O trânsito como significativa esfera da vida social

Fábio Eduardo Martins Matos
Rodrigo Víctor Aragão Batalha

SUMÁRIO: Introdução; 1 Trânsito no Brasil e no Maranhão; 2 O Direito no trânsito; 3 A sociedade e a vida no trânsito; Conclusão; Referências.

RESUMO
O artigo científico trata sobre o trânsito e as relações intersubjetivas que ocorrem nele constantemente. O trânsito, as relações pessoais e a cultura sofrem mutação com o tempo e o direito tem o dever de acompanhá-los. Há décadas o trânsito não tinha a dimensão que tem hoje, o que provoca a grande complexidade de relações e de problemas (violência no trânsito). Faz-se uma pesquisa sobre as relações sociais no trânsito e as consequências da expansão deste. Expõe-se como o Direito rege essas relações e se evidencia a importância do trânsito na vida das pessoas.


PALVRAS-CHAVE: Direito. Trânsito. Sociedade. Violência. Pessoas. Relações.


INTRODUÇÃO

O trânsito é uma esfera da vida social de grande importância na atualidade. As relações intersubjetivas e estruturais (relações de produção) têm por pressupostos o trânsito de pessoas e mercadorias. E como integrante da dinâmica social, o trânsito se transforma junto a ela, dinamizando-se, ampliando-se de modo a demandar cada vez mais atenção do Direito. Este é o elemento estatal regulador das relações sociais, que, por conseguinte, tem o dever de dar atenção a essa esfera social.
No Brasil, a indústria automobilística cresce em pleno vapor enquanto a demanda por automóveis aumenta. As grandes cidades se mobilizam com milhares de carros às ruas dinamizando a economia. Enquanto isso se dá, existem relações sociais acontecendo a todo o momento no trânsito e são reguladas pelo Direito, não só pelo Código de Trânsito Brasileiro, mas por todo ordenamento jurídico. O carro pode ser um meio para locomoção, para geração de renda e até para lazer, mas manuseado de forma errada pode causar grandes problemas, podendo ameaçar a vida de pedestres, bem como a vida dos próprios motoristas.

1 TRÂNSITO NO BRASIL E NO MARANHÃO

Segundo Rozestraten, trânsito é "o conjunto de deslocamentos de pessoas e veículos nas vias públicas, dentro de um sistema convencional de normas" . Ele não se resume a utilização das vias por automóveis em circulação, mas também os estacionados e em operação de carga e descarga e ainda inclui também os pedestres e os animais . Também é meio para geração direta de renda. Como exemplos: motoristas de ônibus, táxis, vans, cobradores de ônibus, caminhoneiros, manobristas, flanelinhas, limpadores de pára-brisa, frentistas, mecânicos, etc. O que seria da vida das famílias que dependem desses profissionais sem o trânsito? Sem falar nas gerações de renda que dependem indiretamente do trânsito que é quase a totalidade. De acordo com este autor

todo mundo na sociedade moderna participa do trânsito, desde antes de nascer e logo depois, como bebês empurrados nos carrinhos ou presos nas cadeirinhas dos carros. Logo mais já participarão andando e segurando a mão da mamãe, uns anos depois circularão de velocípede, motoquinha, skates, patinetes ou bicicletas. Quando adolescentes, participam com ciclomotores, motocicletas e motos pesadas, passando logo a motoristas. Já idoso, trarão para as vias sua dificuldade de enxergar e de reagir

Fazendo uma análise histórica, o automóvel, que foi inventado no fim do séc. XIX, produziu sua primeira vítima na América há mais de 100 anos . Foi uma época extremamente diferente da atual. Escreveu Zélia Gattai, nos anos 20 do último século, retratando essa época:

[...] naqueles tempos a vida era tranqüila. Poderia ainda ser mais, não fosse a invasão, cada vez maior, de automóveis importados que infringiam as regras de trânsito, muitas vezes, chegando ao abuso de alcançar mais de 20 km/h, velocidade permitida somente nas estradas .

