas gerais, eis o princípio da autonomia da vontade, que genericamente pode enunciar-se como a faculdade que têm as pessoas de concluir livremente os seus contratos”.
Essa autonomia conferida aos contratantes, que, em um primeiro momento, parecia à solução para que o Estado não mais interferisse nas relações entre os particulares, com o passar do tempo se tornou responsável por uma das principais formas de repressão social, pois adquirindo os contratos força vinculante (pacta sunt servanda) na sua conclusão, negava-se as partes toda a possibilidade de afastar-se do avençado (PINHEIRO, 2002, p. 181).
2.3 DA EVOLUÇÃO DA AUTONOMIA DA VONTADE NOS CONTRATOS
Antes de se adentrar especificamente no exame dos contratos na atualidade, faz-se necessária, para melhor compreensão do tema, uma breve análise acerca da sociedade e do modo de produção no decorrer da Idade Média, Moderna, Contemporânea e na Pós Revolução Industrial.
Durante os quase mil anos da chamada Idade Média, o direito contratual foi sofrendo progressiva mudança. Apesar de ainda persistir a obrigatoriedade do excessivo formalismo para a realização dos contratos, o costume dos povos passou a ser o de apenas mencionar, no ato contratual, a realização daquelas formalidades. Caio Mario da Silva Pereira (2006, p.17) noticia que:
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[...] era corrente entre os escribas que reduziam os escritos as convenções, a pedido do interessados, consignarem que todos os rituais haviam sido cumpridos, mesmo quando não o tivessem sido.
Com essa situação, ficava patente que se dava mais importância ao ato, em si, do que às formalidades exigidas.
Com o fim da Idade Média, ressurge com maior força e importância o comércio a nível global. Antigas rotas comerciais são reativadas e os investimentos dos comerciantes passam a crescer, assim como a sua lucratividade com as transações comerciais.
Entretanto, apesar de a classe burguesa, representada pelos comerciantes, ter se fortalecido bastante nessa época da História Mundial, a sociedade ainda estava presa a uma série de amarras sociais, as quais bloqueavam a ascensão econômica dessa emergente classe, que com seus tributos acabavam por sustentar a mordomia da nobreza e do clero.
Não demorou muito para que a situação se tornasse insustentável.
Como expressão máxima do movimento burguês, tem-se a Revolução Francesa, que baseada nos seus três princípios fundamentais (liberdade, igualdade e fraternidade) se destacava por buscar a redução da participação do Estado em diversos segmentos da sociedade. Justamente nesse período são criadas varias teorias que buscavam em síntese comprovar a desnecessidade do Estado nas relações entre particulares.
Após ter sido massacrada pelos interesses do Estado durante toda a Idade Moderna, era uma espécie de unanimidade social a necessidade de uma menor intromissão do Estado nas relações entre os particulares, inclusive na seara contratual (SARMENTO, 2011, p. 131).
Situação esta, que dá ensejo ao surgimento de forma latente a ideia de liberdade, entendida aqui como a criação de uma série de garantias do indivíduo contra a atuação do Estado. Nesse momento, os cidadãos passavam a ser considerados, pelo menos em tese, como iguais do ponto de vista formal.
A busca incessante pela liberdade se traduzia na criação de algumas manifestações jurídicas daquela época. O artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem de 1789, por exemplo, contida na Constituição Francesa de 3 de setembro de 1791, rezava que “toda sociedade que não assegura a garantia dos direitos nem a separação dos poderes não possui Constituição”.
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O ideal liberal se acentuou ainda mais com a edição do Código Napoleônico, em 1804, pondo fim à antiga ordem aristocrata e aos regimes jurídicos existentes até aquele momento.
O desejo de liberdade que influenciava todos os setores não poderia deixar de exercer influência no direito contratual, surgindo nesse momento da história a ideia de que o contrato é a forma de máxima expressão de vontade das pessoas. Dessa forma, uma vez que duas ou mais pessoas livres punham em um documento a expressão de suas vontades, aquele instrumento é justo e suas disposições obrigam as partes, independente do que esteja escrito (autonomia das vontades).
É nessa perspectiva de um liberalismo exacerbado que todo o sistema jurídico passou a prezar pela força vinculante da autonomia das partes nas tratativas contratuais em detrimento de quaisquer outros critérios (pacta sunt servanda). A sobrelevada importância conferida à vontade das partes impactou sobremaneira nas relações de trabalho, bem como nas relações negociais, conforme adiante se exporá.
À época da Revolução Industrial, em meados do século XIX, a sociedade passou a se concentrar cada vez mais nas cidades, havendo um aumento cada vez maior na produção de mercadorias e estímulos ao mercado de consumo. Esse novo cenário da sociedade apresentava como característica marcante a exploração da mão-de-obra barata dos trabalhadores, que por precisarem de emprego para sustentar suas famílias se submetiam a condições desumanas de trabalho.
Os proletários que, em troca do seu trabalho recebiam seus salários, passaram a ser capazes de participar das relações negociais. Com isso, as necessidades de consumo eram bem maiores, criando um cenário ideal para o crescimento do comércio, inclusive no âmbito interno dos países industrializados.
Destarte, ainda existiam muitos entraves para o crescimento dos mercados, dos quais pode se citar a forma de produção que ainda era bastante artesanal, caracterizada por altos custos e baixa produtividade, fatos estes que inviabilizavam a aquisição de produtos e serviços por grande parte da população.
Vê-se, nesse momento, a necessidade de criar um meio de produção capaz de entregar para um maior número de pessoas uma maior quantidade de
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produtos e serviços a preços baixos. E é nesse contexto que nasce a produção em série, na qual o empresário elabora apenas um produto e repete quantas vezes forem necessários todos os passos do processo produtivo, tornando a produção mais rápida e menos custosa. Com isso, aumenta-se a oferta de produtos, com a consequente diminuição dos preços, sendo possível comercializar os produtos e serviços para uma maior quantidade de consumidores, antes excluídos do mercado de consumo.
A chamada produção standartizada faz com que o produtor perca o contato direto com o consumidor na hora da contratação, pois os produtos e serviços serão vendidos a uma gama bastante vaga de compradores, surgindo à necessidade de se padronizar os contratos. Do contrário, o empresário estaria elaborando um produto, repetindo o processo de produção diversas vezes, mas tendo que elaborar diversos contratos. Situação que praticamente aniquilaria a conquista garantida pela produção em massa, já que iria trazer sérios entraves às relações de consumo, desvirtuando-se todo o sistema que se buscava criar.
Assim leciona Paulo Roberto Nalin (2002, p.109):
O homem contratante acabou, no final do século passado e inicio do presente, por se deparar com uma situação inusitada, qual seja, a da despersonalização das relações contratuais, em função de uma preponderante massificação, voltada ao escoamento, em larga escala, do que se produzia nas recém-criadas industrias.
O contrato, antes firmado pelas partes de forma solene, com a discussão pormenorizada de todas as suas cláusulas, perde muito do seu aspecto personalíssimo. Assim, os empresários passam a elaborar contratos-padrão, pensados em seus próprios escritórios e criados por especialistas que anteveem todas as situações e contingências por que podem passar as partes durante a vigência do contrato, dando prioridade, na maioria das vezes, apenas a seus anseios (o lucro) em detrimento dos interesses do consumidor, que é a parte hipossuficiente dessa relação.
Nesse sentido, ensina Humberto Teodoro Junior (2009, p. 56)
[...] esses novos rumos do Direito não podem evitar a constatação de que os tempos atuais são comandados pelo consumo em massas, cujas exigências de organização empresarial não podem prescindem de padrões uniformizados de negociação e contratação. E nesses novos hábitos negociais os contratos de massa em regra são frutos de estipulações unilaterais dos fornecedores que, pela própria
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conjuntura,não ensejam aos consumidores uma discussão individual das cláusulas e condições de cada operação, como deveria ocorrer segundo os padrões clássicos do principio da autonomia plena de vontades. (grifos originais)
Dessa forma, percebe-se que esses contratos-padrão, chamados pelo Código de Defesa do Consumidor de contratos de adesão, são justamente uma consequência do modo de produção massificado e não se tratam de um novo tipo de contrato, mas sim de uma nova forma de se realizar estes.
