LEISHMANIOSE

Conjunto de enfermidades provocadas por protozoários do gênero leishmania. Vão desde lesões cutâneas leves até ofensas viscerais graves. Está presente no sul da Europa, países ao redor do Mediterrâneo; Extremo Oriente, México e sul dos EUA, América Central e Caribe; Ásia, África e América do Sul.
Em todo mundo registram-se anualmente cerca de dois milhões de novos casos de leishmaniose, sendo que 90% ocorrem no Peru, Bolívia e Brasil.
As características da doença, distribuição geográfica e tipo da população atingida levaram a OMS incluí-la entre as seis endemias mais importantes do mundo.

Leishmaniose no Brasil

No Brasil a leishmaniose é endêmica nas Regiões Norte, Nordeste e Sudeste, onde ocorrem 95% dos casos, entretanto, vêm apresentando franca expansão em outras regiões.
Nas duas últimas décadas tem aumentado o número de casos de leishmaniose e até surgido novos focos em lugares até então considerados livres da doença. Debite-se isso à piora na qualidade do serviço de saúde pública e controle sanitário, à falta de saneamento básico e aos desmatamentos desordenados nas periferias das cidades, dando lugar aos grandes loteamentos.

O agente infectante

Protozoário da família Trypanosomatidae Reproduz-se por divisão binária no interior dos macrófagos (células brancas responsáveis por destruir agentes estranhos ao organismo) do hospedeiro vertebrado.
Métodos taxonômicos modernos demonstram a existência de seis espécies de leishmania que causam doença clínica no homem, três das quais ocorrem também em cães. São elas:
Leishmania tropica ? causa leishmaniose cutânea, enfermidade de média gravidade.
Leishmania brasiliensis ? semelhante à Leishmania tropica.
Leishmania donovani ? causa a leishmaniose visceral ou calazar. Produz lesões no fígado, baço, rins e medula óssea. Destrói os sistema imunológico e hematopoiético. É mortal quando não tratada adequadamente.

O hospedeiro invertebrado ? Vetor

No Brasil os vetores são mosquitos do gênero Lutozomys. Tem várias denominações populares, de acordo com a região: inseto-pallha, birigui, tatuquira, cangalhinha, asa-dura, etc. São minúsculos, medindo entre um e três mm de tamanho. Apenas as fêmeas são hematófagas e o sangue é vital para a reprodução, sem o qual os ovos não se desenvolvem. Os machos alimentam-se de seiva de plantas.
Mosquitos que vivem nas proximidades das residências têm hábito noturno, iniciando a revoada ao entardecer, prolongando-se por toda a noite. Os que habitam as matas exercem a hematofagia também durante o dia. Pessoas que circulam em áreas de mata onde existe o mosquito vetor (caçadores, lenhadores, etc), contraem uma forma branda da doença, conhecida popularmente como "doença do lenhador".

O hospedeiro vertebrado

Mamíferos silvestres em geral (roedores, gambá, tamanduá, tatu, canídeos, raposas, primatas, preguiça, etc) estão envolvidos no ciclo biológico da leishmania. "O cão doméstico e o homem são hospedeiros acidentais".

A contaminação

Ao picar um animal infectado, o mosquito suga junto com o sangue o agente infectante (leishmania) que passa por transformação em seu interior, migrando em seguida para as glândulas salivares. Essa transformação no organismo do hospedeiro vertebrado é de importância fundamental para o processo de contaminação. Quando o mosquito, agora infectado, subsequentemente se alimenta, os parasitos são inoculados no novo hospedeiro, iniciando-se uma luta do organismo agredido contra o agente invasor. O sistema imunológico vai tentar isolar e destruir o microrganismo, livrando o hospedeiro da infecção e conferindo imunidade, o que ocorre na maioria dos casos. Todavia, há casos em que o organismo não consegue se livrar do parasita, passando então à condição de "portador" até o desenvolvimento da doença.
O período de incubação da leishmaniose é muito variado. Da contaminação até o surgimento dos primeiros sintomas vai de dois meses até seis anos. Nessa fase pré-patente, embora o animal esteja clinicamente saudável, torna-se um reservatório, podendo contaminar outros animais, se no ambiente em que convive existir o inseto flebotomíneo.

A doença.

Uma vez inoculado o agente infectante no hospedeiro vertebrado, inicia-se uma luta envolvendo o sistema fagocitário e imunológico. Dependendo de determinados fatores, ocorrem três condições:
- O parasita é eliminado do organismo do hospedeiro, conferindo imunidade. A hipótese é de que o os animais que venceram essa primeira fase, adquiram resistência, não mais se contaminando;
- O organismo não consegue eliminar o agente infectante, mas a doença clínica não se manifesta de imediato, tornando-se aquele hospedeiro em portador são. Nessa condição a doença pode nunca se manifestar, haja vista que mais de 50% dos cães portadores nunca apresentam a doença clínica, exercendo o papel de reservatório;
- A doença manifesta-se clinicamente.
É muito comum a doença clínica manifestar-se tardiamente, quando o animal já tenha abandonado a área endêmica.