Vê-se, assim, a diferença de tempos atrás para o séc. XXI.
O número de habitantes nas grandes cidades é demasiado grande para a quantidade de vias de trânsito disponíveis. A concentração populacional causa graves problemas para locomoção dos veículos, visto que os congestionamentos são cada vez maiores e demorados. Os coletivos não estão dispostos em número proporcional à população, deixando grande parte desta a desejar. Nos horários de maior fluxo de automóveis, o trânsito parece parar e há atraso em diversos setores da sociedade. Muitas estradas e avenidas estão em situações precárias, com deficiências, buracos e mal sinalizadas, o que é um perigo, tanto para os motoristas como para os pedestres.
A venda de carros aumenta e o número de pessoas que obtém carteira de trânsito também. Quase três milhões de veículos entram no mercado brasileiro e 1,7 milhões de pessoas conseguem habilitação para dirigir anualmente. São 27 milhões de veículos registrados em circulação e 40 milhões de motoristas, segundo o site governamental da Empresa Brasil de Comunicações . A quantidade de pessoas que morrem no trânsito ao ano no Brasil é espantosa. Chega a ser mais expressiva que o número de mortos na guerra do Vietnã . Os custos anuais de acidentes de trânsito no país são de R$ 28 bilhões estimados pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) . Ainda há pessoas que dirigem alcoolizadas, abusam da velocidade, não respeitam as leis de trânsito, dão pouca importância para a tão almejada direção defensiva e ainda existem aquelas que dirigem sem ter habilitação. Entre 2003 e 2006, morreram 34 mil pessoas, 100 mil com deficiências e 400 mil feridos no trânsito brasileiro de acordo com a ANTP .
Em São Luís do Maranhão o controle dos acidentes de trânsito é realizado pelo DETRAN, em parceria com o ICRIM e pelos batalhões de polícia responsáveis por cada área. O ICRIM (Instituto de Criminalística) é responsável pela perícia de mortes violentas, crimes contra a pessoa, crimes contra o patrimônio, incêndios, etc. Além disso é responsável pela perícia realizada em acidentes automobilísticos que constem em resultado vítimas, ou por lesões, ou por óbitos . Referente ao mês de outubro, foram coletados dados do ICRIM sobre os acidentes na capital. Houve um total de 65 registros de acidentes que ocorreram nas vias de toda a ilha e que houve a presença da perícia desse órgão. Sendo as avenidas dos Africanos e a dos Franceses as de maior ocorrência. Apenas três acidentes ocasionaram vítima fatal, sendo 10 sem vítima e 52 com vítima de lesão corporal. É importante frisar que, por muitas vezes, a vítima morre depois de ser deslocada para o hospital, assim o ICRIM não tem conhecimento da morte, registrando como apenas lesão, por não haver morte no local. Da totalidade de acidentes, 37 acidentes, isto é, mais da metade, estão relacionados com motos, a maior parte referente a acidente destas com carros pequenos .
Já os dados da Delegacia de Trânsito são mais completos, pois grande parte dos acidentes de trânsito lhe é reportada, independente de haver ou não pericia no local. Segundo testemunho e documento probatório, foram registrados 424 ocorrências em São Luís, sendo que em seis houve homicídio, 166 lesões corporais e 244 danos materiais .
Observa-se, então, o grande número de mortes, danos físicos e materiais para muitas pessoas da sociedade, repercutindo em suas vidas grande impacto, denotando a importância do trânsito para a vida social e a demanda pela efetiva regulação do Direito.

2 DIREITO NO TRÂNSITO

O Código de Trânsito Brasileiro, Lei 9.503 de 23 de setembro de 1997, foi instituído em substituição à antiga legislação de trânsito. Ele tenta assegurar a segurança no trânsito e a educação dos usuários deste, declarando-o como direito de todos e dever dos órgãos responsáveis, como o Sistema Nacional de Trânsito de acordo com seu artigo 1º §2º:

O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medias destinadas a assegurar esse direito.

