Julieta e Romeu, duas formas distintas de amadurecer através do amor

                                                                                                 *  Gilmara  Craveiro

 

 

Introdução

William Shakespeare ficou conhecido por abordar em suas obras as grandes paixões humanas derivadas da ambição, do poder e do amor. Em Romeu e Julieta o amor é violento, avassalador, a força estática que supera todos os outros valores, lealdade e emoções.

Vale ressaltar que o amor é sem dúvida o tema principal da peça, porém, não se pode esquecer que Shakespeare não está interessado em retratar somente a versão delicada da emoção. O amor de Romeu e Julieta é uma poderosa emoção brutal que capta os indivíduos e os lança contra o mundo, e ás vezes, contra si mesmos, como defende Frye:  

“Os dois amantes trazem dentro de si um dilema, em que uma voz lhes diz que estão embarcando numa ilusão perigosa e uma outra diz que eles devem embarcar nessa ilusão , não importa quais sejam os perigos, porque fazendo isso serão mártires ou testemunhas de uma ordem de coisas que é mais importante do que a realidade diurna.”

(FRYE, 1999, p. 44)

O artigo a seguir propõe analisar Julieta, enfatizando suas atitudes e reações diante da sociedade e do amor que acontece em sua vida de forma arrebatadora. Considerando principalmente o amadurecimento precoce causado por esse sentimento avassalador, no intuito de mostrar que a força que impulsionava essa jovem a lutar contra as convenções da época e contra os próprios pais, provinha realmente desse amor valente tão defendido por ela.

Não tendo sequer atingindo seu décimo quarto aniversário, Julieta se encontra numa idade que faz fronteira entre a imaturidade e a maturidade. No começo da peça ela parece apenas uma ingênua e obediente criança. Apesar de muitas meninas da idade dela, inclusive sua mãe, terem se casado jovens assim, para ela isso passava distante:  “LADY CAPULETO - Pois foi para falar em casamento que te chamei. Filha, Julieta, diz-me: em que disposição estais para isso? JULIETA- É uma honra com a qual jamais sonhei.”( Romeu e Julieta, Ato I -cena III)

Quando Lady Capuleto menciona o interesse de Paris em se casar com ela sua resposta ainda aparece como a da Julieta obediente quando ela diz que vai sim tentar amá-lo, resposta essa ainda infantil na sua concepção imatura de amor.   Porém, o que se pode perceber nesse diálogo é que na verdade Julieta já dá vislumbres de sua determinação, força e sobriedade e demonstra uma prévia da mulher que irá se tornar durante o intervalo dos quatro dias em que se desenrola a peça.

Além disso, mesmo se recusando a aceitar o amor de Paris, Julieta mostra sementes de determinação férrea, procurando convencer a mãe de que será uma esposa da maneira que ela deseja.  

SENHORA CAPULETO- Que dizeis? Sois capais de amar o jovem? Hoje à noite vê-lo-eis em nossa festa. Folheai o livro de seu jovem rosto, que nele encontrareis doces encantos escritos pela pena da beleza. Examinai-lhe os traços delicados e vede como se acham bem casados. E se no livro achardes algo obscuro, encontrarei nos olhos o esconjuro. Esse manual de amor só necessita de uma capa adequada e bem bonita. Vive no mar o peixe; é multo certo que deva o amor ficar algo encoberto. As letras de ouro da lombada a glória terão em parte da formosa história. Ficareis, pois, com ele associada sem que vos diminuas, com isso, em nada.

AMA- Oh! Não diminuirá. Pelo contrário; as mulheres com os homens sempre aumentam.

SENHORA CAPULETO- Enfim, que me dizeis do amor de Páris?

JULIETA- Vou ver se prendo nele meus olhares. Mas a vista chegar além não há de do que me consentir vossa vontade. (Romeu e Julieta, Ato I- cena III)

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Ainda menina Julieta parece não ter amigos de sua idade, e muito menos demonstra liberdade ao falar sobre sexo, pois percebe-se nitidamente seu desconforto quando a ama dispara suas piadinhas de duplo sentindo.