A leishmaniose acomete cães indiferentemente de estarem sadios ou debilitados. Entretanto, há fatores predisponentes ainda não elucidados, que tornam alguns animais mais vulneráveis que outros.
É comum em um ambiente onde convivem vários cães recebendo o mesmo tratamento, todos submetidos ao mesmo desafio, uns se contaminam, outros não. E nem sempre os animais contaminados são os mais fracos, ao contrário da leishmaniose humana onde a incidência é maior em pessoas debilitadas, subnutridas ou imunodeprimidas.

De acordo com a forma de manifestação clínica e com o agente infectante, a leishmaniose classifica-se como Tegumentar e Visceral.

- Leishmaniose tegumentar ? também conhecida como mucocutânea. Causada pela Leishmania tropica e Leishmania brasiliensis. Caracteriza-se por ferimentos crostosos de difícil cicatrização e que não respondem aos tratamentos convencionalmente preconizados para as dermatopatias. Desaparecem espontaneamente surgindo em outras partes do corpo, numa sazonal idade mais ou menos regular. Em determinadas ocasiões o animal está tomado por lesões cutâneas e mucocutâneas, crostosas ou exudativas. Em outras ocasiões está sem lesões aparentes, confundindo sobremaneira o clínico veterinário, dificultando o diagnóstico. A leishmaniose mucocutânea não é letal.

- Leishmania visceral ? também conhecida como calazar, é provocada pela Leishmania donovani. Infecção sistêmica que afeta o fígado, baço, os rins e medula. Os sinais clínicos iniciais são idênticos aos da leishmaniose mucocutânea, evoluindo para apatia, emagrecimento progressivo, febre recorrente e sangramento oronasal. Numa segunda fase da doença as lesões cutâneas tornam-se mais vastas e profundas. Surgem também alopecias ao redor dos olhos e ceratoconjuntivite, crostas e paquidermia nas bordas das orelhas e focinho que sangram com facilidade, embora sejam indolores; ulcerações na boca e nos coxins plantares; distensão abdominal pela dilatação do fígado e do baço (hepato-esplenomegalia); Nefrite e insuficiência renal; distúrbios da coagulação; destruição da medula óssea e dos fatores hematopoéticos e imunológicos. Evolui invariavelmente para a morte.

Tratamento

Do ponto de vista de saúde pública é desejável a eliminação dos cães soropositivos. Há inclusive, expedientes que proíbem o tratamento de cães infectados. Também é consenso entre as autoridades sanitárias que a leishmaniose em cães não tem cura, entretanto, a rotina clínica tem mostrado que alguns protocolos terapêuticos quando bem conduzidos recuperam a maioria dos animais doentes, chegando inclusive a negativar os exames laboratoriais de leitura direta, o que se supõe não haver mais parasita circulante.
O médico veterinário deve agir com isenção e imparcialidade, buscando oferecer ao proprietário uma oportunidade de tratamento, mesmo considerando que a "cura é impossível", conforme apregoam os órgãos de saúde pública. Há de se considerar que um tratamento médico não visa exclusivamente à cura. Muitos tratamentos buscam melhorar a qualidade de vida do doente minimizando ou até mesmo abolindo o sofrimento e, sobretudo, aumentar a sobrevida. Alguns tratamentos contra leishmaniose aumentam a sobrevida do cão em seis anos ou mais, o que a rigor, na pior das hipóteses, avizinha-se à expectativa média de vida da maioria dos cães.
O clínico veterinário que lida com animais de estimação conhece muito bem a dor e o constrangimento provocados pelo sacrifício de um animal, especialmente nos dias atuais, quando o cão adentrou a casa do homem, passando a fazer parte da família. Portanto, a decisão de tratar ou sacrificar um animal deve partir de um consenso entre o veterinário e o proprietário, decisão essa, isenta de emoções e de preconceito.
Evidentemente que nem todos os cães estão capacitados para receber o tratamento. A seleção deve passar por uma avaliação do estado geral do animal, apoiada em provas circunstanciadas das funções orgânicas. Deve também ser feito um perfil do proprietário, sua disposição para enfrentar um desafio árduo, como também a sua consciência comunitária, haja vista que o animal parasitado não deve sob qualquer hipótese pôr em risco a saúde das pessoas.
Não existem muitas opções para o tratamento clínico de leishmaniose. O protocolo terapêutico de primeira escolha baseia-se em compostos antimoniais pentavalentes (antimoniato de meglumina), usados há mais de 50 anos. Tem a inconveniência de ser longo e doloroso, além de apresentar efeitos colaterais perversos. Outro protocolo que se presta muito bem ao tratamento dos cães é a Anfotericina-B, por ser mais bem assimilado, apresentar menos efeitos colaterais e menor tempo de tratamento. Usa-se como monodroga ou associada à Flucitosina. Qualquer tratamento da doença de base requer antibioticoterapia e cuidadosa terapia de suporte objetivando prevenir lesões hepáticas, renais e sanguíneas.
Os cães que foram submetidos a tratamento devem passar por avaliação clínica e laboratorial a cada seis meses, para controle da doença de base e monitoramento das funções e dos órgãos supostamente atingidos.

