"Talvez nunca possamos derrotar esses porcos, mas não precisamos nos juntar a eles"

Murilo Castro (um brasiguaio)


Capítulo 1 - THE HOLY MAN


_Olhe, meu caro Valdir... Eu só vim para São Paulo pela necessidade pessoal que tinha de apagar o meu passado. Precisava de um período de anonimato completo. Aqui há milhões de humanos com problemas bizarros. O excesso populacional dessa cidade veio a ser um empecilho mais tarde, quando comecei a buscar algum conforto, privacidade e qualidade de vida. Mas no começo esse pandemônio foi de grande utilidade. Eu era só mais um forasteiro por aqui e o modo como era ignorado por todos me deu certa liberdade para que me ajeitasse de maneira conveniente. Os envolvimentos pessoais seriam inevitáveis e eu sabia que isso me custaria caro. O fato é que aqui não se tem escolha. - foi o que disse Murilo Castro para Valdir da Chave enquanto fumavam um cigarro ao lado da porta da garagem do prédio onde Valdir trabalhava como porteiro na Rua 7 de Abril, no centro de São Paulo. Havia chovido forte pouco antes e a rua estava molhada e imunda, o que acentuava a desolação do cenário. O calor era excessivo e o forte cheiro de urina se misturava ao da fritura que saía da cozinha de um bar próximo.

(Observações: Valdir era um colecionador compulsivo de discos, livros, revistas e gibis e por algum tempo foi o mentor intelectual de Castro. valdir poderia tranquilamente ocupar algum cargo administrativo em alguma corporação, mas gostava de ser porteiro noturno, pois esse era um trabalho que lhe proporcionava momentos inspiradores para apreciar sua estimada solidão e a possibilidade de conhecer de perto novos personagens para as histórias que escrevia para alimentar seus vários projetos literários. Foi o idealizador e editor da revistaFREAK POWER GENERATION, um pasquim contracultural de publicação irregular, geralmente quinzenal e politicamente incorreta até o tutano. Valdir publicava críticas musicais, literárias e cinematográficas. Excêntrico e ranzinza, também publicava contos de sua autoria, nos quais colocava os nomes reais de pessoas que conhecia, misturando fatos reais com a sua imaginação fértil e suja. Castro teve acesso a alguns velhos e raros exemplares cedidos por Valdir, e convencionou chamá-los de 'sagradas escrituras'. Mais tarde surgiu uma nova publicação idealizada por Valdir, oTABLÓIDE BRASIGUAIO,que existe até hoje e também tem publicação irregular. Esse pasquim alternativo é a razão pela qual Castro - um brasiguaio esgotado emcionalmente pela vida na cidade grande - procurou estabelecer contato com Valdir, quando se deparou ao acaso com um exemplar antigo que tinha um telefone de contato que já não existia mais. O contato entre os dois acabou sendo estabelecido quando o dono de um sebo do centro de São Paulo, amigo de ambos, os apresentou tempos depois. Valdir havia sido sócio desse sebo durante um certo tempo, e Castro o frequentava desde que mudou para São Paulo. Numa ocasião em que mencionou o fanzine para o então dono do sebo, este os apresentou.

Entre 1982 e 1984 Valdir teve uma banda de rock chamadaBanco de Sêmem, que unia psicodelia garageira dos anos 60 com lendas indígenas. Criavam seus próprios instrumentos. Chegaram a lançar um compacto em 83. Aliás, este foi o último ano em que se lançou compactos no mercado fonográfico brasileiro. A partir de então tivemos que aguentar o lançamento de muitos álbuns com dez ou doze músicas onde apenas duas delas prestavam. Em 1987 escreveu um livro chamandpBASEADO NELES, amplamente ignorado pelo mercado editorial. Isso não o magoou, porque àquela altura Valdir já sabia que os ídolos de verdade se tornariam cada vez mais escassos. Os famosos causariam cada vez mais embaraços e constrangimentos à espécie humana, porque a fama não tinha nada a ver com mérito. Tornar-se famoso parecia infame para ele. Ídolos de verdade, aqueles que uniam talento, inteligência e arrogância sincera faziam falta em todos os ramos de atividade humana, não apenas nas artes. Além do mais, o conteúdo do livro era atemporal. Um dia seria descoberto ao acaso e nesse dia o livro estaria mais atual do que na época em que foi escrito.

Foi Valdir da Chave quem atirou um pirulito no olho do David Bowie num show na Noruega em 2004. Essa conjunção não tão comum de ações em sua trajetória, unida a uma personalidade mal humorada fascinava o até então matuto e primitivo Castro. Valdir era um homem baixo, barrigudo, com um cabelo preto grosso e crespo, grisalho nas têmporas, com uma perene expressão ressentida. À primeira vista você não diria que ele era fã de rock alternativo, mas voltemos à conversa de ambos naquela noite...)

_ Eu entendo o sentido da sua busca. 'Mudar a vizinhança para renovar a esperança', já dizia o velho Gastoni. Realmente se faz necessário mudar de ares vez ou outra. Não há noite em que eu não sonhe com mílícias anarquistas devastando São Paulo, desossando a estrutura social como a conhecemos, e começando pelo centro da cidade, causando histeria em massa numa terça pela manhã. Para esse acontecimento, uma terça seria melhor que uma segunda, porque o povo já teria retomado o ritmo da semana, estaria mais conformado, mais anestesiado, e então o baque seria mais brutal. Se isso acontecesse numa segunda, muita gente se sentiria feliz com o distúrbio, ou pensaria estar sonhando.- disse Valdir.

_ Então por que diabo de razão você ainda mora em São Paulo? - perguntou Castro.

_ Tem a ver com o que você disse antes. Não há muita escolha. Sou como um viciado. Do ponto de vista da qualidade de vida seria viável mudar pro meio do mato, onde viveria mais momentos de tranquilidade. Não optei pela solidão rural porque isso é uma meta para quem ainda tem ego. O ódio que desenvolvi da espécie humana me mantém perto da massa, por mais que isso soe contraditório. Isso acontece porque meu ego praticamente já não existe e gosto de ver o caminho que as coisas estão tomando, principalmente nas cidades grandes. É como se eu não tivesse o que convencionamos chamar de vida. As outras pessoas também não tem uma vida, e a desvantagem delas é pensar o contrário. A felicidade do niilista existe, meu amigo. Ela apenas custa mais caro e vem em doses homeopáticas. Ela existe sim, mas é quase clandestina. A felicidade do niilista é imoral, e imoral é tudo o que vale a pena. - disse Valdir.

_ Valdir, o macabro é muito engraçado no palco e nas telas, mas é duro de ser vivido...
- disse Castro.

_ Eu já nasci póstumo. Jamais aceitaria ser um escravo feliz. Ao invés disso tentei me tornar um homem livre. Mas depois de adulto comecei a ver conspiração em tudo o que me cercava. Leis elaboradas por banqueiros e não por legislativos. O grande rebanho humano deslocando-se passivamente para o abate. Há pânico criado cientificamente. Descobri que sou um embuste porque a inteligência, na minha opinião, tem a ver com a adaptação individual a esse pandemônio que é isso que chamam de sociedade. Cheguei a cogitar uma mudança para o Nordeste para descobrir músicos locais e montar um selo e ganhar uma grana depois vendendo tudo para o David Byrne, mas ainda não levei o projeto adiante.- disse Valdir.


 _ Isso não me parece certo, Valdir... David Byrne, Sting, Paul Simon... Como você faria pra lidar com essa gente daWorld Music? - perguntou Castro.

_ O que não é certo pode ser necessário! Até mesmo para viver fora da lei é preciso ser honesto. Aliás, eu diria que principalmente os fora da lei precisam ser honestos. Quantas vezes por dia você vê alguém fazer alguma coisa certa? Quantas vezes na vida você viu alguém agir com classe? Quase tudo o que vejo as pessoas fazerem ou falarem me causa um constrangimento muito grande, em nome de toda a humanidade.Só conheço dois tipos de pessoas: as que são capazes de tudo e as que não são capazes de nada. A maioria delas, no entanto, são verdadeiras mutações aberrantes. Então, ao invés de focar meus esforços liderando uma campanha ateísta ou com qualquer outro direcionamento, prefiro ver o povo se afogar em culpa cristã e no medo que resulta dela. É a maneira mais íntegra que encontrei de tentar fazer oposição ao contexto. Uma vingança passiva, por assim dizer. O que tenho em mente agora é fazer cinema sujo de velho pervertido. - disse Valdir.

_ Valdir, você é um sujeito rude e inflexível, um pensador cético... Isso é tudo o que se precisa para se converter num nobre, ainda tardiamente, para os padrões burgueses... - disse Castro.

_ Eu já disse que nasci póstumo, e nasci na grande camada indigente da sociedade, igual a qualquer humano que tenhamos conhecido ou que venhamos a conhecer... Você vai lembrar de mim quando estiver naquelas festas promovidas por gente engajada e faltar cerveja. - disse Valdir.

_ Detesto gente engajada, não frequento as festas dessa gente, são verdadeiras ciladas. A militância mala é algo que eu repudio com toda a veemência da minha força interior. Essa desgraça tinha tudo pra ter morrido há tempos. - disse Castro.

_ Mas logo você estará em alguma dessas festas, por mais torpe que seja a razão da sua presença, e vai faltar cerveja e você vai detestar ainda mais as pessoas engajadas! Assim que um hippie anunciar que a cerveja acabou, outro hippie vai pegar o violão e vai cantar uma do Geraldo Vandré e aquela maldita rodinha de violão vai ser formada. Os golpes virão ao mesmo tempo, e serão golpes duros, pode apostar. São perdedores. É gente azarada. Você pode ser um otimista que pensa que o contato com um sujeito de sorte pode inverter momentaneamente a sina negativa do azarado, mas o fato é que o azar contagia mais que a sorte. Muito mais! - disse Valdir.

_ O que realmente me chateia é a burrice dos engajados, que se recusam a entender que não há nada pelo que lutar hoje em dia... Tudo é forjado por algumas poucas pessoas, as que realmente dão as cartas e que se escondem atrás desses fantoches bizarros, como são os presidentes das nações ditas soberanas.. Prefiro pensar no que realmente me diz respeito, no que faz parte da minha verdade triste. Não sei... De uma certa forma me sinto protegido disso porque tenho uma tendência a me sentir mal nas manhãs de São Paulo e isso faz com que minha cabeça fique ocupada com a inevitabilidade dos pesadelos cotidianos. Não é simplesmente tédio. Sonho frequentemente com grandes explosões e outras coisas relacionadas às destruição em massa e quando acordo sinto uma depressão terrível pelo fato de ter sido tudo somente sonho. Tento debilmente voltar ao sonho e em seguida me vem a vontade matinal de chorar de agonia por mais um amanhecer. Todas as pessoas que eu vejo nas manhãs dos dias de semana me parecem destroçadas pela vida, derrotadas, desesperadas, mas ainda assim incapazes de se rebelar. São apenas zumbis movidos por uma última fagulha de orgulho, ou seja lá do que for. Divertem-se com entretenimentos de massa, baratos. Conseguem acordar cedo todos os dias, em manhãs em que tudo parece amarrado, moroso e difícil. Mobilizam-se pra mover um mundo cujos objetivos eu jamais compartilhei e jamais me identifiquei. Tento fazer com que nessas horas meu contato com as pessoas fique o mais limitado possível. À medida que vamos carpinando as ervas daninhas do nosso caminho, vemos que não sobra nada. É triste, mas ao menos que se tenha dinheiro e nada sério ou urgente ou perigoso pra se fazer, as manhãs são uma parte tenebrosa do dia nessa cidade... Muitas vezes eu acordo sobressaltado de pavor. Manhãs existem pra ser agradáveis, como o são em lugares bucólicos. Aqui tudo parece não apenas triste, mas desumano mesmo... Os tormentos matutinos estão fervendo nas repartições públicas, nos apartamentos em faxina... Sendo assim, eu penso que dependendo das circunstâncias incertas e instáveis, e até mesmo numa festa de gente engajada eu ainda teria alguma saída... Analisando mais friamente, a vida anda desgraçada pra imensa maioria das pessoas. Pouquíssima gente escapa desse sentimento de tristeza perene. - disse Castro.