AMA- Pois não, senhora; não me é possível deixar de rir, ao recordar como ela interrompeu o choro e disse “Sim”. No entretanto, crescera-lhe na testa, jurar posso, um calombo grande como testículo de galo. Que pancada! E ela chorava amargamente. “È certo”, disse-lhe meu marido; “cais de frente, não é assim? Mas vais cair de costas, quando fores maior. Não é, Julu?” E ela, já sem chorar, respondeu: “Sim”.

JULIETA- Então para também, ama: é o que peço.

(Romeu e Julieta, Ato I- cena III)

Com essa passagem fica clara a maneira solitária a qual Julieta foi criada, onde sua amiga mais próxima é uma ama de caráter duvidoso, más que conhecia mais dessa jovem do que a própria mãe “(...) - ou talvez ela perceba que a ama é mais próxima de Julieta do que ela própria-” (FRYE, 1999, P.32)

Ainda nesse pensamento, entende-se que a princípio o autor compõe Julieta como sendo uma menina bela e rica, porém sem atenção dos pais, carente de afeto, pensamento esse, aqui embasado pro Frye:

“De repente temos a visão de como a infância de Julieta deve ter sido, passeando por uma imensa casa onde o pai é “Senhor” e a mãe “Senhora”, onde ela precisa pedir permissão especial para sair (permissão essa que geralmente não lhe é concedida, a não ser para se confessar com o padre), onde está esperando pelo dia em que o senhor Capuleto, com efeito, dirá a sua mulher: “Estou certo de que temos uma filha em algum canto deste lugar. Não é hora de nos livrarmos dela? ”Então ela se casaria e se enquadraria no mesmo modelo da mãe, que se casou na mesma idade, por volta dos catorze. Enquanto isso, não há quase ninguém com quem a criança possa falar, exceto a Ama e o marido ela com sua incansável piada.” ( FRYE, 1999, p. 33)

Essa carência afetiva faz dela vulnerável, confirmando a tese de que por conta disso Julieta se entrega totalmente ao amor belo apresentado a ela por Romeu. Presa fácil nesse sentido, a “pobre menina rica” fica encantada por esse jovem romântico e apaixonado pelo amor. Isso até caracteriza uma contradição, pois já que ela era solitária e parecia não ser notada pelos pais, porque então não seria suficiente o amor de Páris? A explicação é simples, Julieta ansiava por um amor “religião”, que a fizesse uma verdadeira mulher, embora custasse sua própria vida.

O primeiro encontro com Romeu impulsiona Julieta com força total a idade adulta. E é nesse sentido que Romeu aparece como salvador, uma ponte que levou essa menina sem expressão á uma mulher valente, podendo até ser comparada a outras personagens fortes de Shakespeare “então, em meio à sua crise na peça, quando ela, uma criança assustada, se transforma numa mulher com coragem e firmeza mais genuínas do que Lady Macbeth jamais teve (...)” ( FRYE, 1999, p. 33), porém é somente nessa parte,nas demais Julieta se faz muito mais forte e focada.

O que não quer dizer que ele também não tenha amadurecido, pode-se afirmar que sim, a forma de amar mudou para ele. Romeu era um grande leitor de poesias românticas, e a representação de seu amor por Rosalina sugere que ele procura recriar os sentimentos que lê. Referente à Rosalina parece que Romeu ama pelo livro, já que ela escapa a sua mente á primeira visão de Julieta.

ROMEU- Esse é o meio certo de mais consciente me tornar ainda de sua formosura em tudo rara. Essas felizes máscaras que as frontes beijam das jovens belas, sendo pretas pensar nos fazem que a beleza escondem. Quem chegou a cegar, jamais se esquece da jóia rara que perdeu com a vista. Mostrai-me uma mulher de inexcedível formosura; para algo servir pode, senão de sugestão para que eu leia quem a excedeu em tanta formosura? Não, nunca hás de ensinar-me o esquecimento. (Romeu e Julieta , Ato I- cena I)

Entretanto Julieta não é uma mera substituição, com ela Romeu compartilha um amor profundo,mais autêntico e original, longe do amor clichê anterior. Ele amadurece no decorrer da peça a partir do desejo de viver o amor com uma paixão intensa, porém esse amadurecimento é somente na forma de vislumbrar o amor. Essa maturidade adquirida deve ser atribuída, pelo menos em parte, a Julieta, pois é nela que ele vê concretizado suas ideias até então superficiais de amor.