O CTB dispõe de uma tríplice promessa preventiva: a) as normas jurídicas que impõem diretrizes para os usuários e regulam a circulação dos veículos e a conduta daqueles; b) a educação formal, através do ensino público em todos seus níveis; e c) a educação informal, cuja realização se dá por "campanhas públicas de caráter permanente" .
O direito ao trânsito tem por base o direito individual de ir e vir. Entretanto não se resume somente ao indivíduo singular, mas sim a uma coletividade e suas relações, portanto esse direito individual de ir e vir limita-se pelo direito supraindividual de segurança no trânsito. Logo existe um binômio que norteia o CTB, isto é, os direitos individuais e os supraindividuais . Ambos devem ser garantidos.
Mas o CTB restringe o âmbito das relações de trânsito ao motorista e ao veículo. Todavia, as questões de trânsito abrangem mais que isso, pois são problemas com pluralidade de fatores. Quais sejam: mudanças sociais, estruturais e tecnológicas como crescimento da frota, aumento do número de carros em circulação de modo desproporcional ao número de vias, a deterioração destas e de sua sinalização e o aumento de potência dos carros; as relações e interesses baseados nas relações de poder, tráfico de influências, corrupções entre usuários, autoridades policiais e agentes de trânsito . Segundo Vera de Andrade, "pode-se dizer que a domesticação da barbárie do trânsito pretende se exercitar antes pelo poder manifesto na caneta das autoridades do que pela civilização a partir de uma cultura cidadã". Isto é, as relações de poder e influência são bem mais determinantes que a educação que o CTB pretende dispor, a qual na verdade não dispõe. De todos seus artigos, apenas seis são educativos, contrastando com 150 que disciplinam as sanções administrativas e penais para os infratores .

3 A SOCIEDADE E A VIDA NO TRÂNSITO

O progressivo mercado automobilístico deve-se ao ideário consumista da sociedade. Mas não só a isso. As facilidades de compra e de financiamento consequentemente também. Destas e do consumismo decorre maior quantidade de compras de veículos que integram a frota já grande para a malha viária existente no país. É necessário o acompanhamento das vias públicas ao número de carros nas mãos dos usuários. Mas não é o que ocorre. Decorrente disto, há congestionamentos monumentais que retardam a produção do país e causam ainda mais acidentes
A sociedade e o Estado legitimam a fabricação de carros cada vez mais potentes. Se a maior velocidade permitida pelo ordenamento jurídico brasileiro é 110 km/h em estradas federais e estaduais, expresso no artigo 61 do CTB , porque um automóvel popular pode chegar a 160 km/h e os mais potentes chegam a mais de 200km/h?! E pensar que no começo do século passado se achava que 20 km/h era demais! As pessoas se fascinam pela maior potência dos carros e o Estado ignora esse fato em benefício das multinacionais fabricantes desses veículos, sendo que o trânsito causa por ano, como supracitado, milhares de mortes.
O trânsito constitui-se de deslocamentos que são realizados por comportamentos, ou seja, o trânsito é um conjunto de comportamentos-deslocamentos dos seus usuários . A conduta, pois, do motorista, pedestre, agente e engenheiro de trânsito são determinantes para a vida no trânsito. Os brasileiros tendem a fazer do ambiente público a sua casa, como já citada a "domesticação da barbárie do trânsito". De acordo com a obra "a Casa e a Rua" de Roberto DaMatta ? na qual a "casa" é o ambiente das relações e influências pessoais, de patriarcalismos, de privilégios, de hierarquização e a "rua" que consiste na igualdade de direitos a todos com determinações objetivas como a Lei ? há, por muitas vezes, o englobamento da "casa" pela "rua", quando se faz do ambiente público o palco das relações e influências pessoais . Consequentemente, o uso inadequado das relações de poder geram a corrupção, o privilégio e o desrespeito pela ordem jurídica justa, assim legitimando as infrações dos que por suas relações pessoais ficam impunes.
Segundo Flávia Piovesan no livro Cidadania,