_ Você não pode aceitar seu próprio fracasso assim tão facilmente. É preciso antes disso acreditar que a extinção da espécie humana chegará antes de sua derrota individual definitiva. Ou esperar para ser abduzido. A abdução é uma benção. Se isso não acontecer nunca, é preciso que ao menos você não se esqueça de que no fim das contas nossos reais anseios se resumem a ter bom sexo e a ter dinheiro suficiente para o resto. O meu desejo por ver esse planeta ser pulverizado, mesmo que seja comigo a bordo, se equivale ao meu desejo por sexo e por dinheiro. - disse Valdir.

_ Valdir, eu devo dizer que Frank Zappa e Captain Beefheart são apenas esforçados. Você sim é um gênio de verdade. - disse Castro.

_ Não sei... Se eu também fosse esforçado como eles talvez conseguisse maior satisfação na vida. Não sei dizer qual tipo de satisfação exatamente, talvez porque eu já não tenha mais tantos anseios. Eu tenho uma dislexia voluntária. Simplesmente me desconecto do mundo quando as coisas ao meu redor não me agradam. Eu deixo que as coisas fluam do jeito que a maioria das pessoas prefere. Apenas tento não ser vítima das consequências bizarras das ações humanas. Não há como fugir realmente disso, mas é possível viver sem atribuir aos outros a culpa pelas nossas desgraças. A maioria das pessoas não prima pela inteligência, nem pela classe e nem pelo bom gosto. Eu penso que sendo assim a humanidade vai ruir mais rapidamente. Eu só não gosto de ser um agente ativo desse processo. Não é só pra me livrar da culpa. Minha maior força e minha maior fraqueza talvez seja ter um compromisso genético com meus princípios.

...

A partir daí a chuva voltou a cair em torrentes e o aspecto que a Rua 7 de abril tomou depois de poucos segundos ao ficar realmente molhada parecia algo saído de um filme independente de produção barata. De um bar próximo ouvia-se a programação da Rádio América. Dali saía um forte cheiro de fritura que misturado ao de urina e frutas estragadas espalhadas pela rua deixavam o ar carregado, apesar da chuva.

A conversa entre Castro e Valdir da Chave seguiu de modo que a palavra 'conspiração' foi repetida 54 vezes. A palavra 'desumanização' foi dita 29 vezes. A palavra 'colapso', 22 vezes. Nos dias seguintes o pior aconteceu. O mundo não acabou.

Capítulo 2 - BAD NEWS IS COMING

Uma ordem cósmica mudou a trajetória de Castro em São Paulo. Num breve lapso de paz interior, guiado por um indistinto impulso interior, nosso protagonista esteve tentado a sucumbir aos aparentemente calmos e seguros caminhos da autodomesticação. Não sabia ao certo se essa autodomesticação se daria de uma forma voluntária ou involuntária, mas sabia o quanto essa idéia era contraditória para qualquer um que saísse de uma pequena cidade paraguaia para viver numa cidade como São Paulo, principalmente se tratando de um cara solteiro de 38 anos e com um passado até certo ponto aventureiro. Era uma espécie de Bruce Springsteen paraguaio. Gostava de pegar caronas, ouvir músicas que falavam sobre estradas, ler livros de aventuras, usar camisetas justas e outras springstinices.

A condição de solteiro o fazia aparentar menos idade. Mas apesar de tudo, ainda parecia viável procurar por um trabalho e por uma mulher mais jovem, que trouxesse de volta a ele alguma perspectiva do que pensava ser uma vida próspera numa cidade grande. Castro sabia que essa seria uma jornada quixotesca.

Na primeira oportunidade real de associar-se a uma boa moça, Castro à sua maneira quebrou o coração de uma potencial candidata a dividir com ele suas desventuras em São Paulo. Antes de apresentá-la ao leitor é importante salientar que o Rock n’ roll foi o culpado. Ele sempre leva a culpa mas sempre acaba se safando. Mas voltemos ao que realmente interessa nesse momento: Quando Castro precisou convencê-la de que o show do Credence ClearwaterRevisited( não era o Credence ClearwaterRevival) para o qual a moça já havia comprado os ingressos, não era uma apresentação do Credence verdadeiro, uma parte de sua bondade e de sua boa vontade se esvaiu. A banda em questão nem ao menos tentou vender o show de maneira enganosa, mas o público era burro demais. Foram necessários esclarecimentos a ela sobre isso, algo que o surpreendeu.

Com esse episódio, Castro pôde mais uma vez constatar que os paulistanos não eram tão espertos como ele imaginava antes de conhecê-los de perto. Pensava que pela grandeza da cidade e pelo acesso à informação supostamente mais privilegiado que seus habitantes tinham, era certo que uma jovem graduada tivesse o mínimo de cultura geral, especialmente no que dizia respeito à música. Esse engano teve um efeito estranho sobre Castro, como quase tudo que a cidade ainda viria lhe proporcionar.

Vamos então contextualizar o surgimento da tal garota na vida de Castro; Num curto período em que ele viveu de favor no apartamento encardido de Valdir da Chave, antes que achasse uma morada definitiva, e esteve em meio a todos aqueles discos e livros, muita papelada por toda parte, como se fossem enormes coleções de pergaminhos alexandrinos empilhados no chão e em prateleiras improvisadas montadas com caixas de madeira que tomavam suas paredes e as privavam de quadros, fotos ou posters, Castro numa tarde de meio de semana pensou ter visto a sua salvação sentimental e (por que não?) financeira. Ao mesmo tempo em que Castro estava entrando no prédio de Valdir, Maria Eugênia saía de lá apressada e apreensiva para a rua. Castro olhou para o relógio dohallde entrada do prédio e constatou que eram cinco e quarenta e cinco da tarde. Imaginou que no dia seguinte ela sairia mais ou menos no mesmo horário, e teria então 24 horas para encontrar um motivo para abordá-la. No dia seguinte ela não saiu e nem entrou no prédio naquele horário. Ele ficou fumando cigarros das cinco e meia até às seis e quinze. Era melhor esquecer momentaneamente o assunto e encontrá-la ao acaso num outro dia.

O apartamento de Valdir ficava no décimo sétimo andar de um velho edifício na Rua Major Sertório, em meio a putas, travestis, cafetões, traficantes e ladrões. E eis que quando já tinha mesmo esquecido da menina, cinco dias depois (dessa vez era um domingo à tarde), Castro viu a moçaindiecomportada entrando no prédio, e dessa vez ele também estava entrando, de modo que pôde constatar que ela morava no décimo quinto andar, pois subiram juntos pelo elevador.

Com o passar dos dias ele também constataria que dependendo do horário que usasse o elevador para descer ou subir, a encontraria novamente, saindo ou voltando do trabalho. Maria Eugênia trabalhava com pesquisas na Praça da República. Era pouco mais que um subemprego, mas para ele isso pouco importava. Bastava-lhe o fato de que ela parecia honesta, era suficientemente bonita e tinha um ar de garota meiga.

Nessas primeiras vezes em que a viu, Castro chegou a pensar que Maria Eugênia só podia ser uma garota no mínimo nota 7, em sua escala de classificação de qualidade humana. Num primeiro momento poderia jurar que a moça tinha bom gosto musical e que era cinéfila, baseado apenas na aparência da moça. Enganou-se nesse julgamento inicial, afinal de contas era fácil para muitas garotas forjar um visualindie.De qualquer forma, Maria Eugênia era uma boa garota. Apenas não correspondeu ao pré-requisito de se revelar logo de cara uma pessoa culta.

Castro achava que ela o apresentaria bandas alternativas da Escócia que ninguém mais conhecia. Coisas obscuras do cancioneiroindiemundial. Mas ela eraindiesó no visual, com seus cabelos castanhos, lisos, claros e curtos, com uma franjinha charmosa e óculos de armação grossa, um metro e sessenta e oito de altura e algo em torno de 58 quilos.

O episódio do show do falso Credende aconteceu quando ela resolveu que só poderiam transar depois que saíssem juntos para algum programa divertido que não incluísse sexo. Uma vez vencida essa etapa burocrática que a moral da garota exigia, poderiam transar depois sem problemas.

No caminho do evento, Castro não pôde deixar de dizer a Maria Eugênia que o sexo somente a partir do segundo encontro caracterizava machismo feminino, uma vez que a garota estava impondo essa condição para que pudesse transar sem culpa depois. Ela respondeu dizendo que caso abrisse mão dessa etapa burocrática, imperaria o machismo masculino, com ela podendo eventualmente ser abandonada com a fama de uma vagabunda que transa no primeiro encontro espalhada pela vizinhança.

_ Sem o John Forgetty, o Credence não é Credence, minha filha. É banda cover, como essas que a gente poderia ver nos bares da 13 de Maio. Você pagaria menos pelo rolê. Sobraria mais dinheiro pra pizza e pra cerveja. De qualquer forma o baixista e o baterista são os originais. Já é a terceira vez ue ele vem ao Brasil. Pode ter certeza que virão muito mais. Tocarão aqui com a mesma frequência que o Deep Purple ou o Iron Maiden. Esses provavelmente moram no Brasil e saem eventualmente pra tocar em outros países. Pra eles, tocar aqui é jogar na certeza. - disse Castro. Ela se sentiu enganada pelos promotores do show, que em momento algum venderam o espetáculo como não sendo uma enganação. Acabaram indo ao show, e era incrível como no percurso da entrada da casa de espetáculos até a pista, grande parte do público não tinha a menor idéia de que não se tratava de uma banda com sua formação clássica. O que faltava era justamente o líder, vocalista e compositor das músicas, que em momento algum do show foi sequer citado, já que evidentemente existiram atritos judiciais quando essa banda, uma verdadeira mula sem cabeça, foi colocada na estrada.

_ Ainda bem que o Robert Plant não gosta nem de ouvir falar em reunião do Led Zeppelin. Você já imaginou se o Cure fizesse uma turnê sem o Robert Smith? Ou se o Jethro Tull tocasse sem o Ian Anderson? Ou os Beatles só com o Pete Best? Ou o King Crimsom sem o Robert Fripp? Aqui no Brasil já pudemos presenciar show dos Doors sem o Jim Morrison, mas ainda assim é um caso diferente, porque todo mundo sabe que o cara morreu e as pessoas sabiam que se tratava de uma mula sem cabeça. O show do Credence Clearwater Revisited não é vendido como o original, mas também não há nenhuma ênfase nesse detalhe, e o público brasileiro definitivamente não prima pelo conhecimento sobre rock. De qualquer forma foi divertido, embora o repertório seja bastante batido. Preciso beber um pouco agora... - disse Castro, seco e ríspido, mas sem deixar de ser gentil por estar esclarecendo algo culturalmente importante para aquela garota que pouco tempo antes havia chamado sua atenção justamente por sua aparência denerd.

Depois do show, já na rua, um homem de aproximadamente 50 anos, grisalho, vestindo roupa domingueira, e que estava acompanhado de seu filho adolescente fazia a seguinte observação, antes de entrar em seu carro: "Você viu como ele ainda canta bem, meu filho? Está estourando de gordo, mas ainda canta muito!!!" _ Depois dessa a gente tem mesmo é que ir pra casa. Vou começar te cobrindo de chantily e terminar te recheando com Leite Moço, minha filha...