Nesse novo modelo, o fornecedor é quem define todo o andamento do contrato, restando ao consumidor a opção de aceitar ou não os termos previamente estabelecidos pela outra parte. Caso não os aceite, ficará privado dos produtos ou serviços e, consequentemente, excluído do mercado de consumo.
Assim, discorre Pablo Stolze Gagliano (2008, p.6):
De fato, nos dias que correm, em que a massificação das relações contratuais subverteu radicalmente a balança econômica do contrato, a avença não é mais pactuada sempre entre iguais, mas converteu-se, na grande maioria dos casos, em um negócio jurídico standartizado, documentado em um simples formulário, em que a parte (mais fraca) incumbe aderir ou não à vontade da outra (mais forte), sem possibilidade de discussão do seu conteúdo.
Os contratos de produção são considerados uma marca do modo de produção massificado, contudo, mesmo não sendo contrários ao direito, são perfeitamente capazes de produzir injustiças na seara contratual, pois em uma situação de contrato em que exclusivamente uma das partes define as cláusulas contratuais, apenas esta estará protegida.
Vale ressaltar que o contrato será redigido de forma que os direitos do empresário sempre estejam resguardados sobre toda e qualquer eventualidade, sendo elaborados por especialistas em direito contratados pelo fornecedor, fato este que caracteriza uma situação um tanto quanto dispare ao se analisar que na grande maioria dos casos o consumidor é analfabeto.
É nesse sentido que ensina Fabíola Santos Albuquerque (2012):
Não tardou muito para que esse arquétipo contratual baseado na vontade e na pseudo-igualdade das partes ruísse e viesse à tona seu lado nefasto. A desmedida liberdade de contratar conferida aos indivíduos revelou seu lado maléfico, principalmente durante a Revolução Industrial, considerada como marco histórico do séc. XIX e o fenômeno de maior relevância da era moderna.
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Assim, fica possível perceber que é justamente nessa fase de maior difusão dos contratos de consumo que pontos negativos do princípio da autonomia da vontade tornam-se mais evidentes, fazendo surgir à necessidade de limitá-los, visto a flagrante situação de desigualdade entre os contratantes.
2.3.1 Atual Estágio da Autonomia da Vontade nos Contratos
Os pactos devem ser cumpridos, é o que manda o princípio de brocardo látino pacta sunt servanda. As Cláusulas contidas no contrato expressariam comandos imperativos, obrigando os contratantes ao seu cumprimento em qualquer circunstancia, pois foram contratados livremente por força da vontade dos contratantes, então deviam ser considerados justos. Somente novo pacto poderia modificar o que antes já havia sido estipulado, devendo para tanto o pacto anterior alcançar a nulidade ou a sua resolução.
Atualmente, não se vê mais o pacta sunt servanda na sua forma pura e simples, com a impossibilidade da revisão de clausulas. O novo Código Civil trouxe inovações nesta matéria, como a proteção do aderente prevista no art 423: “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”; art 424: “nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia do aderente a direito resultante da natureza do negócio”. Também há proteção no Código de Defesa do Consumidor em seu art. 6º, V: são direitos básicos do consumidor “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”. Há também proteção quanto ao caso fortuito e a força maior, art. 393 do Código Civil: “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles se responsabilizado”.
O princípio da Imprevisão, designado pela cláusula rebus sic stantibus de origem do Direito Canônico, ganhou destaque na atualidade apesar de constituir uma exceção. Contempla a possibilidade de que um pacto seja alterado, a despeito da obrigatoriedade, sempre que as cirsunstancias que envolveram a sua
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formação não forem as mesmas no momento da execução, de modo a prejudicar uma parte em benefício da outra.
A evolução dos contratos ao longo do tempo culminou com o surgimento de uma série de flagrantes injustiças, todas elas legitimadas, em um primeiro momento, pelo Direito, que ao invés de servir de proteção para a coletividade, passava a funcionar como um modo de repressão social. Ao se respeitar o interesse firmado no contrato, que, na maioria das vezes, é o interesse da parte mais forte, desprestigiava-se a parte hipossuficiente da relação.
Após longos anos de total inércia, a sociedade percebeu que esse modelo estava fadado ao insucesso. E aquele que talvez tenha sido o primeiro setor a sentir com mais força a crueldade do modelo de excessiva autonomia foi certamente o das relações trabalhistas.
O modelo de contrato de trabalho cunhado na pós-revolução industrial era o de exploração ao máximo e salários mínimos. Os empregados não possuíam qualquer direito trabalhista, mas como aceitavam se submeter a condições degradantes de trabalho, o Direito protegia essa relação.
Só depois de muito tempo e após alguns movimentos reivindicatórios, o Estado foi instado a modificar essa realidade, e, para não ver o fim de todo o modelo capitalista massificado, passou-se a editar leis para controlar a excessiva liberdade contratual.
Muda-se o modelo de normas apenas supletivas, como as trazidas no Código Civil de 1916 – obra que refletia bem a sociedade de sua época – para a edição de normas de ordem pública, que se tornam infestáveis para o interesse das partes. Em nosso país, o grande marco dessa nova era foi a edição da Consolidação das Leis Trabalhistas, modelo seguido por vários outros diplomas legislativos, como o próprio Código de Defesa do Consumidor.
Corroborando o exposto, Caio Mario da Silva Pereira (2006, p.27) afirma que:
Ante influências tais [...] medrou no Direito moderno a convicção de que o Estado tem de intervir na vida dos contratos, seja mediante a aplicação de leis de ordem pública, que estabelecem restrições ao princípio da autonomia da vontade em benefício do interesse coletivas, seja com a adoção de uma intervenção judicial na economia do contrato, instituindo a contenção dos seus efeitos, alterando-os ou mesmo liberando o
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contratante lesado, por tal arte que logre evitar que por via dele se consume atentado contra a justiça.
O Estado passa então de uma postura absenteísta e legitimadora de desigualdade a uma função ativa legiferante, normatizando as relações entre os particulares e trazendo regras que se incorporam aos contratos mesmo contra a vontade criadora das partes. É o que se chama de Dirigismo Contratual.
Em razão dessa mudança de pensamento e de agir do Estado, que passa a intervir no conteúdo das relações contratuais, alguns juristas mais tradicionais (TOUKKEMON; MORIN; BARRYERE apud PEREIRA, 2006, p.28), passaram a acreditar na morte desse instituto, pois para esses autores os contratos são manifestações de vontade de duas pessoas livres, que podem dentro dele estipular tudo quanto lhes pareça conveniente e a mera interferência do Estado no conteúdo dos contratos seria inaceitável.
Desvincula-se dessa compreensão Caio Mario da Silva Pereira (2006, p,28), ao afirmar que essa releitura da dinâmica dos contratos apenas inaugura uma nova etapa de sua evolução.
[...] este movimento intervencionista ganha corpo, na medida em que aumentam a extensão e a intensidade das normas de ordem publica e chega a inspirar em juristas apegados as normas tradicionais a crença no desprestigio ou mesmo na morte do contrato [...], por não admitirem uma vontade contratual que não seja filha da plena liberdade. Há porém, um desvio de perspectiva. Não é o fim do contrato, porém um capítulo novo de sua evolução, já que, através de sua longa vida, tem ele passado por numerosas vicissitudes. Esta a fase atual.
O que se pode dizer, amparado na lição acima apresentada, é que o dirigismo contratual é a atual fase do direito contratual, a qual melhor reflete os anseios sociais no momento.
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A CONSTRUÇÃO DA IDÉIA DE CONTRATOS DE CONSUMO
Reserva-se para este capítulo a análise do conceito e das características da relação de consumo, partindo da analise dos seus sujeitos e objeto que compõe esta relação.
