Juizados Especiais da Fazenda Pública: o risco de desvirtuamento da “válvula de escape” do Judiciário

Jayane Antônia Alves

 

Sumário: Introdução; 1 Origem e fundamento dos Juizados Especiais; 2 A ameaça da sucumbência; Conclusão; Referências.

 

 

RESUMO

 

Este artigo apresenta uma breve análise a respeito dos Juizados Especiais, com ênfase nos Juizados Especiais da Fazenda Pública, tendo como base seu histórico e considerações sobre como estes funcionam desde quando foram implantados. A princípio busca-se esclarecer as origens e objetivos iniciais da fundação desse “microssistema processual” e posteriormente é apresentado uma análise crítica revelando obstáculos encontrados no funcionamento desses juizados. Obstáculos que, se não forem sanados, podem promover o declínio do referido objeto de trabalho.

 

PALAVRAS-CHAVE

Juizados Especiais da Fazenda Pública. Justiça do Cidadão. Lei nº 12.153/2009.

 

Introdução

Prevendo a necessidade de oferecer uma justiça célere, econômica e eficaz para os menos favorecidos de recursos financeiros, a Constituição de 88 estabeleceu em seu art. 98 a criação dos Juizados Especiais, que corresponde a uma saída para a Justiça Comum, na qual as pessoas podem recorrer buscando uma prestação jurisdicional.

Sendo assim, os Juizados Especiais constituem uma alternativa para desafogar o Judiciário, uma vez que se preocupam em atender as “pequenas causas” que demandam uma resposta mais imediata e simples, na qual a lentidão dos processos comuns acaba prolongando essa resposta.

Atendendo a previsão constitucional, os Juizados Especiais seguem o rito sumaríssimo, característica essa que os qualifica no que toca aos princípios da celeridade e economia processual. Os primeiros a serem criados foram os Juizados Especiais Estaduais com a Lei nº 9.099 de 95, posteriormente surgiram os Juizados Especiais Federais com a Lei nº 10.259 de 2001 e por fim, foram instituídos os Juizados Especiais da Fazenda Pública com a Lei nº 12.159 de 2009.

A partir do momento em que passaram a existir, foi comprovada uma redução das ações que eram dirigidas a Justiça Comum resultando em uma melhora significativa no atendimento do Judiciário. Contudo, com o advento desse novo meio de acesso a justiça, as pessoas que antes não se manifestavam por causa da demora e da falta de recursos, passaram a ficar cientes de seus direitos e começaram a querer exercê-los mediante os Juizados Especiais.

Essa situação começou a gerar o efeito reverso, uma vez que tais juizados passaram a ficar abarrotados de processos impossibilitando a resposta rápida e efetiva que se propunham a dar. Esse fato foi contatado principalmente nos Juizados Especiais Estaduais e Federais, uma vez que estes já foram instituídos com mais antecedência.

Os Juizados Especiais são mais recentes, pois a lei que os regulamenta é de 2009, mas só entrou em vigor em 2010, e por conta disso, pouco ainda se sabe a respeito deles. Contudo, como são uma continuidade dos anteriores, inclusive os dispositivos das leis dos juizados anteriores também se aplicam a este no que couber, não é difícil considerar que o mesmo lhes aconteça.

Diante destas considerações, o presente artigo visa analisar as origens dos juizados em geral, posteriormente tratar dos Juizados Especiais da Fazenda Pública mais especificadamente e por fim, apresentar os obstáculos que podem culminar com o declínio desse importante sistema de auxílio ao Judiciário.

1 Origem e fundamento dos Juizados Especiais

O Estado Democrático de Direito para instituir-se como tal, precisa lançar meios para que a sociedade faça valer seus direitos contando com acesso à justiça. Desta forma, a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu conteúdo o fundamento de tal premissa, cuja interpretação implica em dizer que todos têm direito à tutela jurisdicional do Estado de forma fácil, rápida e eficaz.

Com essa finalidade, a Constituição apresenta em seu art. 98, inciso I, o estabelecimento dos Juizados Especiais, com a seguinte redação:

Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

Os Juizados Especiais surgiram com a proposta de aperfeiçoar a prestação jurisdicional do Estado, facilitando o acesso dos indivíduos à justiça tendo por base uma série de princípios processuais constitucionais. Entre eles destacam-se os princípios da celeridade e da economia processual, uma vez que as ações seguem o rito sumaríssimo e é vedada a cobrança de qualquer despesa.

Sendo assim, percebe-se que o “público-alvo” dos Juizados Especiais são aquelas pessoas desprovidas de recursos que se mantinham distantes do Poder Judiciário deixando de exercer seu direito à justiça considerando que sempre iriam gastar muito dinheiro com processos vagarosos que podiam terminar arquivados na gaveta de algum juiz.