Meses depois, em Maio de 2011, John Forgetty faria uma apresentação em São Paulo. O casal não foi a esse show. Castro mudou-se do apartamento de Valdir quando descobriu que o baleiro que o amigo mantinha ali servia para que as criancinhas do prédio tirassem mais facilmente a roupa quando Valdir pedisse. Elas invariavelmente tinham que experimentar o 'pirulito eterno' do Tio Valdir antes de se empanturrarem de balas com sabores sortidos. Quando questionado por Castro sobre seus perversos hábitos sexuais, Valdir argumentou: "Quando eu tinha 18 anos já gostava de me envolver com jovenzinhos e jovenzinhas, então não vai ser agora que vou deixar de gostar..."

Havia, no entanto, algo que Castro realmente não conseguia entender com clareza. Quando viveu no apartamento de Valdir, Castro se deparou com inúmeras correspondências enviadas por editoras com propostas para publicar os escritos de Valdir, entre ensaios, contos e um romance ao qual Castro nunca teve acesso. Na mesma ocasião em que Castro havia questionado Valdir sobre suas estripulias sexuais, o questionou também sobre as recusas para os convites das editoras. "É o ônus da independência. Eles queriam sempre me editar erroneamente, multilando o sentido das minhas idéias" - disse Valdir.

...

Foi triste quando a cabeça de Castro entrou definitivamente em parafuso. Ele havia sido prevenido por Valdir.

Numa noite em que descia pela escadaria do prédio a procura de cadernos de cultura de jornais do dia anterior, Castro ouviu de dentro de um apartamento que ficava dois andares abaixo do apartamento de Valdir os seguintes gritos:

"Aaaaiiii.... Fode, garotão!!! Você está comendo o cu de um macho, garotão!!! Foda forte, caralho!!!! Você está comendo o cu de um macho!!!"

Quem gritava era o síndico do prédio. Dentro do prédio, o sujeito era onipresente. Era quase impossível não encontrá-lo ao entrar ou sair do edifício. O que chocou Castro não foram os gritos de uma relação homosexual, mas a surpresa por tais gritos terem partido de alguém tão obtuso quanto aquele jovem senhor que deliberadamente se declarava homofóbico. Um sujeito asqueroso sob todos os aspectos. Era blogueiro também, e havia poucas coisas que Castro odiasse tanto quanto os blogs e os blogueiros. Para ele, essas eram pessoas que faziam questão de documentar verdadeiros cagalhões em forma de texto, diariamente, poluindo cada vez mais a rede. Expunham sua imbecilidade sem qualquer pudor ou medida. Faziam parte de uma grande arena onde cada um pensava ter um talento especial com as palavras, mas onde na verdade eram todos fracassados literariamente. Então a sanidade de Castro começou a ruir porque a partir de então perdeu o medo dos desdobramentos da história da humanidade. Aconteça o que acontecer, esses humanos merecem. Ele começou a aprender que o medo poderia ser um instinto saudável, não apenas um sinal de fraqueza. O fluxo de imundice que jorrava diante de seus olhos a cada dia foi demais para Castro.

Bizarrices à parte, a burrice e a ignorância das pessoas com quem Castro tinha que lidar diariamente não se limitavam à completa falta de noção que elas tinham no que se referia a bom gosto musical, literário ou cinematográfico. Elas simplesmente pareciam se deixar enganar. Desde sua chegada a São Paulo, a idéia que ele tinha da esperteza dos paulistanos tinha passado por mudanças de camadas tectônicas.Sua aversão crônica à malandragem oportunista de quem costuma tirar proveito dos trouxas fazia com que se sentisse umoutsider,um ingênuo.

Além disso, sua busca por uma vida isenta de materialismos e hipocrisias estavam lhe cobrando um preço salgado àquela altura. A consciência de ser uma pessoa extraordinária, pelo menos em comparação ao tipo de gente com o qual era obrigado a lidar, resultava numa impaciência crônica com as outras pessoas.