3.1 CONSUMIDOR
O Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 2º define consumidor como sendo toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Para um melhor entendimento desse conceito, faz-se necessário a analise das acepções que a expressão “destinatário final” recebe da doutrina. Sobre o tema, assim assevera Marcelo Junqueira Calixto (2006, p. 335-336):
Nesse sentido, são conhecidas no Brasil duas posições doutrinarias principais: a dos maximalistas e a dos finalistas. A primeira formulação doutrinaria [...] vê no consumido o destinatário final fático do produto, aquele que o retira da cadeia de produção, ainda que busque auferir lucro com a aquisição.[...] A outra posição doutrinária, pioneira do movimento consumerista, que para a caracterização de determinada pessoa como consumidora esta tem que realizar a destinação final fática e econômica do bem e serviço. É necessário, em outras palavras, que não haja a utilização de um bem ou serviço para a produção de outro bem ou serviço, ou seja, que cesse toda a circulação do bem. (Grifo Nosso)
Percebe-se, assim, a existência de duas concepções para essa expressão: uma maximalista e outra finalista.Este questionamento sobre qual teoria deve ser adotada, não é questionado pelo STJ, o que se questiona é se há vulnerabilidade na relação jurídica, podendo esta vulnerabilidade ser de origem Técnica (o indivíduo não tem conhecimento algum do produto), Jurídica (não pode-se exigir do homem médio esse conhecimento, por exemplo juros abusivos), e Econômica (não tem condições de concordar ou descordar). Considera-se o STJ adepto a uma teoria finalista, que limita o conceito de consumidor, sendo este considerado como aquele que retira o produto do mercado e não o utiliza para auferir lucro, porém, se existir vulnerabilidade na relação, mesmo que haja lucro, haverá
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relação de consumo. Esta Teoria é denominada Teoria Finalista Aprofundada, ou Teoria Finalista Mitigada.
Contudo, parece razoável utilizar a literalidade do art. 2º do CDC e considerar como consumidor quem adquire o produto ou serviço como destinatário final sem o objetivo de auferir lucro (concepção finalista).
Além dessa distinção, o conceito de consumidor ainda pode ser analisado por diferentes pontos de vista segundo José Geraldo Brito Filomeno (2007, p.18- 19):
[...] sob o ponto de vista econômico, consumidor é considerado todo indivíduo que se faz destinatário da produção de bens, seja ele ou não adquirente, e seja ou não ao seu turno, também produtor de outros bens. [...] Do ponto de vista psicológico, considera-se consumidor o sujeito sobre o qual se estudam as relações a fim de se individualizar os critérios para a produção e as motivações internas que o levam ao consumo. [...] Já do ponto de vista sociológico é considerado consumidor qualquer individuo que frui ou se utiliza de bens e serviços, mas pertencente a uma determinada categoria ou classe social.
Corroborando esse entendimento o autor afirma ter sido adotado pelo direito brasileiro o conceito de consumidor sob o ponto de vista econômico (FILOMENO, 2007, p. 25):
Consoante já salientado, o conceito de consumidor adotado pelo Código foi exclusivamente o de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão somente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial. Assim, procurou-se abstrair de tal conceituação camponeses de natureza sociológica - “consumidor” é aquele individuo que frui ou se utiliza de bens e serviços e pertence a uma determinada categoria ou classe social - ou então psicológica- aqui encarando-se o “consumidor” como o indivíduo sobre o qual se estudam as relações a fim de se individualizarem os critérios para a produção e as motivações internas que o levam ao consumo.
Apesar da difícil tarefa de conceituar o consumidor, diante das divergências existentes na doutrina e na jurisprudência, um dos únicos fatores que não divide opiniões contrárias sobre a caracterização desse sujeito é a vulnerabilidade (CALIXTO, 2006, p. 342). Assim, será considerado consumidor aquele que na relação consumerista, além de ser economicamente destinatário final do produto ou serviço, for considerado a parte vulnerável, necessitando, portanto, ser albergado pelas normas especiais do CDC.
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3.1.1 Pessoa Jurídica como Consumidora
Importante peculiaridade da relação de consumo é a possibilidade da pessoa jurídica ser considerada consumidora, já que o consumidor é considerado, na maioria das vezes, a parte hipossuficiente desta relação.
O próprio CDC ao conceituar o consumidor, estabelece a possibilidade da pessoa jurídica compor a relação consumerista como sujeito ativo: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”.
Assim, percebe-se que a pessoa jurídica poderá ser considerada consumidora. Contudo, existem algumas condições para que essa situação se torne possível.
A partir da análise do referido artigo, chega-se a conclusão que o ponto chave para se definir a posição de consumidor na relação de consumo será a utilização do produto como destinatário final, não sendo possível que este bem ou serviço adquirido seja destinado para outra atividade, como por exemplo, a revenda (concepção finalista).
Além disso, é necessário que o produto ou serviço consumido pela pessoa jurídica não faça parte da sua área de produção, ou seja, esses bens adquiridos sejam diferentes do objeto de atividade da pessoa jurídica, sendo, nesse caso, esta, tão frágil como as pessoas físicas.
Dessa forma se posiciona Ronaldo Alves de Andrade (2006, p. 24)
Em nosso entendimento, a expressão destinatário final pode ser reconhecida a partir da analise da posição da pessoa jurídica, na relação negocial, classificada como profissional ou não-profissional, nos termos apregoados pela legislação e pelos doutrinadores europeus aos quais fizemos expressas referência, uma vez que a análise de ter a pessoa jurídica procedido “à recolocação do bem ou atividade no mercado de consumo ainda que mediante a especificação ou transformação”, corresponde em outras palavras, a avaliar se a pessoa jurídica atuou de forma profissional ou não. Portanto, advogamos a ideia de que destinatário final é a pessoa física ou jurídica que adquire produto ou serviço para uso não profissional.
A partir desse posicionamento e com o que já foi exposto, conclui-se que a pessoa jurídica será considerada consumidora, portanto, parte hipossuficiente da
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relação de consumo, quando forem destinatários finais dos bens e serviços adquiridos, não fazendo parte, estes, da atividade produtiva da empresa.
3.1.2 Equiparação ao Consumidor
O CDC, com o objetivo de aumentar a proteção da parte hipossuficiente da relação consumerista, passa a equiparar ao consumidor, nos seus art. 2º, § único, art. 17 e art. 29, as seguintes pessoas: Art. 2°, par. único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento. Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.
Inicialmente, cabe analisar a equiparação do consumidor coletivo, exposta no parágrafo único do Art. 2° do CDC. Nesse caso, o consumidor é considerado não apenas individualmente, mas em sua forma coletiva, na qual podem diversos consumidores se reunirem para a prática consumerista, valendo os mesmos efeitos desta relação para todos os consumidores.
Assim leciona Jose Geraldo Brito Filomeno (2007, p. 33):
[...] Tal perspectiva é extremamente relevante e realista, porquanto é natural que se previna, por exemplo, o consumo de produtos e serviços perigosos ou então nocivos, beneficiando-se, assim, abstratamente, as referidas universalidades e categorias de potenciais consumidores. Ou, então, se já provado o dano efetivo pelo consumo de tais produtos ou serviços, o que se pretende é conferir à universalidade ou grupo de consumidores os devidos instrumentos jurídicos-processuais para que possam obter a justa e mais completa possível reparação dos responsáveis [...]
Dessa forma, alargando o conceito de consumidor e o equiparando a grupos de pessoas determinadas, aumenta-se a proteção da parte hipossuficiente da relação de consumo, protegendo quem venha a sofrer, direta ou indiretamente, os efeitos dessa relação.
Em seguida temos a situação do sujeito que sofre danos em decorrência do defeito existente em uma relação consumerista. Referente a este assunto, Ronaldo Alves de Andrade (2006, p. 26), assim discorre:
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A equiparação prevista no microssistema é plausível e tem por finalidade dar proteção jurídica as pessoas que, mesmo não participando diretamente de uma relação jurídica de consumo, igualmente sofreram seus efeitos, positivos ou negativos prazerosos ou danosos.
Assim, percebe-se que o CDC protege, além do consumidor direto da relação de consumo, os indiretos, que não participam da concretização desta relação, mas recebem os seus efeitos, de forma benéfica ou maléfica.
Por fim, temos as pessoas sujeitas à práticas abusivas de consumo, que também podem ser consideradas consumidoras indiretas, pois sofrem os efeitos negativos decorrentes da relação de consumo.
3.2 FORNECEDOR
O conceito de fornecedor, assim como acontece no caso do consumidor, também possui diversos significados. Contudo, tem-se no Código de Defesa do Consumidor uma forma bem abrangente de se defini-lo na relação de consumo.