Contudo, a história do judiciário mostra que tal pensamento não é exclusivo dessa parcela da população, pois qualquer pessoa que procurava (e ainda procura) a justiça estava sujeito a correr esse mesmo risco, e no final, acabavam desistindo de buscar seus direitos por conta do descrédito que sempre rondou o mundo jurídico.

Essa morosidade e dispêndio excessivo de dinheiro que é característico da ordem processual impulsionou a criação dos Juizados Especiais como forma de justamente pôr fim, ou pelo menos tentar amenizar, essas falhas a partir das quais se originaram.

Desta forma, em 1995 foi criada a Lei nº 9.099 que trata dos Juizados Especiais Estaduais Cíveis e Criminais, dispondo normas para julgamento e execução de causas cíveis de menor complexidade, mediante o procedimento sumaríssimo.

Dando continuidade à instrução constitucional prevista no art. 98, em 2001 é criada a Lei nº 10.259 que dispõe sobre a criação de Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal. E para completar o segmento, em 2009 é publicada a Lei nº 12.153 que regulamenta a criação dos Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, Distrito Federal e Municípios.

Essas três leis juntas formam o que hoje se conhece como microssistema dos Juizados Especiais, que segue uma dinâmica própria, divergente do Código de Processo Civil, recorrendo a este subsidiariamente quando não apresentar regra específica. Para confirmar a idéia ora defendida, o professor Elpídio DONIZETTI tece alguns comentários a respeito de tais diplomas legislativos:

A instituição desse microssistema processual representado pelos Juizados Especiais surgiu como resposta à insatisfação popular com a lentidão e o formalismo que dificultam a solução dos conflitos pelos métodos já existentes. Concebeu-se, assim, para as causas de menor complexidade, um processo orientado pelos critérios ou princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação. A finalidade de tudo isso, obviamente, consiste na ampliação do acesso à justiça. (DONIZETTI, pág. 443, 2012).

Desse microssistema processual, os Juizados Especiais Estaduais foram os primeiros a serem criados para atender a previsão constitucional e tinham como base a idéia de conciliação, justamente para que as decisões fossem proferidas partindo de um acordo amigável entre as partes evitando assim, o desgaste e a perda de tempo dos trâmites processuais regulares.

2 A ameaça da sucumbência

Com o sucesso da implantação dos Juizados Especiais Estaduais com a Lei nº 9.099/95 e dos Federais com a Lei nº 10.259/2001 garantindo maior rapidez e desafogando a Justiça Comum, em 2009 foi criada a Lei nº 12.153 que instituía os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios, que entrou em vigor dia 2 de junho de 2010.

Essa última lei completou o microssistema processual dos Juizados Especiais, no intuito de dar continuidade ao trabalho já iniciado pelos juizados anteriores. Vale ressaltar que os três diplomas processuais se completam preenchendo as lacunas um do outro naquilo que for cabível. Sendo assim, o que é aplicável em uma espécie de juizado, pode tranquilamente se estender a outra caso haja compatibilidade em matéria de direito.

Dessa conectividade entre tais institutos cabe presumir que os avanços obtidos nos primeiros, como celeridade e economia processual, também ocorrerão nos que vierem posteriormente. Foi justamente esse o fundamento que estimulou a criação dos Juizados Especiais da Fazenda Pública. Contudo, não só os bônus serão transferidos, mas também os ônus advindos dessa abertura da justiça.

Com o advento da Lei nº 9.099/95 dos juizados estaduais, esta gerou como resultado um grande número de demandas no Judiciário, fato este que culminou com a sua eficácia gradativamente reduzida. Quanto a isso DONIZETTI explica que:

A grande virtude da Lei nº 9.099/95, como diploma jurídico inovador, consistiu na aproximação do Poder Judiciário a uma camada da população que, tradicionalmente, a ele não tinha acesso. Isso resultou, por outro lado, numa sobrecarga enorme de trabalho, tendo em conta a judiciosidade reprimida dessa parcela da população que, a partir desse momento, encontrou um modo de fazer valer o aparato judiciário estatal em garantia dos seus direitos. (DONIZETTI, pág. 444, 2012).

O que se percebe é que o Estado, visando atender o mandamento constitucional implantou a política dos Juizados Especiais, mas não tratou de refletir nas conseqüências que essa “saída” poderia trazer, ou seja, não ofereceu o aparato necessário para atender de forma adequada os que recorrem a este meio para satisfazer suas pendências.

Pouco ainda se sabe sobre o andamento dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, visto que estes são recentes comparados aos instituídos anteriormente, entretanto, não é difícil presumir que o mesmo ocorra com eles, uma vez que o Estado não aparenta estar capacitado para lidar com os obstáculos apresentados por tais inovações.

Diante do “sucesso” inicialmente obtido com os Juizados implantados pela  Lei nº 9.099/95, passaram a tramitar no Congresso Nacional projetos de lei com a finalidade de expandir os sistemas dos Juizados visando atender os diversos ramos da atividade socioeconômica de forma a prestar auxílio a todas as classes sociais.