Sentia-se rodeado por jovens que pareciam velhos e também por velhos que pareciam ainda mais velhos. Seus problemas já não eram comuns aos que o rodeavam. A defasagem de qualidade humana dos próximos com relação a ele fazia com que tudo o irritasse. Foi pesado demais constatar que sua existência tinha se tornado um fardo para ele mesmo. Até porque era um crítico impiedoso das pessoas próximas a ele e também de si mesmo. Cobrava-se para que mantivesse certa distância da apatia da grande massa anônima da qual sabia fazer parte. As pessoas de seu dia a dia conseguiam lhe causar espanto ao tornarem o contexto de sua existência algo cada dia mais amargo. Não ter esse tipo de controle sobre sua vida era algo que o machucava demais.
 Ainda que tivesse consciência de sua finitude como homem de ação, a queda drástica de sua energia vital para longas viagens e grandes bebedeiras não foi menos triste. Em seus melhores dias tinha sido um otimista nas suas ações e um pessimista em seus pensamentos. Pouco a pouco tornou-se um pessimista por completo. Um recluso.
 Castro era natural de Hernandarias, no Paraguai, de onde emigrou para o Brasil, primeiramente para Toledo, no interior do Paraná e posteriormente para São Paulo, capital.No começo de sua vida tinha aversão aos estudos, o que lhe rendeu fama de vagabundo entre seus familiares que também lhe atribuíram uma falsa defasagem intelectual. Descobriu na adolescência que tinha aversão mesmo às pessoas que o cercavam. Um pouco mais tarde, descobriu que tinha verdadeira aversão à maioria das pessoas, onde quer que estivesse.
No fim da vida, com o acúmulo de duros golpes que vieram de todos os lados (e eles vinham o tempo todo), perdeu-se enfim, mais por não conseguir lidar adequadamente com os paradóxos que ele mesmo criou para si mesmo do que pelo esforço em decifrar aqueles que a vida lhe impunha.Procurou incessantemente criar uma personalidade própria que compensasse a suposta defasagem intelectual no começo de sua vida. Buscava conciliar uma vida atlética a uma vida boêmia. Tentava também ser numa pessoa só o intelectual estudioso e o aventureiro sem repouso. Não tinha religião, mas tinha interesse pelas coisas do além.
 A consciência da própria finitude era aliada à uma espécie de armadura invisível que imaginava ter e que haveria de torná-lo invulnerável aos acidentes carnais de uma vida aventuresca e também ao alcoolismo.
 O melhor da festa sempre foi esperar por ela. A festa poderia ser pouca coisa além do que conseguir dar risadas raivosas de pais desencorajadores enquanto se aproveita o sabor do reconhecimento tardio, especialmente se esse reconhecimento for por méritos artísticos, e mais especial ainda se livrar para sempre o sujeito reconhecido de um emprego formal para o resto de sua vida.Castro nunca pretendeu tornar-se filósofo mas mesmo assim conseguia de tempos em tempos encontrar sentidos para sua vida. Era movido pela raiva e pelo gosto por uísque. Sabia que todas as palavras já tinham sido usadas antes que ele nascesse e que a única diferença era a forma como as pessoas as combinavam.
Queria ser cruel sem necessariamente ter que se envolver diretamente com as vítimas de sua crueldade. Essas pessoas nem mesmo poderiam ser consideradas vítimas, na verdade. Não ter que pegar numa arma o pouparia de problemas com a 'Justiça'. Ele preferia outros caminhos, que também não eram brandos, na verdade. Caminhos mais longos, de sacrifício solitário e de paciência infinita. Castro não queria e não tentava achar beleza no fato de não ter dinheiro, comida ou uma casa. Isso poderia servir apenas como estímulo para exercícios literários, na melhor das hipóteses. E talvez servisse para que conseguisse saborear melhor um eventual sucesso financeiro antes que sua morte chegasse. Era preciso tentar fazer com que a festa chegasse antes da morte. E a festa jamais seria tão boa quanto a morte. A morte é o remédio supremo para todos os infortúnios.
 Os pais desencorajadores sempre existiram antes de seu nascimento e certamente continuariam a existir num número crescente em progressão geométrica. Da mesma forma como nas cenas musicais de qualquer época sempre existirão sujeitos como Paul Anka ou Engelbert Humperdinck. É evidente que o mundo da música produziu coisas muito piores que esses dois sujeitos, com o passar do tempo. Mas o fato é que esses eram caras cujos discos Castro encontrava à venda nos sebos do centro de São Paulo, e que representavam o bom mocismo do qual ele preferia se manter afastado na medida do possível. De uma maneira ou de outra, tanto Paul Anka como Engelbert Humperdinck representavam o bom-mocismo de uma época em que a música era muito mais interessante. Eles precisavam concorrer com artistas de verdade, mesmo que tivessem como foco apenas a boa vendagem de discos.
 O Brasil produziu e produz inúmeros representantes dessa vertente formada supostamente por artistas de bom caráter, que passam mensagens 'positivas', o que faz com que os pais desencorajadores multipliquem-se com o passar do tempo, uma vez que eles pensam que tem o argumento de que uma eventual tentativa por parte dos filhos no ramo da música, ou das letras, ou das artes plásticas seja completamente inviável, por causa principalmente do ridículo ao qual é necessário se entregar para que alguém pague pela aparição desses aspirantes na televisão, no rádio, nas livrarias, nas revistas e jornais.Para esses pais desencorajadores a arte alternativa, ou marginal, ou independente, ou seja lá como seja denominada, é não só inviável a ponto de não merecer sequer ser cogitada, como é objeto de verdadeiro repúdio, especialmente pela garantia de não se conseguir qualquer retorno financeiro através dela.
 São pessoas 'conservadoras'. Esse termo pode soar esquisito porque imediatamente nos ocorre que essas pessoas querem conservar algo que elas deveriam saber que já apodreceu antes mesmo delas nascerem, mesmo se levarmos em conta os conservadores octogenários ou nonagenários que costumam dizer que já viram de tudo na vida.
Ao longo de sua vida, Castro sempre trocou facilmente qualquer relacionamento amoroso por uma canção convincente e uma garrafa de bebida forte. Na sua vida prática, esses dois elementos eram capazes de mexer muito mais com seus sentimentos do que uma relação longa. Eram sobretudo mais orgásticos do que aquilo que a maioria das pessoas que ele conhecia entendiam por casamento. As mais bonitas histórias de relacionamentos felizes valiam sobretudo para se criar canções que invariavelmente durariam mais do que o relacionamento descrito.
 Seus conflitos internos eram basicamente oriundos de um violento combate entre sua ansiedade por segurança (fosse ela emocional ou financeira) e seu instinto de cão libertino. Ele sabia que a busca pelo equilíbrio entre ambos era uma batalha perdida, ou no mínimo vitalícia. A marcha para a decrepitude era inevitável, então o tempo que ainda restava tinha que ser bem aproveitado, e Castro era a pessoa para quem ele mesmo devia satisfações a respeito disso. As retaliações divinas não o preocupavam porque ele não gostava de Deus.
 Tinha um relacionamento amoroso verdadeiro com as bebidas alcoólicas. Uma relação muito mais conjugal do que adúltera. Poucas vezes substituía a loucura do álcool por alguma loucura de outro tipo. Os outros tipos de entorpecimento serviam apenas para complementar a delícia do torpor alcoólico. Castro gostava de beber sozinho, porque eram poucas as pessoas com quem gostava de conversar. Sempre que ouvia alguém falar que quem bebe só é alcoólatra, passava a gostar ainda mais de beber sozinho. Esses adjetivos só existem porque foram criados por humanos que morreram acreditando numa salvação que não os salvou de nada.
 Se a política é a arte do convívio, Castro era o apolítico por excelência. Chegava a pensar que em algum momento de sua vida talvez desenvolvesse para si um tipo de ideologia mais viável no que diz respeito à sociabilidade. Talvez algum dia conseguisse desenvolver para si alguma teoria que pudesse descrever um tipo de anarquismo aristocrático em prol de seus interesses. Castro esperava pelo dia em que só tivesse interesse real por uísque e latas de pistache. Tinha um certo receio de concluir que na verdade nem precisaria esperar por esse dia. Ele tinha muito pouco interesse por quaisquer outras coisas. Sabia que não tinha mais uma alma, mas tinha certa dificuldade em admitir esse fato para si mesmo, pelo menos enquanto pudesse se considerar um jovem demais para ser desalmado.
 O único herói do brasiguaio Castro era um velho amigo dos tempos da escola em Hernanderias. o impagável Tito. Castro o reencontrou depois de anos de um afastamento que começou após o término do Segundo Grau na cidade natal sobre a qual trataremos mais adiante. Quando já estavam vivendo em São Paulo Tito foi comer hambúrgueres na lanchonete onde Castro trabalhava.Tito era filho ilegítimo de um padre beberrão de Hernanderias e tinha planos de permanecer em São Paulo por duas ou três semanas. Era tido por seus contemporâneos como uma obra demoníaca em sua cidade natal e desde criança procurou fazer o máximo para que sua lenda correspondesse à realidade. Seu lado vira-lata predominava amplamente em relação à sua parte racional. Não houve realmente um combate interior entre essas duas partes, porque ele nunca sequer cogitou deixar de ser vira-lata para tentar constituir família. Foi uma escolha totalmente intuitiva.
 No dia em que se deu o reencontro, ambos perceberam que dentro deles ainda havia uma fagulha do que haviam sido nos seus bons tempos, vinte anos antes. Foi apenas nesse dia que ambos descobriram que se interessavam por literatura e guardavam cadernos e mais cadernos com anotações de frases ouvidas ou lidas por ambos, mas que até então não haviam rendido publicações literárias. Concluíram que cada um precisaria de uma mulher para cada livro escrito e publicado.Estava claro para ambos que a finalidade de um eventual sucesso no ramo das letras seria benéfico muito mais para que tivessem como se embriagar decentemente do que pela arte literária propriamente dita. Eis aí mais uma razão para que Castro se considerasse um homem quase sem alma. O uísque era prioridade em relação à literatura enquanto arte. E ainda assim a literatura era uma prioridade em relação ao cinema. No entanto, não se sentia bem com a idéia de nunca ter se tornado um cinéfilo. Até aquela época o seu tempo de vida parecia ter sido curto demais para que pudesse satisfazer sua eterna vontade de viver ao ar livre podendo conciliar esse tipo de prazer físico com atividades intelectuais intensas.
 Podia ser mesmo apenas uma questão de tempo até que conseguisse se sentir como um animal livre que tivesse conhecimento artístico a ponto de ter através da arte o mesmo prazer que tinha ao fazer sexo ou nadar ou beber. A música o fazia sentir prazer, mas de qualquer forma ela podia ser aproveitada sem que fosse necessária uma concentração tão grande como a que se necessita para que se leia um livro ou para que se assista a um filme até o final. Havia também o fato de Castro nunca ter se incomodado com a possibilidade de jamais conseguir compor alguma canção que lhe agradasse. Parecia bem pior a possibilidade de um livro escrito por ele receber criticas ridicularizantes.
 Conseguiam se divertir o suficiente com o nível de cultura que tinham até aquele momento, que embora não fizesse deles eruditos, também nunca o fizeram passar vergonha numa rodinha de filósofos bêbados que não tinham para onde ir quando o bar fechava. A partir do momento do reencontro passaram a conversar muito sobre o problema da evidência trágica do fim. Era um bom assunto para se tratar no bar,porque dele nunca se tiraria nenhuma conclusão definitiva, mesmo depois de horas de conversa e em vários encontros. Qual proveito era tirado por parte dos grandes escritores de best-sellers depois que estavam mortos? O prestígio entre os humanos parecia algo bem pouco atraente ou necessário depois que alguém consegue se livrar disso tudo.
 Sempre esperavam que no exato momento em que se encontravam para beber, algum geniozinho sardento universitário estivesse trabalhando arduamente para destruir o mundo, vingando-os também. Tinham conhecimento da existência de recursos suficientes para que algum tipo de rebelião histórica fosse finalmente consagrada, ainda que fosse justamente para pôr fim à história da humanidade. Algum nerd mal tratado nos tempos da escola colocaria tudo a perder sem tanta cerimônia.
 A estréias literárias de Castro e Tito seriam difíceis como um parto. O ideal seria que a primeira mulher de cada um bancasse a publicação de seu respectivo parceiro e pouco tempo depois seriam deixadas de lado para darem lugar a outras, para que ambos tivessem inspiração renovada para um eventual segundo livro.
 Castro e Tito nasceram na mesma cidade, Hernandarias, na divisa do Brasil com o Paraguai. O contato que tinham com o resto do mundo era feito por meio do rádio do Fusca do pai de Castro. Passaram duas décadas sem qualquer contato. Duas décadas conturbadas para os dois. Tito foi o primeiro a partir. Foi trabalhar em Maringá e depois seguiu para São Paulo. A passagem de Castro por Toledo, no interior do Paraná, a qual já nos referimos brevemente, foi bastante curta e infrutífera, a ponto dele não ter conseguido estabelecer nenhum vínculo sócio-afetivo com nenhum morador da cidade. Até então, para Castro, as cidades médias tinham todas as desvantagens da cidade grande sem as vantagens das cidades pequenas.
 Menos de dois anos após terem se reencontrado em São Paulo, Tito, depois de pedir uma boa quantia de dinheiro emprestada ao banco (aquele tipo de empréstimo que invariavelmente se transformaria numa dívida eterna), gastou tudo em putaria, drogas e bebida e se matou num quarto de hotel quatro estrelas quando o dinheiro acabou. Tito havia chegado a uma encruzilhada em sua vida e precisou de apenas uma noite em claro para decidir que ia abreviar sua vida com estilo e deixar uma dívida a ser paga. Comprou uma pistola, uísque e cocaína. Preferiu um hotel de quatro estrelas a um de cinco. Só não pagou putas porque resolveu que ao invés disso seria mais gentil de sua parte se despedir de algumas amigas que fizeram com que não ele não tivesse dado cabo da própria vida antes. Esse foi seu ato heróico, que fundiu a resolução definitiva de uma vida penosa com a perpetuação de uma dívida não paga em vida, além do trabalho para removerem seus restos do quarto do hotel.Castro nunca soube no entanto que uma das garotas das quais Tito quis se despedir era sua irmã. De qualquer forma, esse detalhe fez com que mesmo de maneira inconsciente, Castro tivesse algum motivo para não mitificar tanto o ato final do amigo morto. Até porque a irmã de Castro era integrante de uma banda de MPB pretensamente cabeça e ao mesmo engraçadinha, o que Castro não podia aturar. "Essa cretina quer ganhar o gosto dos universitários engajados fãs de cantoras brejeiras', era o que sempre repetia ao falar das tendências musicais de sua irmã.
 Tito deixou ainda a dívida com as diárias do hotel em que se matou, além de muito trabalho para que limpassem o sangue, e alguns prejuízos futuros para o dono do hotel por causa de potenciais hóspedes que se recusavam a se instalar no mesmo quarto em que ele morreu. Era um personagem com potencial para que Castro escrevesse sobre. A difícil luta de um escritor contra os mais ridículos clichês tirava o sono de Castro. Ele tinha convicção de que tanto ou mais importante do que o tempo em que passava praticando a escrita propriamente dita, era o tempo em que se punha a pensar sobre a possibilidade de se criar um novo tipo de prosa no século 21. Muitas das atitudes do seu amigo Tito pareciam servir como potenciais histórias, mas pareciam muitas outras vezes com os mais batidos clichês referentes a rebeldia em vida, seguida de suicídio.
 Se aquele último ato de Tito foi covarde ou não, pouco importava. Principalmente para Castro. Se tivesse que haver algum julgamento, este seria pessoal e subjetivo. O importante eram as conseqüências provocadas às partes envolvidas, no caso o próprio Tito de um lado e todos os que ficaram de outro. Se o tipo de suicídio que Tito escolheu era um clichê, se ele imitou Hemingway e Hunter Thompson em sua última cena, isso importava menos ainda. A camareira que o viu com a cabeça estourada não tinha lido nenhum dos dois escritores em questão. No fim das contas é sabido que sai o cão do lobo, nunca o lobo do cão.
 Indo de ônibus do Centro até o Itaim, onde trabalhava, Castro via quase diariamente perto da Praça Roosevelt, entre quatro e cinco horas da tarde, um sujeito empunhando um guidão de bicicleta e correndo a pé no meio da Rua da Consolação ou da Avenida Ipiranga pela contramão por entre os carros. Poucos dias depois desse cara do guidão sumir das ruas, Castro soube que ele havia sido preso numa noite de apagão em São Paulo. Na ocasião ele vestia um colete que brilhava quando as lanternas dos carros apontavam para ele. O tal colete fazia com que o cara no meio da confusão do trânsito não pudesse ser distinto entre um guardador de carros ou um funcionário da C.E.T. , de modo que quando ele descobriu que os motoristas pensavam que ele estava lá para comandar o trânsito, não teve qualquer dúvida: comandou o trânsito por alguns minutos, fazendo com que a esquina da Rua da Consolação com o acesso à Amaral Gurgel virasse algo ainda mais assustador do que nos dias comuns, que por ali já parecem ser o máximo concebível em termos de balbúrdia. Era um rapaz enlouquecido, por quem nenhum dos transeuntes e motoristas dava a menor importância. Eventualmente ria-se dele. Na verdade, ria-se na primeira vez que se via o sujeito. À medida que aquilo deixava de ser novidade, ele passava a ser um simples figurante da região. Às vezes o cara dormia em algum albergue, às vezes na rua, às vezes ficava acordado fumando crack e dormia na praça durante o dia e deixava o guidão guardado.
 Se para Castro uma parte do sentido da vida poderia ser desvendado junto com a escolha da cidade, estado e país certos para se viver, então o Brasil parecia a escolha errada para ele, o homem que só tinha sobrenome. Pelo menos era o que ele dizia ao ser perguntado a esse respeito. E não foi realmente uma escolha. Ele nasceu no interior de São Paulo e a mudança para a capital no final da adolescência já significava um limiar transposto.
 As pessoas que poderiam saber facilmente seu primeiro nome não tinham qualquer interesse nesse assunto. Castro era manobrista em uma lanchonete grande no bairro do Itaim, na zona sul de São Paulo. Vivia numa parte mais extrema ao sul da cidade, e depois de passar horas manobrando carros caros e modernos, não tinha nem ônibus circulares para voltar para casa, por causa do horário em que saía do serviço. Tinha tempo para dormir algumas horas até que os primeiros ônibus voltassem a circular pouco antes de o sol aparecer.
 Não costumava passar muitas horas na cama, e gostava de literatura. Comprava livros nos sebos do centro da cidade antes de ir para o serviço e essa é a razão pela qual via o sujeito do guidão da bicicleta quase todos os dias. Lia seus livros no ônibus ao longo do trajeto do Centro até o Itaim e só se desconcentrava quando via o tal sujeito passando pelo meio dos carros.
 Castro também era fã de quadrinhos pornográficos. Continuou carregando os gibis consigo até o fim de sua vida, porque nunca lhe causaram qualquer problema que fosse tão grande como o que teve quando levantou com o pé a tampa da privada do banheiro da casa de uma namorada. Aquela garota nunca reclamou dos gibis de Carlos Zéfiro que encontrava em seus bolsos quando procurava cigarros dele para fumar enquanto Castro dormia. E ele por sua vez dava pela falta de algumas unidades de seus cigarros paraguaios e também não se queixava porque sabia que ela sabia que além dele levantar a tampa de sua privada com o pé e deixá-la levantada ao sair do banheiro, também se masturbava em horas ociosas nas madrugadas em que precisava esperar pelos ônibus voltarem a circular. Era entusiasta da obra de Carlos Zéfiro mais pelo fato de o cara ter sido um funcionário público que ao invés de trabalhar, desenhava quadrinhos pornográficos para matar horas de serviço. Era um ideal de heroísmo que Castro admirava e que só não tinha alcançado por não confiar o bastante em seu próprio intelecto para conseguir tamanha vantagem em cima do Estado. Esse intelecto limitado permitia no entanto que Castro soubesse que uma imensa maioria jamais estaria quite com o Estado em termos de terminar no azul, ao invés de morrer no vermelho após uma vida toda nessa luta estúpida. Estúpida para o cidadão contribuinte, é claro. De qualquer forma ele admirava quem fazia algo que pelo menos pudesse ser documentado a serviço de algum tipo de rebelião para as tristes gerações futuras.
Castro não era engajado em causas humanistas ou trabalhistas e não gostava de quem tivesse esse tipo de ideal. Não tinha tempo a perder com isso. Era um recluso anti-humanista, além de individualista convicto, ainda que não gostasse de usar verbalmente esses termos para expressar sua confusa ideologia. A convivência forçada com engajados que transitavam em torno dele diariamente o desgastava. Esses engajados pensavam que por Castro ser razoavelmente culto, deveria engajar-se também, ainda que fosse só para se tornar um chato com algum propósito de vida. Era difícil para Castro imaginar-se perdendo seu tempo tentando convencer alguém que ele considerava idiota de que essa outra pessoa poderia deixar de ser idiota se passasse a seguir alguma de suas convicções. Castro era fã de Ayn Rand. De seus livros saíram muitos dos seus ideais individualistas.
 Quem visse Castro nas ruas de São Paulo num dia comum, sem conversar com ele (a menos que Castro fosse abordado, era sempre mais provável que não se conversasse com ele, pois em qualquer que fosse a situação, ele procuraria evitar ao máximo ter que puxar uma conversa, fosse com um conhecido ou com um desconhecido), não conseguia de maneira nenhuma diferenciá-lo dos tipos medianos que andam pelo Centro e pela Zona Sul de São Paulo. Um anônimo completo. Castro não entendia de Física Quântica mas gostava de ouvir Leonard Cohen, de modo que sabia usar adequadamente seu discernimento para estabelecer prioridades relacionadas ao seu conhecimento. Suas prioridades eram voltadas para o conhecimento cultural, para seu próprio entretenimento e diversão. Fazia parte de seu temperamento admitir para si mesmo que ele jamais poderá ou mesmo desejará saber sobre músicos completamente underground,porque Castro entendia que os verdadeiros alternativos devem ser descobertos ao acaso. O acaso seria mais agradável se um dia, por alguma razão muito simples, alguma garota galesa o abordasse pedindo informações sobre algum lugar aberto 24 horas que venda vodka, no meio de alguma madrugada desesperançada. Ela naturalmente o abasteceria de informações sobre novidades indies e ele teria companhia por algum tempo, talvez por meses ou anos, para viver um romance alcoólico em meio a compactos importados de bandas escocesas dos anos 80 e 90 que despontaram para um anonimato verdadeiramente indie. Seu porte físico não era propriamente avantajado, embora também não fosse um sujeito franzino. Tinha um metro e setenta e cinco de altura distribuídos em setenta quilos. Geralmente usava uma camiseta branca para dentro da calça jeans, como se fosse para propositalmente deixar à mostra seu cinto que tinha uma grande fivela de metal com a cabeça de um cavalo em perfil. Parecia um Neal Cassady tupiniquim dos dias de hoje, mas com as maçãs do rosto salientes que evidenciavam traços indígenas. Num primeiro momento você não diria que ele tem bom gosto musical se o avaliasse apenas pelo seu visual, mesmo que ele estivesse usando seu hay-ban igual ao do Bob Dylan. No entanto, se você fosse um fã de Oswaldo Montenegro e quisesse desdenhar dele sem saber que ele gostava de Marianne Faithfull, pagaria caro, fosse por ter que ouvir um bom esculacho grosseiro caso fosse uma mulher, ou tomando umas porradas se fosse um homem.
 Castro dizia que não deixava o cabelo crescer por ter um cabelo ‘ruim’. Era um cabelo muito preto e crespo. Tinha obsessão por répteis alados e bebês com nadadeiras. Sonhava com essas criaturas e colecionava miniaturas de todo tipo de ser bizarro que encontrasse em lojas de tranqueiras, além de bonecas quebradas que usava para seus trabalhos artísticos. Por essas peças gastava uma parte significativa de seu salário. O resto era gasto com discos de vinil e livros, além das despesas com sua moradia, no caso uma pensão familiar no extremo sul da cidade. A comida lá era boa, e na lanchonete onde trabalhava podia comer de graça quantos hambúrgueres conseguisse. Embora as circunstâncias que o levaram até ali tivessem o obrigado a optar por viver um dia de cada vez, sem tantos planos a longo prazo, Castro descobriu que se ainda existia algum conceito apropriado para a liberdade, ele estava vinculado a essa incerteza e a essa falta de planejamento, que limitava e desencorajava ações apropriadas para quem no fundo queria ser uma bomba que derramasse napalm por onde passasse, para finalmente explodir de uma vez por todas num momento e num lugar que julgasse adequado. 