Controle da Leishmaniose

A leishmaniose é uma doença infecto-contagiosa que para sua propagação exige a concorrência de um vetor - o flebotomídeo - e de no mínimo um hospedeiro, seja ele animal silvestre, animal doméstico, dentre eles o cão, ou até mesmo o homem. Por essas razões, um programa que persiga uma eficácia verdadeira deve priorizar o combate ao inseto-palha. Sem a eliminação do mosquito não há o combate da doença. Isso é óbvio!
O combate ao mosquito é de grande complexidade, tanto em áreas urbanas, quanto em florestas, por requerer mão-de-obra, investimento, educação sanitária e vontade política, sobretudo.
Em áreas urbanas o nível de complexidade parece diminuído, já que é possível mapear os focos e retirar-lhes as condições de reprodução e sobrevivência. Há casos, inclusive, que se constatou franca diminuição do inseto-palha junto com o combate ao Aedes aegypti, mosquito transmissor da dengue.
Quando o foco está em áreas de floresta pouco pode ser feito, dada a impossibilidade de se manipular com as fontes silvestres de contaminação.
Existe relação estreita entre a modificação do ambiente natural do flebotomíneo (desmatamentos, queimadas, etc.) e o seu conseqüente surgimento em áreas urbanas. Esse é o principal, talvez até o único fator condicionante da migração do inseto-palha, haja vista seu habitat natural ser a floresta.
No Brasil os programas de controle da leishmaniose baseiam-se fundamentalmente no extermínio de cães. Em alguns lugares, apresentado até como alternativa única. O sacrifício de cães não diminui a incidência da doença, porque o cão é um hospedeiro acidental, assim como o homem também é. Mesmo que se exterminassem todos os cães, ainda assim o problema não seria resolvido. Um cão soropositivo por si só não representa qualquer risco, haja vista não haver transmissão de cão para cão nem de cão para homem. Para que isso ocorra, é necessária a concorrência do inseto-palha, sem o qual o ciclo não se completa, como já foi visto.
A eliminação de cães errantes não domiciliados é indicada, não apenas no controle de leishmaniose, mas, de várias outras doenças infecto-contagiosas e até mesmo de acidentes de trânsito e outros estorvos que animais vadios imputam à sociedade. Com isso não quero dizer que eles sejam necessariamente sacrificados. Há outras formas de removê-los. Temos observado que grande quantidade de cães errantes é domiciliada, cabendo educar os seus proprietários e até atribuindo-lhes responsabilidades advindas dos transtornos provocados pelos seus animais.

Pontos ponderáveis

Como podemos observar, a leishmaniose como entidade patológica, é polêmica e controvertida, pelas peculiaridades da doença, pela interferência de organismos governamentais e até pela exploração política feita por administradores públicos desleais.
Do ponto de vista de saúde pública, a única solução apresentada é o sacrifício de cães infectados. Associado a isso, é desejável e até recomendável, a apreensão e eliminação de cães errantes em geral.
A posição dos órgãos de saúde pública, eliminação sumária tem suscitado controvérsias e até constrangimento entre os médicos veterinários.
Existem profissionais que optam pelo sacrifício sumário de cães cujo exame deu positivo para leishmania, mesmo que ainda não estejam presentes os sinais clínicos. Outros são favoráveis ao tratamento de cães positivos que ainda não tenham apresentado sinais clínicos ou os acometidos de leishmaniose mucocutânea, adotando-se ainda medidas preventivas, como afastamento do animal de locais com ocorrência do inseto-palha, etc., etc.
Muitos veterinários, por desconhecimento ou por obediência cega às recomendações dos órgãos de saúde pública deixam de ofertar aos proprietários a oportunidade de tratamento e as medidas de controle e exposição do cão ao mosquito. Convém compreender que até por direito natural, o proprietário dispõe do destino do seu cão, como também é dele a decisão de tratar ou promover eutanásia, cabendo ao veterinário orientar e conduzir o tratamento e intermediar as ações cautelares. O médico veterinário, como profissional de saúde, deve compreender a grande dor e constrangimento que traz o sacrifício de um animal de estimação, especialmente nestes dias atuais, quando o cão adentrou definitivamente à casa do homem, passando a fazer parte da família. Também é preciso considerar o estado de ânimo do profissional forçado a dar fim ao seu paciente, estando convicto da sua sobrevida e da inofensibilidade, desde que adotados os resguardos devidos. A rigor, nenhum profissional poderá ser penalizado por exercer legitimamente o seu ofício, no caso do médico veterinário, a busca permanente da cura ou do bem-estar do seu paciente.
A eutanásia deverá ser adotada apenas quando se esgotarem todas as possibilidades de tratamento e quando o animal esteja sob sofrimento intenso, desumano ou coloque em risco a saúde da coletividade.
Por ser a leishmaniose uma enfermidade de comunicação obrigatória, cabe ao médico veterinário comunicar a ocorrência clínica às autoridades sanitárias, essas sim, adotarão as medidas cautelares.

