JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: a concessão de tutela antecipada em desfavor da Fazenda Pública na proteção do direito à saúde. [1]

 

        Mylla Soares Almeida **

Ruana Talita Penha de Sá  

Thássia Mendes da Silva

 

 

Sumário: Introdução; 1 Judicialização do direito à saúde no Brasil; 2 Tutela antecipada e sua possibilidade de concessão contra a Fazenda Pública;3 A importância do instituto da tutela antecipada para uma efetiva proteção do direito à saúde;  Considerações Finais; Referências.

 

 

RESUMO

 

O presente trabalho aborda um tema que vem ganhando grande relevância no cenário jurídico brasileiro, a judicialização da saúde. No Brasil, o direito fundamental a saúde não atingiu sua efetividade plena, visto que o Estado, por questões orçamentárias tem dificuldade de prover aos cidadãos os serviços necessários para a satisfação desse direito. Diante dessa falha resta àqueles que necessitam do provimento por parte do Poder Público buscar resposta no judiciário, tornando cada vez mais frequente as demandas pleiteando a obrigações de prestação médica pelos entes públicos. Nesse sentido, cumpre destacar que essas demandas necessitam de respostas rápidas e, portanto, faz-se necessário a utilização da tutela antecipada. Daí buscou-se demonstrar a possibilidade do magistrado, nos casos envolvendo a saúde, conceder a antecipação dos efeitos da tutela em desfavor da Fazenda Publica e a sua importância para a efetivação desse direito, uma vez que este é pressuposto do direito à vida, e a demora no seu atendimento pode causar dano irreversível ou de difícil reparação.

 

 

PALAVRAS-CHAVE

Judicialização. Direito à saúde. Tutela Antecipada. Fazenda Pública.

 

 

Introdução

No Brasil uma grande parte da população não possui condição de arcar com os custos com a saúde de forma que é muito alto o número de pessoas que dependem da prestação oferecida pelo Poder Público. A Constituição Federal de 1988 garantiu o direito à saúde com status de direito fundamental impondo, de forma expressa, ao Estado o dever de garantir a todos os cidadãos. Nesse sentido cumpre ressaltar que os direitos fundamentais gozam de aplicabilidade direta e imediata.

Ocorre, porém, que a implementação desse direito esbarra principalmente na questão orçamentária, uma vez que serviços voltados a garantir o direito a saúde demandam custo elevado e o número de pessoas que buscam por esses serviços é maior do que o Estado pode suportar, motivo pelo qual é expressiva a quantidade de pessoas que diariamente tem seu direito violado.

A falta e/ou deficiência dos serviços de saúde prestados pelo Estado tem levado, cada vez mais, o cidadão a buscar uma solução pelas vias judiciais, desencadeando o que se chamou de judicializaçao da saúde, que consiste exatamente nessa provocação e a atuação do Poder Judiciário em prol da efetivação do direito a saúde.

Destaca-se, nesse ponto, que o amplo lapso temporal para resolver o litígio é uma ameaça quando se trata de saúde, o que faz com que esse tipo de demanda venha, quase sempre, acompanhado de um pedido de antecipação de tutela.

Nesse contexto, o presente estudo pretende analisar a possibilidade de concessão de tutela antecipada em face da Fazenda Pública e demonstrar a importância desse instituto para a tutela do direito fundamental a saúde, uma vez que essa antecipação é de suma importância nos casos em que há perigo de dano irreparável ou de difícil reparação.

Partindo de uma breve análise do direito à saúde, buscou-se demonstrar o processo de judicialização da saúde em nosso país. Em um segundo momento, após expor o que vem a ser a antecipação dos efeitos da tutela, com base nas discussões doutrinárias demonstrou-se a possibilidade de concessão desse instituto em desfavor da Fazenda Pública. Por fim, diante dessa possibilidade, foram feitas algumas considerações a cerca da importância desse instituto na busca de garantia a efetivação desse direito.

Judicialização do direito a saúde no Brasil

O constituinte de 88 revelou uma grande preocupação com a tutela do direito à saúde. Este é reconhecido como direito social, estando expressamente previsto no art. 6º da CF/88, além de estar disposto solenemente no art. 196 que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

O constituinte preocupou-se, ainda, com a instituição do Sistema Único de Saúde, previsto no artigo 198 da Constituição: “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, e constituem um sistema único. (...). O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”.   