Capítulo 3 - THE GATES OF DELIRIUM 


 "Vocês nunca vão saber realmente quais são as minhas intenções, seus infelizes!!" , foi o que gritou Dirceuzinho, o filho do dono do pensionato no meio de uma noite em que Castro já tinha desistido de pensar em ter alguma tranquilidade e introspecção. Ainda assim percebeu que estava desfrutando de um pouco daquilo até aquele momento em que começaram os gritos. A partir de então, um frenesi insone tomou a pensão de assalto. Nunca ficou claro para Castro se Dirceuzinho queria chocar os hóspedes, mas quando ele gritava, as atenções convergiam para ele.
"Seu micróbio!!! Você vai chorar o choro dos realmente desgraçados, e isso vai acontecer assim que você atingir o auge do seu vício e atentar para pessoas que não estão sorrindo, ainda que estas pessoas tenham certamente expectativas boas para os momentos seguintes, e você que já não estava sorrindo vai chorar..." - dizia Seu Dirceu, o dono do pensionato, em resposta ao filho.


 . . .


A princípio, a idéia de morar num outro quarto de pensão não agradava tanto a Castro. Não se tratava de nenhuma ânsia por status ou algo assim, mas ele temia pelo que as pessoas ali instaladas pensariam de sua excentricidade. Ele gostava de ser exatamente o que o paulistano chama de caipira ou bicho do mato. Essa insegurança durou pouco tempo. Todas as pessoas que viviam naquela casa conseguiam, cada uma a seu modo, inserir algum elemento de caos no contexto. Castro surpreendeu-se positivamente com isso, porque ali ele podia ser considerado normal se comparado aos outros.
A casa era ampla, localizada na Rua Mamoré, no bairro do Bom Retiro. Um imóvel bastante valorizado àquela altura pela localização conveniente, ainda que fosse também excessivamente movimentado e barulhento. No interior da casa, na parede ao lado da escada que dava acesso ao andar superior havia a foto de um militar pesadamente condecorado. A única coisa que Castro pensava sobre aquele sujeito da foto era que provavelmente ele estava morto e que tinha sorte por isso. Nunca procurou saber de quem se tratava.
Na ocasião de uma noite quente de insônia, Castro foi beber água na cozinha e viu um gordo de calcinha comendo a coxa de um frango e ouvindo technopop caribenho num cd player portátil. Nunca tinha visto aquele sujeito na casa. Nunca mais o viu a partir de então.
Dirceuzinho, o filho de Seu Dirceu, o dono da pensão, tinha uma vitrola e um único LP. O ábum em questão era 'Tudo Foi Feito Pelo Sol', dos Mutantes. A esposa de Seu Dirceu, Betsy, dizia que o disco deveria se chamar 'Tudo Foi Feito Pelo Yes'. Betsy era uma ex-hippie fã de Rock Progressivo. Uma quarentona com um rosto bonito, mas envelhecido e triste. Tinha cabelos loiros, longos e lisos. Seus decotes e suas saias insinuavam bons peitos e uma boa bunda. Convivia com distúrbios familiares constantes. Seu filho Dirceuzinho, por exemplo, gostava de promover sexo entre gatos e coelhos. Betsy sempre pensou que essa obsessão do filho por relações sexuais interespécies fosse consequência da falta de interesse por colecionar discos ou livros, ou a ausência de qualquer outra atividade relacionada à cultura pop, coisas que a remetiam à sua juventude, quando até mesmo as músicas e artistas estritamente comerciais eram muito superiores a qualquer coisa produzida naqueles dias dífíceis do começo do Século 21.

_ Essas bandas que insistem em continuar suas atividades depois de perder seus principais membros me deprimem.- dizia ela, que tinha algumas seqüelas resultantes dos bons tempos, mas que a despeito disso era uma senhora afável. O gosto pela música rendeu amizade entre ela e Castro. Naquelas conversas sobre música, Castro argumentava que o Rock Progressivo brasileiro tinha qualidade, enquanto ela considerava que se tratava de picaretagem e oportunismo.

_ Comigo acontece a mesma coisa. Outro dia mesmo fui ver um show daquele Credence picareta pra acompanhar uma amiga. Ela achava que era o Credence original. - disse castro.

_ É dificil acreditar mesmo... Não são só os jovens que não tem qualquer noção de música. A minha geração é uma desgraça. Todo mundo está acostumado a ouvir desde cedo os avós dizendo que a música era boa mesmo nos velhos tempos, e essas crianças ouvem seus pais dizeram a mesma coisa e hoje eu vejo gente de 30 anos dizendo que a música da época de sua adolescência era realmente boa e que a de hoje é muito ruim. Isso sem contar os 'especialistas' da mídia. Deveriam morrer em acidentes de estrada, todos eles. A maioria dos artistas que surgem em qualquer época causam constrangimento. O discernimento sempre foi importante, sempre foi necessário saber selecionar com algum critério e alguma sensibilidade o que tentam nos enfiar guela abaixo. A mídia apenas expõe esses infelizes mais hoje do que antigamente. E temos a sensação de que quanto mais desgraçadamente ruim for um artista, mas ele está presente no rádio, na televisão e onde quer que seja. A essência estará sempre no grito desembestado de rebeldia num internato. Agora procuro apenas me divertir com música, não esquento a cabeça com a burrice dos outros. Olhando em retrospecto, me parece que musicalmente no Brasil os anos 60 duraram até 1974 ou 75... Havia um atraso natural para a assimilação de certas tendências musicais mundiais. Pra começar a falar sobre isso, teremos que levar em conta o contexto político da época e evidentemente essa é a parte chata do assunto. É uma brecha pros panfleteiros de barba e chinelo fãs de Geraldo Vandré. A defasagem cultural da qual eu fui vítima é algo que me magoa muito. Eu odeio a minha geração e também a geração imediatamente anterior à minha. Uma geração morta. Não é a toa que tanta gente tosca do PSDB vive se vangloriando das suas atividades panfletárias do período dos militares no poder. Se você soubesse como eu odeio o Geraldo Vandré talvez você me levasse mais a sério. Meu marido teve uma fase carioca na vida e em 1969 morou no Solar da Fossa, em Botafogo. hoje há um Shopping ali. Muitos artistas importantes viveram lá e mesmo que eu não me interesse tanto pela MPB, eu acho inacreditável que ele nem ao menos tenha lembranças remotas dessa época. Quando eu o conheci, eu insistia muito pra que ele me contasse sobre o que se passava ali, sobre o envolvimento dele com os outros hóspedes e ele sempre dizia que não lembrava ou que não havia nada digno de nota na vida dele naquele período. Juntando isso aos incêndios na Record que destruíram muito material de vídeo, vemos que as informações que temos sobre cultura do nosso país são muito poucas. não sabemos se os tais incêndios foram criminosos ou não. Eu não culpo esses fatores pela minha falta de interesse por MPB. Talvez se existissem mais informações sobre os fatos e períodos obscurecidos pelas circunstâncias, eu gostasse ainda menos disso. - disse Betsy.

