INTRODUÇÃO

 

Com um objetivo mais direcionado, este paper estuda a problemática acerca da liberdade de escolha de um individuo em ajudar ou não no tratamento médico de outro, conciliando os princípios fundamentais da Constituição da República Federativa do Brasil como principais norteadores de teor científico e jurídico ao seu embasamento.

No que tange a problemática principal, percebeu-se a necessidade de se focar no princípio fundamental da liberdade previsto, em entrelinhas, no terceiro artigo da norma máxima brasileira, inciso I: “Construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Liberdade é o estado de pessoa livre e isenta de restrição externa ou coação física ou moral. Consiste na isenção de todas as restrições, exceto as prescritas pelos direitos legais de outrem.

A análise do caso, proporcionada pelo estudo da situação proposta, permite que se conclua que é imprescindível que não seja possível a negação do direito de liberdade que cada indivíduo tem a partir do momento em que nasce. Portanto, é notório que qualquer pessoa dotada de vida, personalidade e capacidade possui a plena faculdade de decidir perante uma situação como a exposta, sendo de sua decisão permitir ou não.

1 PRINCÍPIOS

1.1  DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA:

A dignidade da pessoa humana configura princípio embasador da Constituição, pois a concede sentido único e justificação na interpretação das suas normas, aliando os direitos e garantias fundamentais como seus critérios de funcionamento. É no valor desse princípio que o direito – interno e internacional - encontra o seu sentido, seu início e fim quando se trata do seu objetivo de compreender as normas.

Assim, constitui um valor absoluto, insubstituível e indispensável para o ser humano, que está ligado à moralidade, de maneira que o cidadão precisa, para possuí-lo, estar incluso ativamente dentro da sociedade – usufruir da sua cidadania, promover e buscar padrões básicos para suprir as suas necessidades, ter os seus direitos preservados. O homem, como particular, passa a ser razão fundamental para que o Estado e o Direito sejam estruturados e organizados.

Partindo-se desse pressuposto, a noção de dignidade está ligada a ideia de que o homem não pode submeter-se a objeto do Estado ou de terceiros. Dessa forma, fica claro que, mesmo que esteja em jogo a vida de outrem, é facultativo para qualquer indivíduo recusar-se a se submeter a qualquer tipo de intervenção, a menos que essa esteja fundamentada na lei. Toda e qualquer relação do Estado com os indivíduos e dos indivíduos com eles mesmos devem ser analisadas sobre a exclusão de serem consideradas inconstitucionais/ilegais, não devendo ir de encontro ao principio da dignidade humana. Alexandre de Moraes (2002, p. 129) assinala que:

A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. O direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, dentre outros, aparecem como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. (...) A ideia de dignidade encontra no novo texto constitucional total aplicabilidade (...) e apresenta-se uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece-se verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever configura-se pela existência do indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria. (...) Ressalte-se, por fim, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução n. 217A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10-12-1948 e assinada pelo Brasil na mesma data, reconhece a dignidade como inerente a todos os membros da família humana e como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.

1.2  DA SOCIEDADE LIVRE, JUSTA E SOLIDÁRIA:

Ao estabelecer esses objetivos fundamentais para o Brasil, a constituição envolve todos os participantes da vida social na sua finalização, estando, dessa forma, Estado e indivíduo com suas ações voltadas para a realização dos valores de liberdade, justiça e solidariedade. Constituem princípios iluministas que foram abordados e garantidos pela norma máxima a fim de que a particularidade do indivíduo e a sua relação com a sociedade e os seus formadores – Estado e povo – fossem garantidas.

O fundamento dos princípios da liberdade e da igualdade é o de dar oportunidade necessária para que cada indivíduo adquira respeito e conquiste o seu espaço perante a sociedade. As suas escolhas, iniciativas, crenças e atitudes, desde que coerentes e aplicáveis ao direito, devem ser garantidas perante terceiros. Intervenções apenas devem existir em virtude da norma e jamais em sua contradição, pois a legalidade da liberdade e da igualdade deve ser mantida.

O fundamento da solidariedade, no direito, deve se basear na noção de individuo comprometido com os vínculos da sociedade, pois os homens nascem livres e iguais – e assim o são perante as leis – inseridos em uma coletividade, onde as suas obrigações estão introduzidas na busca pelo desenvolvimento e manutenção da vida social. A ideia de solidariedade não mais está ligada ao estereótipo de caridade, auxílio ou filantropia mediante a liberdade de outro; mas, agora, como fraternidade, compreensão e sociabilidade. É a caracterização de direitos e deveres correlativos em uma relação interpessoal que, assim como a dignidade, é inerente ao homem, mas pode ser violada.