É lamentável como alguns administradores públicos fazem uso político de uma doença tão importante como leishmaniose. Numa determinada cidade no litoral do Pernambuco é denunciado com grande alarde, surtos cíclicos de leishmaniose. Intrigante e que essas denúncias coincidem com campanhas ou movimentos eleitorais. Cães errantes são recolhidos com requinte de truculência, da forma mais ostensiva possível. Faz parte do processo. Até mesmo cães domiciliados são seqüestrados sob os olhares dos proprietários perplexos e constrangidos. Ato contínuo são sacrificados a pauladas, tudo isso sem que seja feito sequer um exame físico superficial por médico veterinário. Em seguida aquele administrador público distribui panfletos muito mais terroristas do que educativos, explorando esse ato como um grande feito em favor dos seus munícipes.

Outro exemplo considerável da falta de cuidado com o manejo da leishmaniose ocorreu na Cidade de Araçatuba-SP. Um erro na elaboração de um exame de laboratório denunciou 400 casos de cães soropositivos para leishmania. Todos os animais foram sacrificados. Cães vadios foram recolhidos e igualmente sacrificados. Cães domiciliados foram seqüestrados e sacrificados sem diagnóstico. Apenas suspeita. A imprensa local e a nacional deram ampla cobertura, produzindo uma onda de pavor. No dia seguinte à notícia, a Cidade de Araçatuba amanheceu tomada por cães abandonados pelos seus proprietários aterrorizados, fato também ocorrido em diversas cidades, Brasil afora. "Ai sim, um grave problema de saúde pública, haja vista os riscos potenciais de acidentes de trânsito e outros danos que pode causar um animal vadio"! Eu, pessoalmente, recebi diversas ligações de proprietários aflitos, com essa apocalíptica doença "misteriosa". Uns querendo se desfazer do animal a qualquer custo, outros vivendo grande conflito em eliminar seu amigo fiel, seu ente querido ou conviver com a doença, "sujeitando-se a contraí-la".
A instituição que divulgou a suposta doença não teve o cuidado de orientar a população sobre os reais meios de contágio e os riscos potenciais de contaminação!

Numa reflexão mais cuidadosa percebe-se que há uma inversão de status ao atribuir ao cão, papel de vilão, responsável por todos os males, excluindo-se propositadamente o mosquito, este sim, o verdadeiro vilão.
Recolher cão na rua, promover extermínio é muito mais visível ao "eleitorado" do que drenar charco e conter desmatamentos.
Dados recentes demonstram que as campanhas de pulverização para combate ao Aedes aegypti, mosquito transmissor da dengue, tem diminuído consideravelmente e até erradicado o inseto-palha de algumas comunidades.
A leishmaniose é uma doença séria, agravada pela malversação política dos seus efeitos.

Recife-PE, 03 de fevereiro de 2011.
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ARIONALDO DE SÁ ? Médico Veterinário
CRMV-PE 1920



Protocolo alternativo para tratamento de cães portadores de leishmaniose, em boas condições físicas, sem lesões aparentes:

Prednisolona ? 1mg/kg dia VO, nos três dias que antecedem o tratamento.

Anfotericina-B ? 0,2mg/Kg dia, nos dois primeiros dias; 0,4mg/kg dias, nos treze dias subseqüentes.
(Medicação deverá ser diluída em 100 ml de glicose a 5%, infusão lenta - 2 horas).

Alopurinol ? 10mg/Kg VO, 2x dia, durante o tratamento.

* Tratamento consiste em15 dias consecutivos. Repouso de 15 dias ? 3 séries *

Estudar: Flucitosina
Silimarina (como adjuvante)
Leucogen

Opções convencionais de tratamento ? não disponível ao médico veterinário

Pentamidina ? Pentacarinat
Antimoniato de meglumina ? Glucantime

É indispensável considerar que os órgãos de saúde pública proíbem os médicos veterinários de promoverem qualquer tipo de tratamento, diferente da autanásia