_ Eu levo a senhora a sério. Agora eu a respeito mais ainda... Eu odeio muito o Geraldo Vandré também! Odeio todos os autores de canções de protesto! - disse Castro.

_ Só pra gente concluir aquilo sobre o qual falávamos, eu diria que guardadas as devidas proporções, viver no Solar da Fossa nos anos 60 era como viver num Chelsea Hotel brasileiro. Mesmo que a gente não goste de MPB. Eram os anos 60 e você sabe, tem aquela história de que se você se lembra dos anos 60, você não esteve lá. Só que meu marido sempre foi careta e reacionário, o que nos faz pensar que ele esteve duplamente ausente. Mas há também o fato de que em 69 o AI-5 já estava rolando, e era aquele baixo astral terrível. Talvez você pense que sou apenas uma mulher de meia idade, fã de Joni Mitchell e de Rock Progressivo.- disse Betsy.

_ Não há nada de errado com isso. Eu gosto de Rock Progressivo, gosto da Joni Mitchell, da Carole King, da Judy Collins, e das outras cantoras tristes e saudosistas do fim dos anos 60 e começo dos 70. O que me incomoda é essa MPB frouxa que se faz hoje, essa música higIênica pra sambistas universitários de apartamento. - disse Castro.

_ Sim, eu sei... Mas eu preferia ser vista como umabeatnikda velha guarda e não como uma hippie destroçada pelo fim dos bons tempos.. Há a parte terrível da minha história, que é o fato de eu ter sido fraca e cedido às pressões sociais, ter constituído família, mesmo sabendo que era um caminho estúpido... Hoje passo horas antes de dormir pensando naqueles caras que tocaram nas bandas embrionárias dos gigantes do Rock dos anos 70, as que saíram antes dessas bandas estourarem...Passaram a entregar pizzas pra sobreviverem enquanto seus velhos amigos se esbaldavam... Isso deve tê-los deixado com muita mágoa... Eu nunca consigo me confortar com o fato de haver gente no mundo com mais motivos do que eu pra sentir mágoa... Sabe que eu adoro o Jack Bruce? Se o Eric Clapton é Deus, o Jack Bruce é o que? - disse Betsy.

_ Eu também adoro o Jack Bruce, é um puta gênio mesmo. O Clapton é bom mas é um talarico. - disse Castro.

_ Eu também gosto de astrologia, e isso é algo muitas vezes associado aos valores hippies da minha geração, e estou usando esse termo no sentido pejorativo mesmo, pra enfatizar aquilo que as gerações que vieram depois não gostam. Eu sou duplamente de escorpião, sabe? Diante do que os astros me impõem eu acho até que sou uma pessoa controlada. Ser duplamente de escorpião significa que eu tenho ferrão. As pessoas tem medo da indiferença cósmica. Eu nunca precisei temer isso. Já sentia minha insignificãncia desde cedo, e muitas vezes, gostava dela. Ontem estava com insônia e fiquei pensando nas bandas que faziam sucesso na Europa e Japão, mas que não conseguiriam nem um copo d'água da torneira nos Estados Unidos... -disse Betsy.

_ Quando a senhora tiver insônia novamente, pode pensar nos casos opostos a esses; Os que eram sucesso nos Estados Unidos e eram anônimos na Europa. Há quem considere isso um grande demérito do ponto de vista artístico. Os europeus que ansiavam por sucesso nos Estados Unidos queriam mais era o dinheiro dos americanos. Imagine ainda se em 1963 o 'Please Please Me' dos Beatles não tivesse emplacado e a gravadora não lhes tivesse dado a chance de continuar sob contrato e eles fossem entregar pizzas em Liverpool...- disse Castro.

_ Recentemente fui visitar meus pais e descobri que meus discos antigos ainda estavam lá. Meu pai os conservou em caixas de supermercado, guardadas no quarto em que eu dormia. Tinha o primeiro dos Kinks, oBlue, da Joni Mitchell, aqueles primeiros do Roxy Music, da época em que o Brian Eno ainda fazia parte da banda... Eu economizava o dinheiro do ônibus e também do lanche da escola. Minhas idas até as lojas eram movidas pela ansiedade de ter contato com os discos que eu queria, e as voltas pra casa eram movidas pela ansiedade de ouvir aqueles que eu conseguia comprar. Eu procuro não ser saudosista, porque o mundo naquele tempo não era melhor do que é hoje. As pessoas também já eram uma bosta. A música dos anos 60 e 70 soa melhor porque , entre outras coisas, os artistas tinham uma arrogância espetacular. Hoje são podados pelos valores politicamente corretos. Tenho pensado muito na minha completa falta de perspectivas. É triste ter o corpo ainda vivo, mas já não ter qualquer desejo, esperança ou sonho. Quando ainda haviam alguns resquícios do sonhohippieno mundo, mesmo depois de Charles Manson, algumas canções solenes do começo dos anos 70 falavam sobre a vitória da perseverança sobre a depressão, mas esses vagos sopros de positividade não podia durar muito mesmo, e foi nesse contexto que eu cresci. Em todas as sondagens que fiz na minha alma ao longo da minha vida, o que encontrei foram gavetas cheias de poeira simbolizando um passado vazio, que eu sabia que se transformariam num futuro triste e vago, e ainda assim, perigoso.

Enquanto conversavam, comiam algumas das magníficas empadas de frango preparadas por Betsy e ouviam o álbum 'Mystical Adventures', do Jean-Luc Ponty numa vitrolinha da Turma da Mônica. Castro gostava do fato de Betsy não amar o passado como 'os dias de glória'. Parecia querer viver apenas para libertar-se gradualmente da ignorância. Betsy se dizia uma atéia implacável, mas parecia triste e mística como uma católica praticante. E embora o presente daquela mulher não fosse o que ela sonhou anteriormente como um futuro de glória, ela ainda podia rir da ingenuidade do imaginárioindiecom o qual ela conseguia manter algum contato através de hóspedes jovens que eventualmente passavam temporadas em sua pensão e que usavam camisetas dos Stone roses, dos Charlatans e do Teenage Funclub. Tinha também muita vontade de chorar quando pensava em todo o resto.

...


A felicidade seria poder desfrutar o luxo de ficar em casa com independência financeira. O conhecimento desse fato era instintivo. Nunca foi necessário ler isso em livro algum. salinger conseguiu essa vitória com o sucesso de um único livro. Talvez ele tivesse vontade de sair da sombra desse livro famoso, mas nunca conseguiu. Para Castro isso jamais seria um problema.

O hábito de freqüentar as livrarias e sebos do centro da cidade foi adotado na época em que Castro trabalhava numa casa de sucos na Praça da República, antes mesmo de morar com Valdir da Chave. Grande parte da mágica desses lugares consistia no fato de haver sempre muito pouco tempo para gastar dentro ali dentro. São Paulo o estava mastigando. E em Hernadarias não havia livrarias como aquelas. Castro sonhava com um emprego num sebo antigo e empoeirado. Queria passar ali tempo o bastante para que chegasse a sentir tédio. Gostava de pensar que os escritores famosos cujos nomes estavam impressos nas capas dos livros estavam mortos, em sua maioria. Era nesses momentos em que sua vida parecia valer alguma coisa. Pensava que a maioria daqueles escritores trocaria sua fama e fortuna para também estarem vivos. Entre os que ainda estavam vivos, muitos eram velhinhos decrépitos e reclusos.
Durante aquele período Castro tentava assimilar a mágica de se conciliar a vida de um intelectual com a de um trabalhador rude e braçal. Procurava conciliar também a rotina de um atleta com a de um boêmio. O tempo era escasso e a energia também diminuía com o passar dos anos, e embora Castro ainda tivesse 38 anos, já pressentia que seu período de aventureiro não duraria tanto tempo mais. Os golpes da vida eram então cada vez mais frequentes e violentos.
Nas livrarias e sebos do centro da cidade Castro podia proporcionar a si mesmo uma formação intelectual baseada em seu próprio discernimento. Parecia fácil descobrir quem eram os bons mestres da escrita. De qualquer forma teria que ler muito para adquirir cultura, e apesar de se sentir curioso com relação ao que era ensinado nas universidades, no fundo não confiava muito na capacidade dos professores que encontraria numa delas, ainda que estes ostentassem doutorados ou mestrados ou o que quer que fosse. Estava vivendo num país em que a qualidade da educação se assemelha a de nações pigméias, portanto a idéia de aprender sozinho não era nada ruim.
Castro poderia se aposentar por tempo de serviço aos 51 anos, quando finalmente completaria 35 anos pagando os carnês da previdência social como contribuinte autônomo. Seu pai foi quem o induziu a começar a investir nisso para que com pouco mais de 50 anos tivesse pelo menos a opção de parar com todas as atividades tenebrosas de gente comum para que ao invés disso pudesse ter uma vida naturalista e minimalista, sem muitos gastos desnecessários e voltando às origens simples depois de tantos anos vivendo numa cidade grande, se essa fosse sua vontade. Finalmente poderia ter a certeza de que o importante é ter uma casa isolada para criar cães e plantar sua própria comida, sua própria maconha e limpar sua própria piscina. Ficou fascinado com a idéia de adotar esse estilo de vida depois de ler um texto sobre a vida de Tolstói. Ele sabia da existência de vários outros intelectuais desapegados ao materialismo comum aos humanos médios. Sabia que a melhor maneira de aproveitar o conhecimento que esses intelectuais deixaram registrado seria absorvendo-o num ritmo equilibrado, o que correspondia a levar uma vida que misturasse hábitos atléticos, boêmios e intelectuais. Boxe em dias alternados, sono e alimentação adequados dia sim, dia não. No resto do tempo, buscar histórias de vidas degeneradas quando não estivesse lendo sobre elas.

O primeiro desses tipos de hábito poderia ser atingido na sua correria diária ao trabalho e em partidas de futebol com seu conhecidos ou em longas caminhadas a esmo, aproveitando a iniciativa para evitar o transporte público. O segundo tipo serviria para que sentisse o sabor físico da vida, resumido grosseiramente a sexo e bebida. O terceiro seria saboreado nas ressacas, quando seus valores morais o fariam ficar deitado na cama lendo os livros que leva semanalmente para casa. Ler era um exercício de paz. Nesses momentos não haviam domínios fechados que não pudessem ser investigados. O bar com o pior cheiro de urina podia ser um lugar revelador para Castro. Especialmente quando estava deitado em sua cama pensando nesses tipos de lugares pelos quais já passou, e pensando no destino dos infelizes que ali ele viu ou conheceu. 