Esses três princípios configuraram uma forma de manter a unidade entre os homens, influenciando nas suas decisões e ações, garantindo o livre-arbítrio das suas vontades e desejos.

1.3  DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais do homem têm como finalidade o respeito a sua dignidade, protegendo-o contra a liberdade excessiva do Estado e estabelecendo mínimas condições de vida para o desenvolvimento da sua personalidade (MORAES, 2002). Assim, os direitos humanos estão diretamente relacionados com a não intervenção na individualidade do homem, de modo que a prescrição desses direitos encontra-se internacionalmente superior a de qualquer outro.

Os direitos individuais e coletivos – como igualdade, liberdade, vida, segurança, propriedade -, os direitos sociais, de nacionalidade e os direitos políticos são considerados imprescritíveis, inalienáveis, irrenunciáveis, invioláveis, universais, efetivos, interdependentes e complementares. Dessa forma, com a positivação de direitos, os cidadãos podem exigir determinados critérios, como a democracia, a sua liberdade de atuação e de tomada de decisão, entre outros. Somente o individuo, particularmente, dota desses direitos, ainda que exista comumente para todos.

É importante ressaltar que os direitos fundamentais jamais poderão ser utilizados em virtude de proteção de ilicitudes e atos contra a lei, demonstrando-se assim a limitação dessas garantias, visto que as normas estabelecidas pela constituição de cada país representam barreiras para a sua proposição.

2 LIBERDADE, VIDA E A POSSIBILIDADE DE ESCOLHAS

No que aborda a constituição, a questão da vida não é levada em consideração apenas no seu aspecto biológico, mas algo dinâmico, que está, inevitavelmente, se transformando, podendo passar a configurar morte. Qualquer coisa que interfira nessa transformação, nessa modificação estará contrariando a vida e, consequentemente, um princípio do direito, pois tudo o que a lei tutela e prescreve está diretamente ligado à vida humana e à sua manutenção. “A vida é fonte primária de todos os outros bens jurídicos.” (DA SILVA, J. A., 2011).

Apesar de não ser o provedor desse bem maior, o Estado tem, como uma de suas funções, assegurar a vida dos cidadãos, garantindo seus direitos e sua dignidade. Para Alexandre de Moraes, o direito à vida representa o mais fundamental dos direitos, pois constitui um pré-requisito para a existência e o exercício dos demais. Desse modo, a vida e a dignidade da pessoa humana andam coladas, ligadas intrinsecamente, quando, por exemplo, se toca na questão da liberdade: poder de autodeterminação, livre-arbítrio.

A liberdade, principalmente quando associada à autonomia da vontade – o que vai garantir ao indivíduo a sua faculdade de tomar decisões dentro do seu âmbito particular -, é um dos principais fatores a serem tratados quando se aborda a questão da individualidade: o seu reconhecimento e a sua limitação – tudo é possível desde que não interfira a particularidade de um terceiro. Por isso, o exercício da liberdade de cada um anda associado a sua autonomia.

Trazendo para um caso concreto, a relação da liberdade e da vida, além da autonomia da vontade – “seleção de escolhas” – com a faculdade de recusar tratamento médico para ajudar um terceiro: é notório que a constituição protege o direito à vida e da vida digna, principalmente, portanto, não há como falar de dignidade se os valores pessoais morais de determinado individuo não forem respeitados, se ela não tiver a liberdade, a autonomia de cultivá-los. Ante, ainda, ao fato de que se vive em uma democracia, a liberdade na sua mais geral concepção deve ser respeitada, para que se garanta dignidade à vida.

Assim, muitos doutrinadores acreditam que a recusa de tratamento médico em virtude do próprio individuo ou de outro é legal e legítima. As razões para a não submissão pode constar em várias hipóteses, mas o que deve ser levado em consideração é a sua proteção, a garantia e o respeito da sua autodeterminação, da sua liberdade e dignidade. Dessa maneira, não há, sequer, conflitos entre os direitos fundamentais, pois devem ser compreendidos em conjunto, coletivamente.