Assim discorre o Art. 3° do CDC:
Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Para entender melhor o intuito do legislador em conceituar de forma tão ampla o conceito desse sujeito passivo da relação consumerista, cabe mencionar os ensinamentos de James M. Martins de Souza (1995, p. 31):
Novamente busca o legislador a conceituação de outra figura fundamental, integrante da relação de consumo, usando técnica heterodoxa, visto não ser usual que o Direito estabeleça conceituações, pelo visto de eventual insuficiência, excesso ou inadequação de suas previsões.
Neste art. 3°, tenciona-se estabelecer a maior abrangência possível para o conceito de “fornecedor”, ou seja, o sujeito de direito que atua no pólo oposto ao do consumidor, ou que integra o conjunto de pessoas que compõem ou podem compor esse pólo oposto.
Assim, dado esse objetivo, poder-se-ia dizer, sinteticamente, que fornecedor é todo ente que provisione o mercado de consumo.
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De forma resumida, pode-se conceituar o fornecedor como o sujeito responsável pelo fornecimento dos bens e serviços, procurados pelo consumidor, no mercado de consumo.
Dá conceituação dada pelo art. 3° do CDC, Ronaldo Alves de Andrade (2006, p.32) destaca três importantes pontos referentes ao fornecedor.
Primeiramente, refere-se à onerosidade ou gratuidade do fornecimento. Não há dificuldade em identificar a relação de consumo no caso de um fornecimento oneroso, afinal de contas, se paga pelo fornecimento de um produto ou serviço, sendo possível exigir a devida qualidade do bem adquirido.
Contudo o problema pode acontecer no caso de um fornecimento gratuito. No qual não se pode falar em relação de consumo, no que se refere aos vícios do produto. Entretanto, no caso de acontecer qualquer acidente decorrente do bem ou produto adquirido de forma gratuita pelo consumidor, estará caracterizada a relação de consumo, sendo possível ação de reparação de danos.
Outro ponto importante, referente ao art. 3°, diz respeito às entidades com finalidades não-lucrativas. Nesse caso não haverá relação de consumo, visto que esta depende da obtenção de lucro, fato que, em regra não acontece, com o oferecimento de bens e serviços dessas instituições.
Não obstante, caso em qualquer momento haja o intuito de obtenção de lucro por parte dessas instituições, estará caracterizada a relação de consumo.
Por fim, vale salientar a situação da administração pública, que como não tem o intuito de obtenção de lucro, quando participa do mercado de consumo não poderá ser considerada fornecedora, salvo cobre algum tipo de remuneração para a prestação de serviço ou fornecimento de produtos.
3.3 PRODUTOS E SERVIÇOS
Após a análise dos sujeitos que compõem a relação de consumo, faz-se necessário a conceituação dos objetos desta relação, os quais se encontram expostos nos parágrafos primeiro e segundo do art. 3° do Código de Defesa do Consumidor:
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
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§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Referente ao produto, boa parte da doutrina acredita que poderia ter sido utilizado no CDC o termo “bem” para denominar este objeto da relação de consumo, em razão do Código Civil assim o denominar.
Como bem expressa o dispositivo do CDC, o produto será dividido em bens: móveis, que possuem movimento próprio ou podem ser removidos sem alterar sua substância ou destinação econômica, e imóveis, os que não podem ser movimentados ou removidos sem perder sua substancia ou destinação econômica; e materiais, que podem ser tocados, possuindo corpo físico (tangíveis), e imateriais, que não podem ser tocados e não possuem corpo físico (intangíveis).
Já em relação aos serviços, o CDC foi mais abrangente, buscando incluir neste conceito toda atividade remunerada exercida no mercado de consumo, sendo conceituado por Ronaldo Alves de Andrade (2006, p. 42-43) como:
Em realidade, serviço é a execução de uma ação humana, que na economia apresenta-se como um setor distinto e bastante lucrativo, pois proporciona a criação de empresas que organizam determinada atividade para atuar no mercado de consumo, a fim de suprir as necessidades do homem moderno, que em geral, não tem tempo ou conhecimento para desenvolver determinada atividade.
Assim, percebe-se que os serviços são as atividades fornecidas por pessoa física ou jurídica aos consumidores, salientando-se que como está expresso no CDC, este fornecimento deverá acontecer de forma remunerada, não sendo considerada relação de consumo se o mesmo for feito de forma gratuita.
Do conceito exposto pelo Código de Defesa do Consumidor, dois importantes pontos devem ser observados com maior ênfase.
O primeiro refere-se à possibilidade da atividade de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária ser considerada serviço na relação de consumo.
Sobre esse ponto assim leciona Nelson Nery Jr (2001, p. 475)
As relações jurídicas de consumo e as novas figuras jurídicas definidas pelo Código de Defesa do Consumidor não são redutíveis aos vetustos institutos do Direito Privado ortodoxo.
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No sistema do Código de Defesa do Consumidor, portanto, o banco se inclui sempre no conceito de fornecedor (art.3°, caput, CDC, como comerciante e prestador de serviços), e as atividades por ele desenvolvidas para com o público se subsumem aos conceitos de produto e de serviço, conforme o caso (art. 3°§§1° e 2°, CDC).
Da mesma forma assevera a Súmula n° 297 do Superior Tribunal de Justiça que: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”.
Dessa forma, percebe-se que as atividades derivadas das instituições financeiras farão parte da relação de consumo e serão reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor.
O segundo ponto importante do § 2 do art. 3° do CDC, diz respeito a não classificação das atividades decorrentes da relação de trabalho como relação consumerista, sendo estas atividades reguladas pela CLT.
Assim, sendo o Direito do Trabalho uma disciplina autônoma no nosso ordenamento jurídico, as relações trabalhistas serão reguladas pela CLT e não pelo Código de Defesa do Consumidor.
3.4 RELAÇÃO DE CONSUMO
Após terem sido analisados os sujeitos e as partes que compõem a relação consumerista, torna-se possível a formação de um conceito do que viria a ser este instituto, visto que o CDC não o traz expresso em seu bojo. Utilizando-se dos conceitos acima expostos, podemos concluir que a relação de consumo é o fornecimento de produtos ou serviços de forma onerosa que possam suprir as necessidades dos consumidores.
Nesse sentido, leciona Ronaldo Alves de Andrade(2006, p. 48):
[...] Entretanto, como já ressaltado, é possível estabelecer uma noção mais ou menos segura de relação de consumo, partindo-se do conceito de seus elementos subjetivos – consumidor e fornecedor – e objetivos – produto ou serviço -, de modo que a relação jurídica será qualificada como de consumo e por isso regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, quando em seus polos objetivos e subjetivos figurem um fornecedor e um consumidor atuando no mercado de consumo, tendo por objeto serviço, produto ou qualquer outra atuação no mercado de consumo.
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Dessa forma, percebe-se que a inter-relação entre os sujeitos (elemento subjetivo) e objetos (elemento objetivo) dentro do mercado de consumo formará a relação consumerista, que deverá ser regulada pelo Código de Defesa do Consumidor.
AUTONOMIA DA VONTADE NOS CONTRATOS DE CONSUMO
Foi reservado ao presente capitulo a análise da autonomia da vontade. Em um primeiro momento, a autonomia da vontade será conceituada, para melhor entendimento sobre o assunto, e, posteriormente, será analisada a necessidade de limitação a tal princípio.
4.1 NECESSIDADE DE LIMITAÇÃO DA AUTONOMIA DA VONTADE
Durante todo século XIX, época do apogeu do liberalismo, a autonomia da vontade se tornou quase um dogma da teoria dos contratos. No início do século, o Código de Napoleão, em seu artigo 1.134, já proclamava que “as convenções legalmente formadas são como lei para aqueles que as fizeram”.
As disposições contratuais não sofriam limites de ordem objetiva, não sendo admitida naquela época a intervenção Estatal nas relações entre particulares. Tal situação era ainda uma consequência natural dos anos de repressão do final do século XIII, e, temendo qualquer tipo de repressão, defendia-se a total autonomia na seara privada, definindo-se de forma bem clara as fronteiras entre o público e privado (GIORGIANNI, 1998, p. 35).