Este ponto merece destaque, pois por melhores que sejam as intenções de ampliar o manto dos Juizados para outras camadas da sociedade, a idéia inicial deste instituto voltava sua atenção aos menos favorecidos, pois eram justamente esses que tinham seus direitos de acesso cerceados por conta da onerosidade e descrédito no mundo jurídico. O que se pode extrair disso é que começa a surgir a semente do desmoronamento daquele esperançoso microssistema processual.

O começo do declínio, consistiu na implantação de leis que permitiram essa maior abertura aos que não se encontram em patamar de hipossuficiência, como por exemplo, a Lei nº 9.841/99 que regula o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte que admitiram as microempresas, pessoas jurídicas, como legítimas para proporem ações nos Juizados.

Não é preciso pensar muito para perceber que os motivos que levam essas empresas a buscar os juizados divergem notoriamente dos motivos que levam pessoas menos favorecidas a buscarem esse mesmo auxílio. Nesse ponto, o desembargador Rêmolo LETTEIELLO sustenta que:

Essas leis, a par de ferir de morte a própria razão da lei de pequenas causas, transformaram os juizados em ativos “balcões de cobrança”, requintados instrumentos de pressão de empresários, empresas e sociedades, algumas, como as microempresas, de considerável expressão econômico-financeira (...), outras, como as de pequeno porte, de altíssimo faturamento. (LETTERIELLO, 2012).

Ou seja, enquanto parte da população que realmente precisa de uma justiça rápida e segura que garanta seus direitos permanece na espera de um amparo adequado, pequenas empresas com razoável poder aquisitivo se utilizam do pouco conquistado para satisfazer suas pendências.

Estendendo essa ampliação aos Juizados Especiais da Fazenda Pública, cabe a reflexão de que, assim como está ocorrendo com os outros juizados, a explosão de ações vai resultar gradativamente no fim do propósito inicial desse microssistema processual, tornando-o tão vagaroso quanto a Justiça Comum. Quanto a isso se posiciona o desembargador Nildomar SOARES:

(...) Doravante, passo a acreditar na nociva inversão: os Juizados Especiais, não mais ‘especiais’, transformar-se-ão em grandes varas da Justiça Comum, com sua atual morosidade e pecados, enquanto que as varas comuns passarão a exercer o papel dos atuais Juizados Especiais, embora de forma onerosa e de rito mais complexo. (SOARES, 2012).

Dessa forma, compreende-se que não é viável promover a ampliação do acesso a outras camadas sociais e nem realizar projetos que visem alterar o então andamento dos juizados sem antes propiciar um melhor atendimento dos já existentes, sob pena de desvirtuar a finalidade inicial deles guiando-os rumo ao declínio.

No que tange os Juizados Especiais da Fazenda Pública, que são ainda recentes, compete ao Estado promover desde logo meios capazes de possibilitar o efetivo acesso de quem realmente precisa de forma a dirimir os problemas que já existem com os juizados anteriores.

Conclusão

Depois de feita uma análise mais crítica e pormenorizada acerca do andamento dos Juizados Especiais alguns anos após sua implantação, conclui-se que o projeto inicial destes trazia em seu bojo um sentimento de esperança e auxílio em relação à justiça comum, mas a falta de apoio estrutural por parte do Estado e as tentativas de desvirtuamento de tal projeto, em breve culminarão com o arrasamento daquele que significava uma saída para os constantes problemas que envolviam (e ainda envolvem) o universo jurídico brasileiro. Para corroborar tal pensamento, Rêmolo LETTERIELLO se manifesta tristemente ao afirmar:

Penso que a curto prazo, iremos presenciar, consternados, a falência de um sistema quase perfeito de prestação de justiça e a frustração de um grande ideal de se conceber uma nova e excepcional forma de resolução dos conflitos sociais, com o escancarar das portas do Judiciário para minimizar, entre os mais humildes e cidadãos, a demanda reprimida, a “litigiosidade contida”, na feliz expressão do notável Kazuo Watanabe. (LETTERIELLO, 2012).

REFERÊNCIAS

DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

FREITAS, Vladimir Passos de. Sistema dos juizados é bom, mas está em crise. Disponível em: <www.conjur.com.br/2010-jul-25/segunda-leitura>. Acesso em: 05 mai. 2012.

LETTERIELLO, Rêmolo. Juizados Especiais estão em flagrante declínio. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-jul-26/juizados-especiais-manifesto-flagrante-declinio?pagina=3>. Acesso em: 05 mai. 2012.

SOARES, Nildomar da Silveira. Juizados Especiais: a Justiça da Era Moderna agoniza. Jus Navigandi. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br>. Acesso em: 05 mai. 2012.