[...] as relações existentes no trânsito e em sua dinâmica simbolizam de forma concreta como a cidadania desenvolve diariamente, como as pessoas atuam no âmbito do espaço público, o grau de respeito aos direitos, o grau de cumprimento aos deveres, a agressividade no trânsito, o padrão de indisciplina, os tantos acidentes e as tantas mortes. Em suma, as relações vividas no trânsito refletem o modo pelo qual os indivíduos internalizam (ou não) as regras de respeito à segurança, à vida, à liberdade individual e coletiva .

É preciso pensar no trânsito não só como meio para si chegar ao trabalho, à praia, à escola, etc., pois existem relações intrínsecas ao trânsito, ou seja, que acontecem nesse caminho entre ponto de saída e destino. As pessoas tendem a ignorar esse período no qual elas mantêm relações com várias pessoas que sequer sabem o nome, mas que precisam respeitar e tratar da melhor forma para um convívio pacífico. Nos acidentes de trânsito morrem milhares de pessoas e muitas outras saem feridas ou, no mínimo, com prejuízos, tanto no bolso, como no tempo que perdem. Portanto, torna-se necessária uma maior atenção não só do direito, mas também uma conscientização por parte dos integrantes do trânsito de que é preciso valorizar essa esfera da vida, pois quando menos se espera, essa esfera pouco valorizada pode mudar drasticamente toda a vida.
O trânsito representa assim um microuniverso das relações sociais legitimadas em nível estatal, refletindo suas principais características singulares, fruto dos conflitos de dimensões do corpo social. Fatores como patriarcalismo e patrimonialismo, destarte, representam os mesmos aspectos no microuniverso do trânsito que aqueles apresentados de forma ampla. Ora, o próprio Código de Trânsito brasileiro institui como sua diretriz o bem jurídico tido como "segurança", fator este considerado, no que concerne à teoria de Hobbes, como fator essencial para a constatação da sociedade, e, portanto, do macrouniverso do Estado Democrático de Direito.

CONCLUSÃO

O trânsito, pois, deve ser encarado como significativa parcela da vida em sociedade. Não somente como meio para locomoção, mas, outrossim, como esfera de relações sociais de grande importância levando-se em consideração a possível lesividade do trânsito. O direito como instrumento de pacificação social tem por escopo dar estabilidade às relações que ocorrem no trânsito, assim possibilitar um melhor convívio social nesse âmbito e otimizar o seu funcionamento. O universo do trânsito deve ser encarado pelos membros da sociedade como atinente às relações de igualdade entre os participantes deste e de respeito às normas que o regem em detrimento do patriarcalismo e da troca de influências.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina. Sistema Penal Maximo x Cidadania mínima. Livraria do Advogado Editora: Porto Alegre, 2003.
BRASIL. Código de Trânsito Brasileiro. Anne Joyce Angher, organização. 6.ed. São Paulo: Rideel, 2008.
CERNER, Júlio (Coord.). Cidadania: verso e reverso. Editora Imprensa Oficial: São Paulo, 1997.
DAMATTA, Roberto. A Casa e a Rua. Rio de Janeiro: Vocco, 1997.
MATTEDI, José Carlos. Agência Brasil: Empresa Brasil de Comunicações. Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/09/17/materia.2007-09-17.1329445483/view> Acesso em: 14 de novembro de 2008.
MARANHÂO. Delegacia do Trânsito. Depoimento de Salazar, 2008.
_________. Instituto de Criminalística. Depoimento de Antonio Jose dos Santos, 2008.
ROZESTRATEN, Reinier. Psicologia do Trânsito: Conceitos e processos básicos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1986.