Fernando de Noronha (1994, p.63) afirma que Kant assim resumia a ideia liberal: “quando alguém decide alguma coisa em relação ao outro, é possível que faça a esse alguma injustiça, mas nenhuma injustiça é possível naquilo que se decide para si próprio”.
Destarte, nesse sistema, baseado no principio da liberdade de contratar, as diferenças entre os sujeitos da relação contratual tornavam-se cada vez mais evidentes, como corrobora Rosalice Fidalgo Pinheiro (2002, p. 183):
No entanto, logo se verificou que a limitação do Estado em favor dos indivíduos, que se encontra como pano de fundo dessas considerações,
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proporcionou a superioridade de uma das partes em detrimento de outra. E logo se constatou que os direitos subjetivos advindos da vontade dos contratantes já não podiam mais servir unicamente aos interesses de seu titular [...].
Inevitável consequência da inexistência de limitações ao poder econômico foi o surgimento de situações de injustiça flagrante, pois com a autonomia plena albergada pelo ordenamento jurídico, os casos de abuso de direito tornavam-se recorrentes.
Diante de toda sorte de abusos cometidos em diversos contratos, albergados pelo Direito e pelas ideologias do liberalismo clássico, o Estado percebeu a necessidade de intervir nas relações entre os particulares, para que fosse possível limitar essa autonomia da vontade.
Caio Mário da Silva Pereira (2006, p. 28) lembra que no começo do século XX compreendeu-se que, se a ordem jurídica prometia a igualdade política, não estava assegurando a igualdade econômica. Dentro desse senário de desigualdade, a situação tornou-se insustentável, não podendo mais o poder público ficar inerte, afastado dos problemas sociais existentes.
O Estado, nesse momento, sai da posição passiva, começando efetivamente a intervir nos contratos, e passa a editar leis de ordem pública, cogentes, cujo conteúdo não pode ser desrespeitado pelas partes (PINHEIRO, 2002, p. 401). Com a emergência do Estado Social, há uma ruptura com o Estado Liberal, no qual a liberdade não encontrava qualquer limite.
No Brasil, as primeiras intervenções certamente foram feitas no Direito do Trabalho. Na década de 30, no século XX, foi editada a CLT, que consolidou em um só texto uma série de leis extravagantes que já previam diversas limitações à autonomia da vontade, como por exemplo, a previsão do salário mínimo, da jornada de trabalho máxima, além de várias situações que não poderiam mais ser tratadas livremente pelas partes nos contratos.
O antigo Código Civil de 1916, apenas, se limitava a trazer normas dispositivas, indicando às partes qual o melhor caminho a se seguir, sem, contudo, limitar efetivamente a autonomia e coibir os abusos.
Vale ainda citar como exemplo de limitação da autonomia, uma lei de ordem pública que interfere nas relações de consumo, a Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1973, que trata da venda de terrenos em prestações.
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Contudo, a mudança só aconteceu realmente com a edição da Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, a qual foi definida como sendo a “Constituição Cidadã”, por dar destaque, em seu corpo, a uma serie de garantias e direitos individuais e coletivos. Historicamente a CF aparece no cenário jurídico nacional sacramentando o final de um Estado brasileiro baseado na ditadura e com flagrantes desrespeitos aos direitos humanos.
Corroborando com essa ideia Pietro Perlingieri (1997, p.280) afirma:
Não se pode mais discorrer sobre limites de um dogma ou mesmo sobre exceções: a Constituição operou uma reviravolta qualitativa e quantitativa na ordem normativa. Os chamados limites da autonomia, colocados à tutela dos contraentes mais frágeis, não são mais externos e excepcionais, mas, antes, internos, na medida em que são expressão direta do ato e de seu significado constitucional.
É exatamente nesse contexto histórico que o Legislador Constituinte erigiu status de direito humano fundamental à defesa do consumidor, ao estatuir, no art. 5, XXXII, dentro do capítulo que trata dos Direitos e Deveres individuais e coletivos, que o Estado promoverá a defesa do consumidor.
Bruno Nubens Barbosa (2002, p. 111), captando com maestria a natureza das normas de proteção do consumidor, leciona que:
Assim, o direito do consumidor, enquanto direito subjetivo, tem sede constitucional e caracteriza-se ontologicamente como direito humano fundamental, tomado o sujeito titular do direito na sua compreensão finalista, vinculada a uma dimensão própria da pessoa humana e de sua necessidade de consumo. Essa compreensão do fenômeno, todavia, só e possível de tomarmos a figura do consumidor, em sua perspectiva existencial, como um sujeito próprio com necessidades fundamentais.
Editada a Lei 8.078, de 1990, (Código de Defesa do Consumidor), possuidora de status constitucional, qualquer lei ou ato normativo inferior que venha a prejudicar os consumidores não tem qualquer eficácia jurídica, por não respeitar o fundamento de validade de todo o sistema normativo: a Constituição da Republica.
Vê-se, a partir desse fenômeno de participação do Estado nas relações contratuais, que se traduzia através da criação de diversos diplomas legislativos protetivos, o surgimento do Dirigismo Contratual, que reflete exatamente esta maneira participativa do poder público atuar na relação entre particulares, limitando a autonomia da vontade que a priori era tida como algo absoluto.
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Contudo, vale salientar, que não se trata do fim da autonomia da vontade, com a dominação total do Estado e previsão pormenorizada de todas as cláusulas que um contrato possa ter. O que busca o Direito atual é proteger a parte mais fraca da relação, de modo que o contrato não sirva como mais um meio de opressão ao economicamente menos favorecido (CALIXTO, 2006, p. 318).
Assim, o princípio da autonomia da vontade não é mais considerado único, como esclarece Maria Cunha Pimenta (2012, p. 18):
A adoção de novos paradigmas no direito privado resulta em uma releitura dos princípios contratuais clássicos, oriundos da visão liberal do direito, passando estes a coexistir com os novos princípios contratuais, sendo: o princípio da boa-fé objetiva; princípio do equilíbrio contratual e princípio da função social do contrato. [...] nenhum dos princípios clássicos foi abolido, o que houve foi uma relativização destes, com a aplicação de novos princípios, ditos “sociais” e “éticos”, oriundos de uma nova concepção do direito. (Grifo nosso)
Faz-se mister, nesse passo, através dos ensinamentos da doutrina atual, analisar a limitação da autonomia da vontade, que acontecerá sobretudo por três princípios: função social do contrato, boa-fé objetiva e equivalência material do contrato.
4.1.1. Função Social do contrato
A definição do que viria a ser função social do contrato não é tarefa das mais fáceis, pois este princípio possui conceito amplo e indefinido. Com esse entendimento corrobora a doutrina de Gagliano e Pamplona Filho (2005, p.55):
A função social do contrato é, antes de tudo, um princípio jurídico de conteúdo indeterminado, que se compreende na medida em que lhe reconhecemos o precípuo efeito de impor limites à liberdade de contratar, em prol do bem comum.
Este princípio é consagrado pelo Código Civil no seu art. 421: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Tornando-se visível que o direito individual das partes estará limitado em prol dos interesses coletivos da sociedade.
Nesse sentido leciona Maria da Conceição Melo Oliveira (on line):
Dessa maneira, os contratos precisam ser interpretados de acordo com a visão do meio social em que está inserido, de forma que não represente
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onerosidade excessiva para as partes contratantes, tampouco gere situações de injustiças, de modo que a igualdade das partes seja respeitada, tendo em vista que o contrato possui eficácia interna e externa. Interna porque gera efeitos entre as partes e externa porque os efeitos do contrato vão além dos contraentes, pois se um contrato for ruim para as partes, de maneira indireta, será maléfico para a comunidade, na medida em que não atendeu a sua finalidade social.
Os contratos não geram efeitos apenas entre as partes, pois provocam também consequências para toda a sociedade, sendo necessária a intervenção estatal para que qualquer cláusula que venha a prejudicar a coletividade seja extinta.
Dessa forma, a função social do contrato pode ser conceituada como princípio limitador responsável por regular a relação contratual de forma que os interesses coletivos sejam respeitados em qualquer relação onde existam interesses individuais.