Nesse diapasão, é cabível valer-se de uma analogia em relação ao nosso Código Civil, o qual em seu art. 265 dispõe que “Cada um dos credores solidários tem direito a exigir do devedor o cumprimento da prestação por inteiro”. Isto significa que o cidadão necessitado tem a faculdade de exigir de qualquer ente federativo, seja União, Estado, DF ou Município, a prestação não somente assistência médico e farmecêutica, como também tratamento, incluindo cirurgias e exames que se fazem necessários à efetivação do direito fundamental à saúde. Nesse mesmo sentido, a ilustre Juíza do TJ/RJ, Maria Cristina Slaibi (2008, p.6) afirma:

 

Tal destaque é de grande relevância, pois o cidadão hipossuficiente poderá escolher qual dos entes federativos irá acionar para ver efetivado o seu direito fundamental à saúde e de nada adiantará, como sói acontecer, as argüições, pelo Estado e pelo Município, de ilegitimidade passiva ad causam ou mesmo os pedidos de chamamento ao processo dos demais entes federados.

 

Portanto, vê-se que é exigida uma aplicabilidade imediata e direta da eficácia do direito aqui exposto, não podendo em hipótese alguma este restar limitado a ser mera promessa do constituinte originário. Nessa esteira, é válido ressaltar que a Carta Magna reconhece como um de seus fundamentos a Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III) e tutela o direito à vida (art. 5º, caput), as quais estão relacionadas diretamente com uma efetiva tutela do direito à saúde, visto que dele dependem em vários aspectos.

A regulamentação de tal matéria foi promovida pela Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90), que idealizou o Sistema Único de Saúde – SUS. Discorrendo sobre a Lei Orgânica da Saúde, Luis Roberto Barroso infere que,

 

A Lei no 8.080/90, além de estruturar o SUS e de fixar suas atribuições, estabelece os princípios pelos quais sua atuação deve se orientar, dentre os quais vale destacar o da universalidade – por forca do qual se garante a todas as pessoas o acesso as ações e serviços de saúde disponíveis – e o da subsidiariedade e da municipalizaçaão, que procura atribuir prioritariamente a responsabilidade aos Municípios na execução das políticas de saúde em geral, e de distribuição de medicamentos em particular (art. 7o, I e IX). A Lei 8.080/90 procurou ainda definir o que cabe a cada um dos entes federativos na matéria. À direção nacional do SUS, atribuiu a competência de “prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional” (art. 16, XIII), devendo “promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal” (art. 16, XV). A direção estadual do SUS, a Lei no 8.080/90, em seu art. 17, atribuiu as competências de promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde, de lhes prestar apoio técnico e financeiro, e de executar supletivamente ações e serviços de saúde. Por fim, a direção municipal do SUS, incumbiu de planejar, organizar, controlar, gerir e executar os serviços públicos de saúde (art. 18, I e III).

 

 

Contudo, o que transparece na sociedade atual é um sistema público de saúde precário quanto as suas incumbências, seja por negligência ou mesmo por questões orçamentárias. A insuficiência da atuação do sistema estatal, motiva a população a valer-se do Poder Judiciário para assim ter êxito em seus provimentos quanto à tutela da saúde. Daí surge então o fenômeno chamado judicialização da saúde, que aflora em decorrência da “omissão e/ou ineficácia do Estado quanto à assistência-farmacêutica”, entendida aqui como um direito fundamental. (GANDINI; BARIONE; SOUZA, 2011, p.1).

Nessa órbita surgem os debates políticos quanto à saúde no Brasil, sendo um tema amplamente discutido não somente na seara técnica e política como também jurídica e de ordem constitucional. Desse modo, o resultado do processo de judicialização da saúde brasileira se dá através de um elo no qual, de um lado, há imposição de limites e princípios aos técnicos da saúde e, de outro, há inclusão na seara jurídica de questionamentos acerca das políticas públicas do Estado contemporâneo (FERRAZ; VIEIRA, p. 03). Contudo, o descompasso entre essa dualidade é de tamanha dimensão que tais problemas vêm aflorando e desencadeando a população em provocar ao Poder Judiciário à tarefa de coagir as Administrações a cumprir o dever que a Constituição impõe, qual seja, o direito à saúde, pois está assegurado na própria Carta em seu art. 5º, XXXV que é um direito se valer da maquina judiciária quando restar ameaçado ou lesionado o seu direito.