3 CAPACIDADE E INCAPACIDADE

O artigo primeiro do Código Civil assinala que toda pessoa é capaz de obedecer/cumprir seus direitos e deveres, seguido do segundo que conceitua que a personalidade civil de cada um começa no seu nascimento com vida. Ou seja, a personalidade jurídica é uma consequência de se nascer vivo, tendo aptidão para adquirir direitos e deveres, não significando possuir capacidade – a qual é alcançada gradativamente - para exercê-los.

As pessoas consideradas capazes juridicamente são aquelas que podem configurar como sujeitos de qualquer relação jurídica. Mas, há indivíduos que não podem dispor desse gozo/exercício por motivos maiores: são os juridicamente incapazes.

Existem os incapazes relativos e os absolutos. Os primeiro consistem naqueles que não possuem capacidade somente para determinados atos: os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; ébrios habituais e viciados em substancias tóxicas e deficientes mentais; os excepcionais e os pródigos. Portanto, devem ser apenas assistidos. Os incapazes absolutos são proibidos totalmente de exercer o direito – menores de dezesseis anos; enfermos ou deficientes mentais que não possuem discernimento suficiente; os que não podem exprimir as suas vontades, ainda que por causa transitória. Assim, precisam ser representados legalmente.

Nesse caso – de incapacidade – as decisões são tomadas e as medidas executadas em função do sujeito não dotado de capacidade, mas totalmente pautadas sobre os valores morais pessoais, sobre a condição final de buscar o bem do assistido ou representado, do seu tutor. Deste modo, como garantir o total usufruto dos seus direitos e garantias fundamentais, como a liberdade, a dignidade e a autonomia da vontade? O representante ou o assistente não devem agir deliberadamente, pois, por mais juridicamente incapaz que seja, qualquer individuo deve prezar e gozar dos seus direitos, servindo os mesmos como mediadores entre o direito, as leis e a sociedade e o sujeito em questão.

CONCLUSÃO

Ao se trazer a problemática dos princípios jurídicos para dentro de um caso concreto, buscando soluções para satisfazê-lo e fundamentos para justificá-lo, pode se resultar em um panorama de conflitos internos entre os distintos, ainda que complementares, mecanismos de defesa dos direitos. Quando se trata da questão de recusa de tratamento médico para a ajuda de um terceiro, a situação piora, pois entrarão em conflitos os mesmos direitos fundamentais, mas de lados e pertencentes a indivíduos opostos.

A liberdade, a dignidade, a vida, a igualdade, a autonomia da vontade deve sempre ser respeitada e constituem valores e garantias inerentes ao homem. Todos estes entram em contradição ao princípio da liberdade quando colocados em função dessa situação: ninguém pode ser obrigado a promover fraternidade, auxilio – mesmo que em busca da tão utópica sociabilidade – a outrem. O ser social configura sujeito essencial nas relações entre pessoas e entre pessoa e Estado, mas, legalmente, ninguém está sujeito a fazer aquilo que não deseja – a menos que esteja prescrito em lei.

A Constituição da República Federativa do Brasil, seu Código Civil e Penal, seus princípios e garantias fundamentais não elevam os indivíduos à posições diferentes da de cidadão. É legítima e legal a recusa de tratamento médico para ajudar um terceiro, visto que, apesar de estar se colocando a vida de outro em jogo, a vida do indivíduo também é igualmente importante, devendo ele, com a sua autonomia da vontade, com seus preceitos morais e éticos, suas crenças sociais, optar ou não pela solidariedade na forma de auxílio, compreensão e/ou fraternidade.

Em suma, a faculdade de recusa encontra resguardo nos princípios da liberdade, da autonomia da vontade e autodeterminação, da dignidade humana e até no da legalidade – pois a legislação prescreve a obrigação do tratamento somente quando o individuo corre risco de vida, sendo que o tratamento será realizado nele mesmo e não em terceiros.

Os juristas, somente, possuem o encargo, a responsabilidade de solucionar os conflitos ocorrentes entre os direitos fundamentais, pois não há hierarquização entre eles, não havendo como colocar um princípio superiormente importante a outro e muito menos elevar os direitos de um sujeito mais caros que os de outro.

REFERÊNCIAS

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 2007.

BRASIL Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Novo Código Civil Brasileiro. Legislação Federal. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 29 out. 2011.

DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34 Ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2002.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2002.

MORAES, A. de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 1997.

STOLZE, Pablo; PAMPLONA, Rodolfo. Novo Curso de Direto Civil: parte geral. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

 Autores: Rafaella Viana Pereira Murad e Mayana Stella de Araujo Silva