Assim corrobora Paulo Luiz Netto Lôbo (2002):
O princípio da função social determina que os interesses individuais das partes do contrato sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem. Não pode haver conflito entre eles, pois os interesses sociais são prevalecentes. Qualquer contrato repercute no ambiente social, ao promover peculiar e determinado ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico.
Este princípio é considerado um dos responsáveis por relativizar a autonomia da vontade conforme leciona Caio Mario da Silva Pereira (2006, p.19):
A função social do contrato, portanto, na acepção mais moderna, desafia a concepção clássica de que os contratantes tudo podem fazer, porque estão no exercício da autonomia da vontade. O reconhecimento da inserção do contrato no meio social e da sua função como instrumento de enorme influência na vida das pessoas, possibilita um maior controle da atividade das partes. Em nome do princípio da função social do contrato se pode, v.g., evitar a inserção de cláusulas que venham injustificadamente a prejudicar terceiros ou mesmo proibir a contratação tendo por objeto determinado bem, em razão do interesse maior da coletividade.
A autonomia da vontade não é mais considerada absoluta, tendo à função social do contrato a obrigação de regular este princípio, fazendo prevalecer o interesse social em prol do interesse individual das partes, evitando qualquer cláusula abusiva e buscando o equilíbrio das partes do contrato.
Ainda sobre o tema leciona Mariza Rotta (2008, p.207):
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Na nova concepção de contrato, frente ao CDC e ao novo CC, não mais importa somente a manifestação de vontade dos contraentes, devendo-se levar em conta, também, os efeitos deste na sociedade, bem como a condição econômica e social dos participantes da relação jurídica. Na busca deste novo equilíbrio, o direito terá um papel destacado na busca da delimitação imposta pela lei, que também será legitimadora da autonomia de vontade das partes, passando a proteger determinados interesses, agora não de cunho individual, mas de interesse social, valorizando a confiança do vínculo de contratação, as expectativas e a boa fé.
No CDC, os artigos 46 e 47 evidenciam a prevalência do interesse social sobre o individual. O primeiro exige o conhecimento prévio por parte do consumidor das cláusulas do contrato, e o segundo determina que a interpretação de qualquer cláusula contratual deverá ser feita de maneira mais benéfica ao consumidor.
Vale ressaltar, que este princípio possui amparo constitucional no art. 5, incisos XXII e XXIII da Constituição Federal e na dignidade da pessoa humana, sendo considerado de ordem pública e devendo ser respeitado por todos os contratantes, cabendo ao juiz, caso seja necessário, analisar se o mesmo foi respeitado.
4.1.2 Princípio da Boa-Fé Objetiva
A boa fé-objetiva é outro princípio limitador da autonomia da vontade que possui conceito jurídico indeterminado.
Em nosso Direito anterior ao Código de Defesa do Consumidor e ao Código Civil de 2002, não havia sequer previsão expressa a respeito deste princípio nos contratos.
Caio Mário da Silva Pereira (2006, p. 23) aponta que
A maior crítica que se podia fazer ao Código Civil de 1916 era a de que nele não se tinha consagrado expressamente o princípio da boa-fé como cláusula geral, falha imperdoável diante da consagração do princípio nos códigos a ele anteriores, como o francês (art. 1.132) e o Alemão (parágrafo 242).
O Código de Defesa do Consumidor deu especial relevo ao princípio da boa-fé objetiva. É assim que se estabelece no art. 4°, III que no âmbito das relações de consumo todas as condutas devem ser pautadas na boa-fé.
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Para complementar o quadro normativo do CDC, o art. 51, IV estabelece a nulidade de pleno direito das cláusulas contratuais que sejam incompatíveis com a boa-fé.
Este princípio pode ser definido como uma regra de conduta. Tanto é assim que o CDC o aproxima do conceito de equidade (art. 51, IV) e o Código Civil ao de probidade (art. 442).
A ideia de princípio ora em comento está ligada ao dever das partes de agir conforme parâmetros de honestidade e lealdade, com respeito mútuo, sem que uma tencione tirar proveito excessivo da outra. Busca-se, em suma, estabelecer que o contrato deve sempre permitir um equilíbrio entre as partes.
Rizzato Nunes (2005, p. 128) leciona que
Deste modo, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses da parte.
Como o nome já sugere, a boa-fé aqui tratada é considerada em seu aspecto objetivo. Nessa acepção, se analisa a compatibilidade da conduta do agente com aquilo que normalmente dele se espera dentro de um contrato, comparando-se a situação do caso concreto com o modelo ideal de atuação.
Para tal analise não será necessária à inteligência de suas reais intenções, desejos ou fraquezas (boa-fé subjetiva), mas, sim, a observação da forma que a conduta realmente foi realizada, comparando-se esta com a forma como ela deveria se realizar.
Ainda quanto a distinção da boa-fé objetiva com a subjetiva, Caio Mário da Silva Pereira (2006, p. 23) alerta que
A boa-fé objetiva não cria apenas deveres negativos, como o faz a boa-fé subjetiva. Ela cria também deveres positivos, já que exige que as partes tudo façam para que o contrato seja cumprido conforme previsto e para que ambas obtenham o proveito objetivado. Assim o dever de simples abstenção de prejudicar, característico da boa-fé subjetiva, se transforma na boa-fé objetiva em dever de cooperar.
Fica evidenciado, assim, que as partes tudo devem fazer para que o contrato se desenvolva com proveitos recíprocos, não podendo a conduta de uma vir a prejudicar a da outra.
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A análise da compatibilidade da conduta das partes, frente ao padrão Ideal estabelecida pela sociedade, deve ser feita em todos os momentos do contrato, devendo os contratantes presarem pelo respeito mútuo antes, durante e mesmo após a extinção da relação contratual.
No Código de Defesa do Consumidor o comportamento das partes em qualquer das fases do contrato traz sempre consequências específicas. Este raciocínio pode ser auferido através da analise do art. 30 deste diploma legislativo:
Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.
Nesse sentido o art. 30 do CDC determina que a própria publicidade, realizada na fase pré-contratual, obriga o fornecedor que a fizer veicular e integra o contrato que posteriormente vier a ser celebrado, tratando-se de uma regra de conduta. Assim, se um fornecedor faz veicular uma publicidade em que oferece determinado produto ou serviço sobre determinadas condições, é de se esperar que o consumidor que quiser contratar com aquele fornecedor poderá efetivamente fazê-lo dentro do anunciado.
O CDC trata os presentes casos não como uma mera proposta de contratação, mas como verdadeira obrigação do fornecedor de respeitar aquilo que ele próprio, por livre e espontânea vontade, fez publicar acerca do produto ou serviço. Trata-se, assim, de uma norma que vincula (obriga) o fornecedor a cumprir aquilo a que ele próprio se obrigou.
Referente ao respeito da boa-fé objetiva durante a execução do contrato está espalhado por todo o conteúdo do Código do Consumidor, sobretudo dentro do Capítulo VI, intitulado da Proteção Contratual. A lei põe a salvo o consumidor de toda a sorte de condutas do fornecedor na tentativa de conseguir vantagens excessivas (Art. 51, I, II, IV, IX) ou de se eximir do cumprimento do contrato (Art. 51, III, VIII).
Além disso, vale salientar, que mesmo após a realização do contrato, quando todos os efeitos decorrentes do mesmo já foram alcançados, o princípio da boa-fé determina que a conduta das partes seja pautada pela lealdade recíproca.
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É nesse sentido o comando do art. 32 do CDC, que obriga os fornecedores a manter componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou a importação dos produtos ou mesmo após sua cessação, na forma da lei. Assim, mesmo já tendo sido cumprido o contrato, o fornecedor ainda deve respeito no sentido de permitir que o mesmo continue a se utilizar do produto adquirido, tendo o consumidor o direito de ter peças de reposição para o conserto.
Dessa forma, é possível perceber a preocupação do legislador em proteger, através do princípio da boa-fé objetiva (PINHEIRO, 2002, p. 409) o consumidor de qualquer abuso de direito praticado por parte do fornecedor, tendo como consequência dessa proteção a limitação da autonomia da vontade que se vê cada vez mais relativizada com a intervenção estatal na relação consumerista.