Nesse sentido o regulamento imposto ao Poder Público é não esquivar-se frente as responsabilidades que lhe são incumbidas e encará-las com poder de decisão e resolução dos problemas. Dessa mesma forma, entende o Des, Humberto Mannes que a tarefa da máquina estatal frente à efetivação do direito à saúde não se resume a uma norma meramente programática. Vejamos.

 

FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. DOENÇA GRAVE. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE − S.U.S. PODER PÚBLICO MUNICIPAL. OBRIGATORIEDADE. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. CHAMAMENTO AO PROCESSO. IMPOSSIBILIDADE. Administrativo. Saúde Pública. Aposentado pobre e portador do Mal de Alzheimer. Embora conjunta a ação dos entes integrantes do Sistema Única de Saúde, pode o necessitado acionar qualquer deles, ante o princípio concursus partes fiunt, já que a solidariedade, que o excepciona, não se presume (Código Civil, art. 896). Rejeição, por isso, da preliminar de chamamento ao processo da União e do Estado. "O caráter pragmático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política − que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro − não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado" (Supremo Tribunal Federal, AGRRE 27128-RS, 2ª Turma, Relator Ministro Celso de Mello, DJU, de 24.11.2000). Confirmação da sentença que condenou a Fundação Municipal de Saúde de Petrópolis a fornecer os medicamentos necessários conforme ordem médica (Apel. Cív. nº 2002.001.08324, TJRJ, 5ª Câm. Cív., Rel. Des. Humberto de Mendonça Mannes, j. 13/08/2002, votação unânime).( Grifo nosso)

 

Portanto, como dito, o atual contexto de tutela do direito à saúde no Brasil envolve temas como dignidade da pessoa humana e direito à vida. Além disso, a lesão à tais direitos na maioria das vezes tem como cenário a omissão dos Poderes Públicos, ou mesmo ação destes que venha a contrariar as normas estabelecidas na Constituição. Sendo assim, é sabido que a atividade do Poder Judiciário deve existir naquelas hipóteses em que não haja lei ou ação administrativa implementando a Constituição ou, ainda, nas hipóteses em que haja leis e atos administrativos, mas estes não são cumpridos. (BARROSO,  p. 21) É, pois, legítima a atuação do Judiciário na tutela do direito ora estudado, visto que, ante a omissão do Estado, este possui a prerrogativa de aplicar de maneira direta e imediata o preceito que positiva o direito a saúde.

 

2 Tutela antecipada e sua possibilidade de concessão contra a Fazenda Pública

 

Como exposto, não raro o Poder Público deixa de prover aos cidadãos o direito a saúde garantido constitucionalmente, motivo pelo qual é crescente o número de demandas judiciais. Ocorre que em grande parte dos casos envolvendo saúde está presente o perigo da demora, o que requer, diante da morosidade do judiciário, a necessidade de uma solução rápida para o litígio. Por se tratar de um direito que não pode esperar, muitas são as decisões no sentido de adotar a antecipação dos efeitos da tutela.

Essa antecipação da tutela nada mais é que um adiantamento. Assim, nos casos em que estejam presentes os requisitos necessários, os efeitos de uma futura sentença favorável são concedidos antes do fim do processo. Nesse sentido o doutrinador Didier (2011, p. 490) leciona que:

 

não se antecipa a própria tutela (declaratória, constitutiva, ou condenatória), mas, sim, os efeitos dela proveniente. Não se declara, constitui ou condena antecipadamente – só ao fim do processo, mediante cognição exauriente. Através da decisão antecipatória, apenas se permite que o requerente usufrua dos efeitos práticos (sociais, executivos) do direito que quer ver tutelado, imediatamente, antes mesmo do seu conhecimento judicial.

 

 

A antecipação de tutela está prevista no art. 273 do CPC, sendo cabível tanto no procedimento ordinário como no sumário. Segundo o disposto no diploma legal, são requisitos para a concessão de tutela antecipada a existência de prova inequívoca que convença o magistrado da verossimilhança das alegações, devendo, ainda, haver fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou ficar caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu. Cumpre ressaltar que o artigo é claro e traz de forma expressa que deve haver o requerimento da parte, de forma que não pode o juiz conceder a antecipação da tutela ex officio. Cabe, ainda, destacar que para a concessão de tutela antecipada inexiste qualquer discricionariedade por parte do juiz. Assim, conforme leciona Câmara (2011, p. 455) trata-se de um “poder-dever” do juiz do qual não poderá se afastar.