Para que alcançasse o que supunha ser uma paz verdadeira ele teria que focar firmemente o pensamento na imagem reproduzida em sua mente do pesadelo que certamente muitos humanos estariam passando naquele exato momento. Caso contrário, a paz momentânea daquele momento de relativo sossego não seria completa. Pensava nos mendigos molhados dormindo em cada um dos becos do centro da cidade. Pensava nos doentes terminais das UTI’s que clamavam por eutanásia. Nos girinos que Dirceuzinho jogava no aquário de sua tartaruga de estimação para serem devorados.
 Era preciso aprender a lidar com sua personalidade multifacetada.

Capítulo 4 - BUT YOU CAN'T STOP THE ROCK

" No meio do caminho de Dirceuzinho havia uma pedra

O caminho de Dirceuzinho era a Rua dos Gusmões

Dirceuzinho fumou a pedra e distorceu seu caminho

A festa terminou, meus filhos!"


"Castro, meu filho, nada pode ser pior do que uma família... Eles provavelmente tentaram te enfiar garganta abaixo a idéia de que você deveria constituir família quando chegasse à idade adulta. A maior decepção que tenho na vida é comigo mesmo, por ter sucumbido a essa idéia cretina. Eu não tinha convicção de que isso era algo positivo, mas fui burro o bastante para me opor à minha intuição. Achei que casando com uma hippie teria um lar equilibrado. Ela fumava maconha mas não bebia, de modo que eu poderia controlar meu alcoolismo. O resultado é que hoje eu dependo da bebida mesmo sem poder beber mais. Minha mulher espera que eu morra logo e eu sei disso, embora ela não fale abertamente sobre isso, o que a isenta de qualquer culpa. E o meu filho... Ah... Como pude... Eu deveria saber que ele traria desgosto mesmo antes de nascer. Eu tinha pesadelos terríveis quando minha mulher estava grávida dele. Sonhava que ele nascia com a forma de filhote de golfinho, com nadadeiras no lugar dos braços e aquilo era bastante perturbador. Eu chegava exausto no fim dos dias e tinha medo de dormir por causa desses pesadelos. Mudando de assunto por um instante, eu tenho certeza que você se pergunta quem é aquele cara fardado na foto da escada, não é?" - foi o que disse Seu Dirceu, para quem Castro era o que mais se aproximava de um ouvido solidário.

"Pois bem... Aquele cara da foto é o General Aguiar, que também era médico e que foi preso e perdeu sua licença pra clinicar porque receitava narcóticos para si mesmo. Ele é o verdadeiro pai do Dirceuzinho. Se algum dia o Dirceuzinho descobrir, certamente vai surtar... O General Aguiar era um homem cheio de contradições em seu caráter, mas que fascinava a minha esposa. Ele vivia se pavoneando com sua farda impecável. Viveu seus últimos dias nessa casa, moribundo, reacionário, ranzinza e destruído pela bebida. O cigarro perene esfumaçando o ambiente... Tínhamos medo às vezes, porque ele ficava limpando suas armas completamente bêbado dentro do quarto dele. Eu acho que a razão desse fascínio não era por outra que não o fato dele fornecer drogas a ela. E você pode imaginar que a partir de um certo ponto, anterior ao surgimento do General Aguiar em nossas vidas, meu casamento com a Betsy esfriou no que dizia respeito a sexo. Eu não deveria contar isso pra você, mas eu gostava de ver minha mulher transar com aquele milico. Isso a satisfazia sexualmente, ou pelo menos fazia com que ela conseguisse as drogas que procurava. Foi bom para reacender meu desejo por ela, anda que provisoriamente. Além do mais ela abriu um precedente que me permitia ter uma certa liberdade fora de casa. E de qualquer forma, hoje em dia não tenho mais ego. Não consigo enfatizar suficientemente o quanto o casamento me parece uma instituição ridícula. O único momento verdadeiramente romântico da nossa relação foi poder juntar nossas famílias no dia do nosso casamento." - concluiu Seu Dirceu.

Naquele momento Castro entendeu de uma vez por todas que o fato de ver outros humanos em situações realmente constrangedoras não diminuiria sua angústia, sua dor ou seu desespero. Sua posição podia ser menos triste do que a de muita gente próxima a ele, mas ainda assim podia se sentir verdadeiramente insatisfeito. Parecia mesmo que os outros desciam baixo demais, e não que ele estivesse em posição privilegiada. No entanto, por alguma razão que Castro não conseguia identificar, era quase um prazer experimentar aqueles tormentos.

Traçando um paralelo entre a vida de Seu Dirceu e a de alguns azarados notórios do mundo musical, podemos afirmar seguramente que ela era algo como a soma das desgraças ocorridas na carreira de bandas como Badfinger e Patto, onde suicidios, acidentes automobilísticos e doenças fatais colocaram tudo a perder.

Para Seu Dirceu cada amanhecer vinha como se fosse um tiro nas costas. "Descobri recentemente que sofro de abscessos retais avançados." - disse Seu Dirceu, segundos depois de abrir a geladeira da cozinha da pensão e olhar desoladamente para seu interior durante três minutos. Havia ali um copo de gelatina vermelha já com casca e na parte interna da porta, um velho limão seco e amarelado cortado pela metade.

Aquele homem passava regularmente por provações das mais diversas sem que realmente tivesse experimentado nenhuma mobilidade social. Não tinha vivido a verdadeira miséria material, mas isso apenas o atormentava mais, pois seu sonho de prosperidade nunca se concretizou. Sabia que uma eventual falência financeira o faria dar cabo da própria vida. Sua motivação para a vida cotidiana afundava numa fossa sanitária sem manutenção. À medida que Seu Dirceu deteriorava como pessoa, a energia vital de sua casa também deteriorava.

Não tardou para que seu filho Dirceuzinho afundasse nas drogas pesadas. Fumou maconha por pouco tempo, nunca cheirou cocaína e partiu para o crack com uma convicção inabalável de que havia nas pedras uma relação de custo-benefício favorável.

Numa noite Dirceuzinho bateu à porta do quarto de Castro anunciando que a partir daquele momento o pagamento pelo quarto deveria ser feito diretamente a ele. Como Castro astutamente percebeu, aquilo era indício de confusão mental por parte de alguém da família.

Tudo em Dirceuzinho cheirava a roubo, vício e trapaça. Apesar da juventude, o rapaz já ostentava na cara muitas marcas de batalhas perdidas, privações, traumas e arrependimentos. Tinha cabelos loiros, cheios e enrolados, Os olhos matreiros o culpavam com antecedência até mesmo por aquilo que Dirceuzinho ainda não havia sido acusado. O rosto parecia embalsamado, com uma espécie de camada de parafina sob a pele e seus olhos pareciam gelatinosos como os de um tipo de anfíbio que ainda não existe nos catálogos das espécies conhecidas. Seus braços eram curtos demais e isso era ainda mais perceptível quando se olhava para seus blasers no guarda-roupa. Dirceuzinho gostava de blasers sintéticos, embora de um modo geral fosse desleixado com as roupas.

_ Castro, você sabe que apesar do intenso atrito entre meus pais, eu não tomei partido nem pra um lado e nem pra outro. Sinto desprezo semelhante por ambos. Vim lhe incomodar em seu quarto pra propor que a partir de agora a administração dessa casa seja semelhante a de uma empresa séria. O que havia até agora era uma administração informal e frouxa. - disse Dirceuzinho.

_ Faça sua proposta, meu caro... - disse Castro.

_ Você pode dar a mim o dinheiro referente ao pagamento do quarto, então lhe dou um recibo. Eu preciso do dinheiro imediatamente. Eu sei que o dia do pagamento pelo seu quarto ainda não chegou, mas caso você aceite pagar com antecedência, será agraciado com um bom desconto. - disse Dirceuzinho.

_ Você precisa da grana pra quê, Dirceuzinho? - perguntou Castro.

_ Quero comprar umas pedras de crack e fumar trancado no armário do meu quarto. Embora nesse exato momento eu não esteja parecendo alguém que está atravessando uma crise de abstinência brutal, você pode acreditar que a droga se faz necessária com urgência. Eu concordo que o prazer que eu terei dentro daquele armário vai durar pouco, pelo menos para os padrões burgueses, mas eu tenho plena convicção de que esses breves momentos fazem valer a pena aquilo que esses mesmos burgueses chamam de 'vida'. E isso que eles chamam de vida me faz procurar a razão pela qual eles tem medo da morte. prece até que a morte para esses casos é um problema, ao invés de uma libertação. Nesses momentos eu me afasto um pouco dessa nefasta polarização entre o certo e o errado que me é imposta o tempo todo. De qualquer maneira eu sei que sou diferente, para o bem e para o mal. Não me sinto humano. Teria muita vergonha disso, seria algo realmente constrangedor. Não me sinto brasileiro também, mesmo sendo estrangeiro em todos os outros países do mundo. - respondeu Dirceuzinho.

_ Como você pôde chegar a esse ponto, moleque? Tá fumando pedra, rapaz? Você merece apanhar com um cabo de vassoura na frente dos hóspedes! - perguntou Castro.

_ Você deveria saber que se é pra fritar o juízo, isso é mais viável que outras drogas. Essa cocaína ruim que é vendida por aí só nos faz perder dinheiro e passar nervoso. Minha mãe, por exemplo... Muitas vezes ela perdeu a linha no pó e apesar disso, hoje em dia algumas pessoas a vêem como uma mulher exemplar na medida do possível, dentro dos limites que a vida lhe impôs e tal... Essa hipocrisia me enoja demais... Essas campanhas antidrogas que pressupoem que colacando medo no jovem potencial usuário, eles deixariam de usar. Se droga fosse ruim, ninguém usaria. Cada um que assuma as consequências de seus atos. Não é preciso que haja drogas pra que uma família seja destruída, porque ela é uma farsa, de qualquer maneira. Imagine que poucos dias antes da sua chegada eu ouvi a porrada comer no quarto dos meus pais e pensei que ele estivesse espancando-a... Dei uma bica na porta e vi que era ela quem o espancava. Ele tinha achado um bilú nas coisas dela. Nessa casa eu sou como o enteado inconveniente que merecia ser lobotomizado. Nunca sou visto um filho. Não os culpo por me tratarem assim. Eu os culpo pela estupidez de terem me concebido. Nada pode ser pior que uma família. E as famílias brasileiras são ainda mais bizarras que as outras. - disse Dirceuzinho.

_ Dirceuzinho, eu até gostaria de ver os desdobramentos dessa história, mas não acho que esse recibo fornecido por você venha a ter alguma validade caso eu o apresente a seus pais argumentando que já fiz o pagamento. Eu não me importo com sua incapacidade de se manter sóbrio e nem com as consequências que seu vício desencadearão na sua família. Talvez eu devesse até mesmo lhe agradecer por me fornecer histórias como essa, muito embora fossem pouco aproveitáveis para algum livro, caso eu resolvesse escrevê-lo. Eu digo isso porque de tão absurdas que são as disfunções em sua família, isso tudo pareceria uma ficção tosca e não uma história verídica. Pareceria forçado e não funcionaria como exemplo do quão baixo é o patamar a que desceu a humanidade. Eu quero apenas ter tranquilidade quando estiver dentro do meu quarto. - disse Castro.

_ Tranquilidade de verdade nós não teremos nunca, e não há ninguém melhor do que você pra saber disso. A encruzilhada em que todos nós estamos é resultado do que chamam de evolução humana. Não adianta balançar a piroca, porque a última gota de mijo é da cueca... No caso da dita evolução tecnológica e das comunicações, vemos nossa espécie mostrando mais do que nunca o quanto ela pode ser estúpida. Nisso nós concordamos. Diariamente nos empanturramos de informações bizarras sobre as incríveis pataquadas que nossos semelhantes aprontam em todos os ramos de atuação humana. Você poderia estar no seu quarto com a falsa sensação de sossego de quem acabou de renovar o aluguel do quarto enquanto um infeliz de qualquer parte do mundo poderia perfeitamente desgraçar a sua vida sem que você possa fazer nada. De qualquer modo, meu caro Castro, alguma coisa nós já conseguimos. Você é um aventureiro paraguaio morando numa espelunca barata e sem classe na região central de São Paulo. Gosto de saber que isso faz com que você sinta um pouco do sabor da vida. Mas o fato é que eu preciso fumar uma pedra, e queria conseguir o dinheiro fazendo uma proposta íntegra a você, que provavelmente é a única pessoa para quem eu poderia recorrer sem ter que mentir sobre o destino do dinheiro.