4.1.3 Princípio da Equivalência Material do Contrato
Por fim, tem-se o principio da Equivalência Material do Contrato, que talvez seja o que atinge mais frontalmente a ideia do pacta sunt servanda.
Conforme já foi bastante trabalhado nos tópicos anteriores, o Direito atual tenta se desligar de uma ideia puramente liberal dos contratos, em que as partes são formalmente iguais e tem poderes para estabelecer condições contratuais com força de lei, sejam quais forem às condições, para uma ideia de maior equidade, com maior proteção do Estado, através de leis de ordem pública.
É justamente no sentido de tentar buscar uma maior igualdade material entre as partes que atua o princípio ora em comento.
Referente a esse principio, Paulo Luiz Netto Lôbo (2002) assim leciona:
O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega de cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. O princípio clássico pacta sunt servanda passou a ser entendido no sentido de que o contrato obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas
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Nesse contexto, em uma visão mais consentânea com os parâmetros de conduta adotados como corretos pelo chamado Estado Social, as partes são relativamente livres para contratarem aquilo que melhor atenda aos seus interesses.
Entretanto, se no caso concreto se puder aferir que há um desequilíbrio material entre as posições assumidas pelas partes no contrato, deve o Estado, através do poder judiciário, buscar a harmonização da relação para ver respeitados efetivamente os princípios que inspiram toda a ordem jurídica, conforme o Art. 170 da Constituição da Republica.
A ideia de Equivalência Material do Contrato passa pela existência de comutatividade das prestações, ou seja, deve-se fazer um juízo de proporcionalidade entre as prestações recíprocas.
Conforme já apontado pelo autor Paulo Luiz Netto Lôbo (2002), os desequilíbrios podem ser verificados logo no inicio do contrato, ou mesmo supervenientemente.
No caso de existir desequilíbrio no inicio do contrato, é preciso que se avalie de forma conjugada os Princípios da Equivalência Material e da Boa-Fé Objetiva para se chegar a uma harmonização, pois se a relação contratual prevê desde o princípio prestações desproporcionais, viola-se, em última análise, uma regra de conduta. Dessa forma, quando o padrão socialmente aceito como correto é violado, atinge-se uma situação em que o Estado tem de intervir no contrato para corrigir a situação de desequilíbrio.
O CDC, na busca de dar maior efetividade para esse princípio, veio ampliar a possibilidade de utilização de uma teoria que representou significativo avanço para o direito: a teoria da imprevisão, a qual foi apontada pela teoria geral dos contratos como uma mitigação ao postulado do pacta sunt servanda.
Essa teoria centra-se na ideia de existência implícita em qualquer contrato da cláusula rebus sic stantibus, a qual traz a ideia de que as partes se obrigam a cumprir as prestações estabelecidas nos contratos, tomando-se as condições fáticas existentes naquele momento. Nesse sentido, se algum fato imprevisível e extraordinário ocorre e muda o contexto em que a avença se celebrou, deve o
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Estado juiz intervir no contrato, para que as partes sejam reconduzidas ao status quo anti.
Conforme aponta Denis Danoso (on line), a doutrina clássica coloca quatro requisitos como necessárias à aplicação da cláusula rebus sic stantibus: (1) contrato bilateral, oneroso, comutativo e de execução continuada ou deferida; (2) acontecimento geral, superveniente e extraordinário; (3) imprevisibilidade do acontecimento; e (4) desproporção na prestação a que o devedor está obrigado, em razão do acontecimento extraordinário.
O grande avanço trazido pelo Código de Defesa do Consumidor, que torna ainda mais importante o princípio da equivalência material do contrato, refere-se a falta da necessidade de imprevisibilidade do acontecimento, que pode ser averiguada através da leitura da parte final do art. 6°, V, que tem a seguinte redação:
Art. 6° São direitos básicos do consumidor:
[...]
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem exclusivamente onerosas;
Uma rápida analise do dispositivo supra, já dá ao interprete a convicção de que o legislador buscou a máxima efetividade na proteção dos direitos do consumidor através da diminuição dos requisitos necessários à aplicação da teoria da imprevisão, pois como se pode perceber, não foi exigido para tanto a necessidade da imprevisibilidade.
Mesmo não considerado por muitos doutrinadores como teoria da imprevisão, por faltar-lhe o requisito da imprevisibilidade da conduta, não há dúvidas de que o art. 6, inciso V, do CDC amplia essa teoria e possibilita à parte hipossuficiente da relação consumerista o direito a revisão contratual em busca do equilíbrio entre as partes, independente do fato superveniente ser previsível ou não (DENIS DANOSO).
Diante de todo o exposto, pode-se concluir que o Princípio da Equivalência Material do Contrato surge como mais uma forma de limitar a autonomia da vontade das partes, sendo um importante meio de assegurar o respeito à proporcionalidade entre as prestações a que as partes estão obrigadas em razão dos contratos.
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4.2 Das Formalidades Essenciais à Validade Dos Contratos Consumeristas De Adesão
Os contratos de adesão, também conhecidos como contrato padrão, tiveram sua ascensão após a revolução industrial e trouxeram para o direto tanto consequências boas como ruins.
Como ponto positivo tem-se a maior celeridade com que os contratos são celebrados, fato este que traz vantagens sobre tudo para o fornecedor.
Como ponto negativo tem-se o fenômeno da “despersonalização” dos contratos, pois o texto do instrumento do contrato já é previamente preestabelecido pelo fornecedor, e a ele não interessa quem será a pessoa que vai aderir ao contrato. Com isso, o consumidor deixa de ser uma pessoa identificável, passando a ter sua denominação a ser variada de acordo com o tipo de contrato (usuário, segurado, associado, cliente, adquirente, aderente, etc).
Deve ser ressaltado que os contratos de adesão não são um novo tipo de contrato, como já exposto anteriormente, sendo na verdade uma nova forma de realização daquelas figuras contratuais já existentes e amplamente conhecidas pelos intérpretes do direito, advindas como consequência do modo de produção capitalista-massificado. Diga-se, ainda, que os contratos de adesão não são repudiados pelo ordenamento jurídico.
Após essa breve digressão, faz-se necessário passar a análise dos requisitos formais necessários para o contrato de adesão.
Inicia-se afirmando que para o CDC para que as disposições contratuais valham não é suficiente que haja a pura e simples previsão delas no instrumento do contrato, e que as partes tenham assinado o mesmo. Faz-se imprescindível o respeito a uma serie de formalidades legais.
O regramento específico do tema está previsto no art. 54 do CDC, que reza o seguinte, em sua redação original:
Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
§ 1° A inserção de cláusula no formulário não desfigura a natureza de adesão do contrato.
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§ 2° Nos contratos de adesão admite-se cláusula resolutória, desde que a alternativa, cabendo a escolha ao consumidor, ressalvando-se o disposto no § 2° do artigo anterior.
§ 3º Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor. (Redação dada pela nº 11.785, de 2008)
§ 4° As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.
§ 5° (Vetado)
A regra que mais nos interessa no presente momento é a do § 3° do artigo ora em comento. Desse paragrafo, infere-se que o contrato deve ser escrito de forma clara pelo fornecedor para que seja respeitado plenamente o Código de Defesa do Consumidor. Mas o que poderia ser considerado “forma clara”?
Sabe-se que o fornecedor, na maioria dos casos, elabora suas publicidades com a intenção de que seus produtos ou serviços sejam adquiridos por quem quer que possa pagar seu preço, não interessando, para tanto, a condição cultural do adquirente, mas sim a condição financeira que este possui para comprar seus bens e serviços.
A partir desse raciocínio, se infere que o fornecedor, quando vende seus produtos e serviços não procura contratar com o “homem-médio”, contratando na verdade com o homo economicus.
Justamente por esse motivo, a clareza com que o contrato de adesão deve ser redigido deve ser analisada levando-se em conta um padrão ainda menor do que o do “homem-médio”, pautando-se sempre no princípio da proporcionalidade.
A outra parte da disposição do §3° do art. 54 determina, em sua redação anterior, que os contratos fossem redigidos “com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor”.
O legislador optou, novamente, por se utilizar de conceitos vagos, como “ostensivo” e “legível”, os quais devem ser aferidos pelo Judiciário de acordo com o caso concreto. Contudo, apesar de vagos, e aparentemente simples, os contratos consumeristas não vinham seguindo fielmente esta regra.