Durante muito tempo a doutrina travou intensa discussão sobre o cabimento de concessão de antecipação dos efeitos da tutela em desfavor da Fazenda Pública. Parte da doutrina que se mostrava contrária a possibilidade de antecipação de tutela nesses casos sustenta-se basicamente em dois fundamentos: 1) o reexame necessário a que ficam sujeitas as sentenças contrárias a fazenda Pública (art. 475, CPC); 2) o regime especial da execução contra a fazenda publica. (CÂMARA, 2011, p.470).

Nesse sentido, Didier (2011, p. 545), explica que de acordo com o entendimento dessa corrente, o primeiro fundamento constitui um obstáculo a admissibilidade da tutela antecipada, pois se a sentença final só pode produzir resultados depois de confirmada pelo tribunal, uma decisão antecipatória, meramente interlocutória, não poderia, jamais, produzir efeito imediato. Da mesma forma, o regime de pagamento pecuniário pela via do precatório seria um entrave, pois que impediria a satisfação imediata das obrigações pecuniárias.

Contudo, conforme aduz, Câmara (2011, p.544) estes argumentos não se sustentam. Primeiro pelo fato de nem todas as sentenças contrárias a Fazenda Pública estarem sujeitas ao duplo grau de jurisdição. No que tange o segundo fundamento, este não constitui óbice absoluto, pois conforme adverte o autor, o precatório só é utilizado quando se trata de obrigações pecuniárias em que a Fazenda Pública é devedora, afastando esse fundamento quando o objeto da causa fosse obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa.

Corroborando com esse entendimento, Didier (2011, p. 559) leciona: “Não há, em princípio, maiores restrições à concessão de tutela antecipada para obrigação de fazer, não fazer e entregar coisa em face do Poder Público, até mesmo porque não há a exigência constitucional do precatório.”

Convém observar que esta discussão já não possui razão de ser em decorrência da Lei Federal n. 9.494/1997 que passou a disciplinar a matéria da antecipação de tutela em face da Fazenda Pública proibindo-a em certos casos. Nesse sentido, Didier (2011, p.546) corrobora com esse entendimento, pois segundo o doutrinador, se existe uma lei regulando-a é porque a antecipação é possível, só não o será nas hipóteses elencadas pela lei. A questão passa a ser em quais circunstâncias é cabível.

Registra-se, ainda, que a lei 9.494/1997, dividiu o entendimento da doutrina no que concerne a sua constitucionalidade. Se por um lado parte da doutrina afirma ser legitimo criar restrições à concessão de tutela antecipada, por outro lado, a doutrina majoritária sustenta que as restrições impostas pela lei são inconstitucionais a medida que afronta o direito fundamental à tutela jurisdicional em situação de ameaça a direitos (art. 5°, XXXV, CF). O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, decidiu que tais restrições não são inconstitucionais.

Sobre a possibilidade de concessão da antecipação dos efeitos da tutela em desfavor da Fazenda Pública Marinoni apud Didier (2011, p.546) leciona: “Dizer que não há direito à tutela antecipatória contra a Fazenda Pública em caso de ‘fundado receio de dano’ é o mesmo que afirmar que o direito do cidadão pode ser lesado quando a Fazenda Pública é ré”

Do exposto, entendemos, portanto, ser perfeitamente cabível a antecipação dos efeitos da tutela contra a Fazenda Pública nas demandas que envolvem o direito a saúde, sendo inclusive, segundo Câmara (2011, p.472) uma prática comum. Sendo exemplo dessa prática os casos em que se determina à Fazenda Pública a imediata entrega de remédios a doentes.

 

3 A importância do instituto da tutela antecipada para uma efetiva proteção do direito à saúde

Conforme já dito, o direito à saúde possui status constitucional, eis que exposto no rol de direitos sociais previstos no art. 6º da CF/88. Isto posto, cabe-nos perguntar qual a importância da utilização do instrumento da tutela antecipada para proteger um direito que é, inclusive, direito fundamental.