No entanto, essa profunda capacidade de amar é apenas uma parte de sua capacidade de ser intenso perante todos os sentimentos. Em outras palavras, Romeu era incapaz de medir conseqüências, tanto quando esgueira-se  no jardim do inimigo, correndo o risco de morte, simplesmente para ter o vislumbre da amada, como quando num duelo imprudente mata o primo de sua esposa( que agora também era parte de sua família) para vingar a morte do amigo.             Mostrando ainda mais sua imprudência, por não ter sido capaz de pensar na amada nesse momento ,“Nessa hora Julieta desaparece da mente de Romeu pela primeira vez desde que a viu, ele só pensa em se vingar de Tebaldo pela morte do amigo.” (FRYE 1999, p. 39)

Tal comportamento extremo domina o caráter de Romeu durante toda a peça, e contribui para a tragédia final que recai sobre os amantes quando o seu desespero impele o suicídio ao saber da morte de Julieta.

ROMEU- (...) Vem condutor amargo! Vem, meu guia de gosto repugnante! Ó tu, piloto desesperado! Lança de um só golpe contra a rocha a escarpada teu barquinho tão cansado da viagem trabalhosa. Eis para meu amor. (Bebe). Ó boticário veraz e honesto! tua droga é rápida. Deste modo, com um beijo, deixo a vida. (Morre)

(Romeu e Julieta, Ato V- cena III)

Já Julieta, embora profundamente envolvida por amor, é capaz de ver e criticar as decisões de Romeu e sua tendência a romantizar as coisas. Depois de Romeu matar Tebaldo e ser banido, Julieta não o segue cegamente,e embora a saída encontrada não tenha sido fácil, pois nem toda pessoa se propõe a ficar enterrada em um túmulo tenebroso, mesmo que por algumas hora, ela é corajosa e se mantém firme em seu propósito. Seguir o conselho de um Frei meio que maluco talvez não fosse a melhor saída, mas era quem ela tinha de melhor conselheiro se comparado com a Ama, sem falar que na época os religiosos eram normalmente a quem se devia ouvir, embora não fosse o caso nessa obra.

Quando por fim ela encontra o amado no túmulo, já sem vida, ela não se mata por fraqueza feminina e sim pela intensidade do amor e por estar madura o suficiente para entender o sentido de sua vida.  Julieta se mostra mais corajosa até no momento de sua morte ferindo o próprio coração com um punhal, enquanto que Romeu usa veneno para ceifar a própria vida.

 

Conclusão

Julieta teve atitude, procurou uma maneira e faz de sua lealdade e amor por Romeu uma orientação de prioridades, já que por conta dessas atitudes impulsivas não podia contar com ele naquele momento. Ela essencialmente se desfez de suas amarras sociais, sem pensar em si ou em seus pais muito menos em sua posição sócia a fim de encontrar-se com Romeu.

Colocar o nome de Romeu em primeiro lugar no título é até irônico, pois Julieta é de longe a mais forte dos dois. Ela foi pressionada por sua família a casar contra vontade, hostilizada pelo pai, traída pela ama, levada a loucura por um Frei inconsequente, e ainda assim seguiu em frente, enfrentou seus medos, desafiou os costumes sociais e enfrentou seus pais.

Referências Bibliográficas

FREY, Northrop. 1999. Sobre Shakespeare. (Northrop Frey on Shakespeare). Org.: Robert Sandler. Trad.: Simone Lopes de Mello. São Paulo: EdUSP. (Criação & Crítica;).

SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Trad. Beatriz Viégas Faria, Porto Alegre: L& PM Pocket,174.

SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta http://www.scribd.com/doc/3506461/-William-Shakespeare-Romeu-e-Julieta [acessado em 10 de setembro de 2010].