Assim, com o objetivo esclarecer esta regra que primava pela proibição da inserção de letras que pelo seu diminuto tamanho não podiam sequer ser lidas pelo consumidor, o CDC, por meio da Lei 11.785, de 22 de setembro de 2008,
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modificou a redação do §3° do art. 54 do CDC, que passou a ter a seguinte redação:
Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor. (Redação dada pela nº 11.785, de 2008)
Percebe-se com essa nova redação, que a proteção ao consumidor se torna mais específica, ficando agora estabelecido que o contrato deve trazer letras com tamanho de fonte não inferior ao corpo doze. A regra, que era de cunho subjetivo, passa a poder ser aferida de forma amplamente objetiva.
Estas formalidades essenciais instituídas no art. 54 e seus parágrafos do CDC possuem grande importância para as relações consumeristas, visto que nos contratos de adesão, a vulnerabilidade do consumidor é ainda maior, precisando de normas que se destinem exclusivamente para este tipo de negocio jurídico
4.3 Das Práticas e Cláusulas Abusivas
O CDC previu em seu bojo uma série de cláusulas e práticas abusivas que não poderão ser realizadas pelo fornecedor. Tais disposições, que limitam bastante o princípio da autonomia da vontade, não poderão ser desrespeitadas pelas partes, por serem consideras cogentes, ou seja, insuscetíveis de qualquer modificação voluntaria.
Caso se desrespeite o mandamento legal, a inevitável consequência será a nulidade absoluta da cláusula ou, até mesmo, de todo o contrato.
Os artigos 39 e 51 do CDC vedam em seus incisos uma série de condutas, para que seja possível a proteção do consumidor contra a supremacia do interesse econômico, reconhecendo-se, assim, a vulnerabilidade deste.
No art. 39 há vedações da chamada venda casada (inciso I), da negativa de atendimento injustificado ao consumidor (inciso II e IX), da venda de produtos com data de validade vencida (inciso VIII), além de se proteger o consumidor de condições potestativas puras nos contratos (inciso III, X, XII, e XIII).
Já no Art. 51, busca-se em linhas gerais, que as cláusulas contratuais sejam editadas em respeito ao principio da boa-fé objetiva (inciso IV, in fine), e
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que o consumidor não seja exposto de forma abusiva a condições previamente estabelecidas pelo fornecedor.
Um dado interessante que está presente em ambos os artigos é a utilização maciça de conceitos jurídicos indeterminados.
A utilização desses conceitos é explicada pela impossibilidade de se prever exaustivamente todas as cláusulas e práticas abusivas possíveis dentro de uma relação consumerista. Pensando assim, os elaboradores do CDC fizeram uso de expressões amplas como “vantagem manifestamente excessiva” (Art. 39, V), “justa causa” (Art. 39, X), “obrigações iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada” (Art. 51, IV), e “desacordo com o sistema de proteção ao consumidor” (Art. 51, XV).
Diante dessa inteligente alternativa adotada pelos elaboradores do código, pode-se dizer que a análise da existência de abusividade ou não de uma prática ou cláusula contratual poderá sempre ser feita no caso concreto, desde que respeite os princípios da proporcionalidade e do livre convencimento motivado do magistrado.
Dentre os conceitos jurídicos indeterminados acima evocados, o que merece maior destaque é aquele que está previsto no Art. 51, XV, que traz a seguinte redação:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
[...]
XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor.
Quanto às cláusulas contratuais abusivas, definidas no art. 51 do CDC, a situação é bastante simples, pois o próprio caput do referido artigo traz a solução: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que [...]”.
Não resta dúvida, portanto, que as cláusulas serão nulas e de tal nulidade poderá ser feita requerida pela parte prejudicada, pelo Ministério Público ou mesma decretada de ofício pelo Juiz, quando conhecer do caso concreto (Art. 168, CC).
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Ressalte-se, ainda, que como se trata de cláusula nula, não há que se falar em prescrição ou decadência, uma vez que segundo determina o artigo 169 do Código Civil, “o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo”. Além disso, a decretação da nulidade do negócio, em virtude de o mesmo conter cláusulas abusivas poderá atingir o contrato todo, ou apenas parte dele. Dessa tal maneira, se for possível a retirada dos efeitos de uma cláusula contratual sem que se ofenda o contrato em seus objetivos principais, o mesmo poderá ainda ser aproveitado, não sendo obrigatório, pois, que todo o contrato seja declarado nulo, uma vez que a manutenção do contrato alcança muito melhor o interesse publico, na maioria dos casos. Já quanto às chamadas práticas abusivas (Art. 39), das quais podem-se citar a Venda Casada (inciso I), o fornecimento de produto sem solicitação (inciso III) e a execução de serviço sem elaboração de orçamento (inciso IV), o Código de Defesa do Consumidor não foi tão expresso nos efeitos como fora nos casos do Art. 51, vedando a prática dessas condutas sem informar quais as consequências de sua utilização. Assim, para saber o efeito do uso de práticas abusivas, que acabam se inserindo em contratos, é necessário, mais uma vez, a utilização do Código Civil em seu artigo 166, VII, que possui a seguinte redação: Art.166 - É nulo o negócio jurídico quando: [...] VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. Essa situação se encaixa perfeitamente ao caso das práticas abusivas, pois o Código de Defesa do Consumidor as proibi sem cominar as devidas sanções. Dessa forma, tem-se, por exemplo, que quando se insere num contrato a estipulação de uma “venda casada” (art.39, I), essa disposição contratual será nula. Destarte, nada impede que o contrato continue valendo, desde que tal cláusula seja retirada, valendo para tanto os mesmos comentários feitos acima, quando da analise da cláusula abusiva. Percebe-se, portanto, que há em nosso sistema normativo um conjunto eficiente de proteção ao consumidor contra as práticas e cláusulas abusivas, não
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sendo relevante saber se houve ou não concordância previa do consumidor com a inserção de tais cláusulas. Trata-se de normas de ordem pública, inderrogáveis pela vontade das partes. CONCLUSÃO
Por tudo o que foi exposto no presente trabalho, pode-se concluir que o Código de Defesa do Consumidor é uma das obras legislativas mais importantes da história do nosso Direito.
Após um período em que o princípio da autonomia da vontade era considerado regra absoluta, o Estado que era liberal passa a ter uma visão mais social, se vendo na obrigação de criar normas e princípios que pudessem regular a relação contratual, tornando-a mais justa. Fato esse que se torna possível, principalmente, com a criação de CDC.
Esse diploma legislativo trata-se de uma ferramenta que surge como uma das principais formas de se alcançar o tão desejado respeito ao princípio da igualdade, uma vez que as barreiras quase intransponíveis que separam fornecedores de consumidores são rompidas, protegendo-se a parte mais fraca nessa relação, na maioria das vezes tão desigual.
Não se pode mais falar de forma absoluta que o contrato faz lei entre as partes e que quem assina um contrato o fez porque concordou com suas cláusulas, sendo, portanto, válidas e plenamente eficazes. O Direito atual não se contenta mais com essa mera igualdade formal, pois a Constituição da República, carta maior do país, somente será respeitada se as pessoas forem tratadas na exata forma de sua desigualdade, buscando-se, portanto, a tão sonhada igualdade material.
Os contratos consumeristas somente serão válidos e terão suas cláusulas respeitadas se nenhuma das partes estiver subjugada aos direitos da outra, ou seja, somente é valido o contrato se ambas as partes puderem obter ganhos recíprocos, sendo necessário para tanto, que se respeite nessa relação o princípio da função social, da boa-fé objetiva e da equivalência material do contrato.
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Estes princípios estarão dispostos no Código de Defesa do Consumidor e serão responsáveis junto com as cláusulas reguladoras desse diploma legislativo por relativizar a autonomia da vontade nos contratos de consumo.
Dessa forma, percebe-se a importância do estudo ora em comento, visto que as relações consumerista, que possuem como característica a vulnerabilidade do consumidor, necessitam da intervenção Estatal advinda do CDC para proporcionar uma maior proteção a parte hipossuficiente dessa relação contra a liberdade contratual proposta pela autonomia da vontade.
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