Luís Roberto Barroso (apud GANDINI et al, p. 3) pontua que qualificar um direito como fundamental não significa apenas atribuir-lhe uma importância meramente retórica, sem qualquer consequência jurídica. Tal qualificação acarreta um aumento formal e material da força normativa de um direito, com inúmeras consequências sobre ele, sobretudo no que diz respeito à sua efetividade, ou seja, na materialização da norma no mundo dos fatos, gerando, assim, a maior aproximação possível entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.

Contudo, de nada adianta reconhecer ao Estado o dever de tutelar um direito à saúde se isso não implica em sua efetiva materialização. Neste ponto reside a principal importância do instituto da tutela antecipada na garantia do direito à saúde. Explica-se.

Alexandre Freitas Câmara analisa a tutela antecipatória como garantia ao direito da inafastabilidade da jurisdição, exposto no art. 5º, inciso XXXV da CF/88, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Por inafastabilidade do controle jurisdicional, segundo o autor, deve-se entender não só o direito de acesso ao Judiciário, mas o direito de que o Judiciário preste a tutela jurisdicional adequada, o que remete ao art. 75 do Código Civil: “A todo o direito corresponde uma ação, que o assegura”. Dito de outra forma, para todo direito que se alegue, há uma espécie de tutela jurisdicional adequada à sua garantia (2001, p. 100).

Prosseguindo seu raciocínio, expõe o referido autor que a tutela jurisdicional pode ser prestada através da tutela cognitiva (subdividida em declaratória, constitutiva e condenatória), executiva ou cautelar. A tutela antecipada é fenômeno que se liga à tutela cognitiva, a qual é prestada – mais comumente – através do procedimento ordinário. Como é sabido, o procedimento ordinário possui fases bem delimitadas: postulação, saneamento, instrução probatória e decisão. Desta forma, a tutela jurisdicional comum só é prestada ao final deste procedimento, o qual é, por força da estrutura a ele conferida, longo e custoso (2001, p. 101). Contudo,

 

(...) há situações em que o titular de uma posição jurídica de vantagem se apresenta em juízo em busca de tutela jurisdicional, mas não pode esperar pelas formas tradicionais de prestação da tutela jurisdicional. É para estas situações que se faz necessário o que a doutrina chamada de tutela jurisdicional diferenciada. (2001, p. 102)

 

É o caso da tutela antecipatória, a qual possui caráter diferenciado, pois permite que o direito material seja satisfeito rapidamente, garantindo a efetividade do processo. Conclui-se, portanto, que a existência do instituto da tutela antecipada decorre da existência do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. Nas palavras de Alexandre Câmara, tal instituto é um “imperativo constitucional ligado indissoluvelmente às garantias fundamentais de todas as pessoas” (2001, p. 103).

Vê-se, pois, que é inútil o direito de poder se valer do Judiciário para garantir o direito à saúde se o mesmo não for capaz de fornecer uma tutela eficaz no afastamento de eventual lesão ou ameaça. Isto porque, como bem explicita Fredie Didier Jr. (2011, p. 463), as atividades processuais necessárias para a obtenção de uma tutela satisfativa são por demais demoradas e geram delongas processuais que arriscam a própria realização do direito firmado.

Portanto, diante da atual realidade do Judiciário, transcorre considerável lapso de tempo desde o momento em que a parte autora demanda até aquele em que é dado (ou não) provimento ao seu pedido. Em casos-limite, a referida demora possui consequências. No que diz respeito ao direito à saúde, principalmente, eis que o coloca sob risco de dano irreparável ou de difícil reparação. Desnecessário frisar que o direito à saúde é pressuposto do direito à vida, o que dá azo a consequências de proporções relevantes. Neste sentido, Didier ressalta que

 

Em tais casos, para que não fique comprometida a efetividade da tutela definitiva satisfativa (padrão), percebeu-se a necessidade de criação de mecanismos de preservação dos direitos contra os males do tempo. ‘A grande luta do processualista moderno é contra o tempo’, afirma conhecida doutrina. (DIDIER, 2011, p. 467).