_ Que loucura, isso deve ser um flashback de ácido, não pode ser verdade... - disse Castro.

_ A loucura é decisiva, meu amigo... E além do mais, nunca é saudável começar a questionar a própria lucidez. Todos nessa casa estão montados na besta selvagem da loucura! Pra um aventureiro dito liberal como você isso deveria ser uma bênção. Vivemos numa época perigosa. Otimismo para o futuro é coisa de especuladores imbecis ou para gente que quer lucrar com a burrice da massa. O limiar entre aquilo que é são e aquilo que é insano se perdeu há muito tempo, se é que um dia ele existiu realmente. Se um dia você escrever um livro e fizer uma daquelas festinhas de lançamento em livrarias, servindo espumantes, eu estarei lá e essa será uma experiência nada sublime pra você, Castro. Você estará de óculos diante daquela fila de leitores idiotas, falsos leitores na verdade, para os quais você estará assinando seus livros, que não servirão pra nada em muito pouco tempo. Estarão sendo vendidos por um real em sebos do centro da cidade, no meio de livros didáticos obsoletos. Se voc~e arrumar uma editora, será obrigado a deixar que um cretino qualquer faça o prefácio. Você vive repetindo aquela ladainha sobre libertar-se das ocupações burguesas e entregar-se completamente à literatura, mas você é um burguês. E um mau burguês. Isso pode parecer redundante, mas o que eu quero dizer é que você é um burguês insatisfeito e incompetente com sua condição, e é que isso faz de você um mau burguês. Isso o coloca abaixo dos burgueses convictos. Abra o olho, burguesão, porque o porco de hoje é o bacon de amanhã! Tivemos um hóspede aqui não muito tempo antes da sua chegada. Apenas alguns meses antes. Era um pretenso escritor. É desnecessário dizer que tudo o que escrevia era pior que lixo, mas ele ao menos era um cara divertido, porque largava o trabalho para se drogar e beber, fosse qual fosse a hora em que eu o chamasse para isso. Seu apelido aqui em casa e nas redondezas era Letrinha. Vivia dizendo que estava buscando experiências de vida que pudessem fazer dele um escritor de verdade. Jurava para si mesmo que um dia o reconhecimento comercial compensaria, ou completaria, a sua trajetória errante. Na última semana em que esteve aqui não parou de falar de um projeto pra um livro no qual estava trabalhando. Dizia ser um calhamaço de dimensões tolstoianas, com quase mil páginas e com dezenas de personagens. Era hippie e por isso tinha a simpatia da minha mãe. Parecia um Che Guevara depois de fumar crack. Era uma figura patética, por isso nem sequer existe mais. Mas foi divertido tê-lo aqui durante o tempo que permaneceu. Você não é tão pretensioso como ele. Você é mais pedestre, menos alucinado. Mas mesmo assim, está indo pro mesmo caminho que o Letrinha. Você vai sumir e essa casa vai continuar, ainda que de uma maneira bizarra e destrambelhada. Já que falei do Letrinha, não consegui evitar a lembrança de um velho golpista paraense que foi um dos pioneiros dos ladrões paraenses conhecidos como ratos d’água. Que loucura era aquele velho... Fumava pedra dentro do quarto... Sempre dava um jeito de entrar com alguma putinha adolescente no quarto, o que causava a ira da minha mãe e fazia meu pai morrer de rir... Ele dizia se tratar apenas de ‘um velho drogado que traça criancinhas’. Recebíamos reclamações de donos de bares das redondezas porque o velho bebia e saía sem pagar. Ele argumentava que bebia pra esquecer, e por isso esquecia de pagar pelas bebidas. A verdade é triste mas é importante. Em tempos de guerra a verdade é tão precisa que deveria ser blindada numa cápsula de titânio. Eu conheci todo tipo de gente tendo pais donos de pensão. Isso vai continuar acontecendo. A estrutura dessa casa não muda, está fossilizada há décadas, imune a mudanças, sejam elas por motivos morais ou financeiros, ou o que quer que seja. É preciso que haja hóspedes e eles provavelmente nunca deixarão de ser bizarros, porque isso é inerente à nossa espécie. - disse Dirceuzinho.

_ Deixe que eu fique sozinho por algum tempo, Dirceuzinho. Volte mais tarde. Não é tão ruim ouvir você dizer essas coisas, mas você deveria tentar arrumar pedras pra fumar aí nas ruas. Há vários nóias fazendo a correria pra conseguir a próxima pedra e você está gastando seu tempo aqui comigo. Estou sem um puto centavo e tenho dívidas que nenhum homem honesto seria capaz de pagar. - disse Castro.

_ Agora vou sair... Vou pra Cracolândia fazer a via sacra do nóia sem dinheiro. Espero que meu corpo morra ainda hoje para que eu possa voltar à minha forma inorgânica o quanto antes. Sabe, Castro... Eu não tenho nenhuma moral, sou um verme inescrupuloso, uma devasso venal. Eu queria que você soubesse que tenho tido sonhos estranhos em que você aparece vestido de policial e sempre chega quando estou prestes a fumar uma pedra de crack ou transar com a minha mãe. nos sonhos a idéia de transar com ela não parece tão repugnante quanto na vida real. Também sonho freqüentemente com um médico chinês que tentar me curar do vício em crack. Basta ele aparecer no sonho para que eu comece a ter um ataque causado por abstinência somado ao medo dele e começo a me debater como um peixe fisgado. Aquilo é assustador demais. Nos meus sonhos eu fujo dessas criações da minha própria cabeça e na vida real eu vivo fujindo da comunidadeindie. Eu quero logo me tornar um cadáver anônimo deitado no Largo do Arouche do que continuar com isso. - disse Dirceuzinho, com cara de órfão pedinte e traços inumanos. Depois se acabou numa grande gargalhada, interrompida pelo chamado do telefone, que pôde ser ouvido vindo de seu quarto. Saiu desajeitado e fechou a porta, deixando Castro finalmente só.

Castro sabia que quando Dirceuzinho começava a falar, não havia meios de detê-lo antes que parasse espontaneamente. Dirceuzinho nunca aceitava de bom grado qualquer interrupção a sua verborragia ou negativa para suas vontades. Sabia também que se tentasse continuar a conversar, quanto mais falasse mais hediondas seriam as respostas dadas por ele. O vício em crack potencializava ainda mais essa tendência. Castro passou a ter um encosto. Não era qualquer encosto. Era um encosto nóia.

Capítulo 5- Maybe it's because I'm crazy

Desde que passou a viver na pensão de Seu Dirceu, o tempo sempre parecia curto demais para que Castro conseguisse ruminar as sucessivas mudanças em sua vida. Isso era contraditório, se considerarmos que Castro mudou-se para lá em busca de uma solidão saudável. Ao invés disso, os donos da pensão lhe proporcionavam surpresas um tanto embaraçosas. Qualquer que fosse o horário, bastava entrar na casa para sentir fluxos caóticos de uma energia estranha, para a qual ainda não foram criadas as palavras adequadas para descrevê-la. Era como ter a certeza de que havia algo lhe esperando, algo que se revelaria no exato momento em que se tirava os sapatos e se ensinuasse o movimento de se atirar na cama.

Ainda eram muito recentes as últimas palavras que ouvira de Dirceuzinho quando mais uma novidade surgiu na casa. Àquela altura Castro já não podia mais viver ali de maneira indiferente ao que acontecia com aquelas pessoas. Havia envolvimento, ainda que não fosse algo planejado por ele quando escolheu sua morada.

O fato é que uma sobrinha doente mental de Seu Dirceu, prima de Dirceuzinho, foi adotada pela família porque ficou orfã. A garota tinha dezesseis anos e era relativamente atraente para Castro, já que era jovem, louca, tinha grandes peitos e pelo que Dirceuzinho logo revelou, ela fazia sexo sem culpa. Revelou ainda que perdeu sua virgindade molestando-a sem cerimõnias na casa da avó de ambos numa noite de Natal dois anos antes.

Dirceuzinho a chamava de 'Renata, a rata', ou simplesmente de louca. A loucura de Reanata parece ter causado alguns distúrbios em Dirceuzinho, pois este passou algum tempo de sua vida desconfiando que ela fingia sua loucura. Para ele, a loucura dela parecia a desculpa perfeita para que fizesse o que quisesse. Havia o fato de Renata não ser vigiada o tempo todo, e isso reforçava a desconfiança de Dirceuzinho quanto à sua real condição de portadora de deficiência mental.

A chegada de Renata à pensão aconteceu quando Dirceuzinho estava se perdendo realmente no crack, e passou pela cabeça de Castro aceitar a proposta que recebeu do rapaz:

"Agora você precisa me ajudar... Quando você estiver fora deixe que eu fique no seu quarto transando com a bobinha, pois eu acho que o sexo é a única coisa capaz de me deixar um pouco longe das drogas.... Se você recusar essa minha súplica, estarei morto logo. Outro dia na Cracolândia eu estava na nóia e tentei roubar uma pedra de um outro maluco que me deu uma estiletada na nádega. Preciso de ajuda, meu caro..." - disse Dirceuzinho.

Castro deixou que Dirceuzinho transasse com a prima em seu quarto, com a condição que dissesse à sua mãe ou seu pai, caso fosse pego, que a tal chave tinha sido roubada por ele e que Castro não sabia até então. Fizeram uma cópia pra Dirceuzinho.

Na madrugada seguinte, Castro voltou para a pensão, subiu a escada para seu quarto, abriu a porta e Dirceuzinho estava morto, esticado na cama com uma cueca frouxa, todo cagado, com os bagos tristemente expostos. Sua prima estava ao seu lado vestida como uma animadora de torcida, de mini saia e sem calcinha, uma camiseta cor de rosa com uma letra 'R' estampada em branco, e entoava gritos de torcida ininteligíveis, enquanto alternava movimentos com os braços, ora estendendo-os para cima, ora abrindo-os lateralmente. Embora a cena fosse visualmente bizarra, o que dominava amplamente o cubículo era o cheiro fortíssimo de merda e de crack. Havia um caderno aberto no criado mudo com o que parecia ser um poema. Era dedicado a uma garota por ele chamada Pipa, que na véspera havia lhe dado de presente um vidro de maionese com um feto dentro, alegando que aquele era o filho deles.No caderno aberto havia uma caricatura do João Gilberto bocejando e embaixo estava escrito o seguinte:

Porca Prenha

É com uma coturnada na sua pança

Que eu resolvo nosso problema

Meu sêmem é radioativo e minhas filosofias são corruptas

E pensei que você seria corroída por dentro

Mas a gente já resolve essa encrenca mastodôntica

Não vai doer nada

Castro a princípio não soube o que fazer diante daquilo. Até poucos minutos antes de chegar à casa ele havia esquecido que talvez não encontrasse seu quarto vazio. O torpor alcoólico no qual estava mergulhado a princípio o impediu de se desesperar completamente com o fato de que não descansaria tão cedo do rolê do qual voltava.

As mandíbulas do inferno tinham se escancarado diante de Castro e ele foi de cabeça. Então resolveu seu problema abrindo a janela, acendendo um cigarro e fumando-o olhando para fora apoiado, no parapeito.