 

 

A bem da verdade, além da demora natural advinda do procedimento escolhido pelo legislador infraconstitucional, o processo civil contemporâneo enfrenta hoje o que pode ser chamado de crise. Nas palavras de Miryam Silva, “a tutela jurisdicional não tem sido prestada tempestivamente e, tampouco, de forma efetiva. As reformas introduzidas na legislação processual buscam, acima de tudo, priorizar e efetividade e a celeridade nas decisões judiciais, atribuindo inclusive maiores poderes aos juízes, como no caso da tutela antecipada (arts. 273 e 461 do CPC)”. (p. 8)

Desta feita, por ser a tutela antecipada uma técnica processual que permite o gozo imediato do direito à saúde, esta se mostra necessária para sua efetiva proteção, eis que permite a ponderação entre dois aspectos imprescindíveis em um processo justo: a segurança jurídica – assegurada pela realização do devido processo legal - e a efetividade.  A respeito da importância do fator tempo, Marinoni pontifica que este é “um mal necessário para a boa tutela dos direitos. É imprescindível um lapso temporal considerável (e razoável) para que se realize o devido processo legal e todos os seus consectários em sua plenitude, produzindo-se resultados justos e predispostos à imutabilidade” (apud DIDIER 2011, p. 468).

Esta seria, portanto, a principal importância, além de função constitucional da tutela antecipada: a harmonização de tais direitos fundamentais (segurança e efetividade) em tensão (MARINONI apud DIDIER, 2011, p. 469).

 

Considerações finais

Não é com muito esforço que se percebe que o Estado tem fornecido uma proteção deficiente quanto à efetivação do direito à saúde, posto que permanece, na maioria das vezes, omisso quanto sua obrigação. Ante tal fato, constata-se que é fundamental que o Poder Judiciário também possua o dever de concretizar tal direito, sendo esta, nos dias atuais, a maneira mais eficaz de proteger o direito à saúde do cidadão. E assim deve continuar pelo menos até que o Poder Público abandone o estado de inércia com o qual vem atuando quanto à efetivação dos direitos sociais, em especial no que diz respeito ao direito à saúde.

Contudo, reconhecidos dois importantes aspectos existentes na realidade atual e no contexto ora estudado, quais sejam, a demora na prestação jurisdicional e a necessidade de resposta urgente para os casos-limite em que o direito a saúde precisa de proteção, nota-se que o Judiciário (ou, mais especificamente, o sistema processual vigente) necessitou de medidas que fossem capazes de conciliar tais aspectos.

Nesse ínterim, conclui-se que a tutela antecipada, regida pelo art. 273 do CPC, revela-se como um instrumento processual perfeitamente adequado para resguardar o direito à saúde de modo eficaz em relação àqueles que contam com tempo escasso e precioso.

 Corrobora-se, ainda, com o posicionamento adotado por parte da doutrina processual que considera superada a discussão que gira em torno da possibilidade ou não da concessão de tutela antecipada em desfavor do Poder Público. Os motivos para a adoção de tal posicionamento tornam-se mais claros quando se analisa a particularidade das prestações relacionadas ao direito à saúde, as quais basicamente se resumem em obrigações de dar e de fazer (fornecimento de medicamentos e realização de tratamentos médicos), casos em que inexiste a exigência constitucional do precatório. Necessário destacar, ainda, a existência da Lei Federal n. 9.494/1997, a qual sepulta o vestígio de existência de demais questionamentos quanto ao assunto.

 Melhor dizendo, a possibilidade de antecipação de tutela contra o Poder Público nos casos que envolvem o direito à saúde não só pode, como deve ser utilizada a fim de resolver os problemas práticos e de efetividade de um processo complexo e, em muitos casos, ineficaz.

 

 

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva:

direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em: http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf. Acesso em: 17/10/11.

 

CÂMARA, Alexandre Freitas. Escritos de Direito Processual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.

 

­_________. Lições de Direito Processual Civil. vol.1. 21 .ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011

 

DIDIER JR, Fredie at al. Curso de Direito Processual Civil. vol 2. 6.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011

 

GANDINI, João Agnaldo Donizeti; BARIONE, Samantha Ferreira; SOUZA, André Evangelista. A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: a obtenção de atendimento médico, medicamentos e insumos terapêuticos por via judicial – critérios e experiências. Disponível em: Acesso em:

 

SILVA, Miryam Belle Moraes da. O direito à saúde em juízo. Disponível em

http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1500. Acesso em 18/10/11.

 

 

 



[1] Paper apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina Processo de Conhecimento II do curso de Direito da UNDB ministrada pelo professor Hugo Assis Passos.

** Graduandas em direito na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.