Jantar à moda da Sereia

Uma casa de taipa toda iluminada pela luz natural vinda das grandes janelas de madeira, ficava de fronte ao mar. Uma rua em frente tinha um estacionamento que estava cheio de carros de todos os estilos e marcas. Na calçada toda construída com pequenos bloquinhos de cimento passavam as pessoas desfilando sua cultura. E, em uma cadeira que pesava muito e fazia jogo com uma mesa tão grande que parecia não ter fim, estava um homem, cheio de esperança.

O que aquele homem esperava a final? Um jantar? Um almoço ou um lanche? A dúvida realmente pairou! Mas, o que perece ser mais lógico? Tendo em vista a quantidade de gente que estava no local, nada tinha lógica, senão o desejo do homem em comer um prato cheinho de camarão.

Não queria ficar comendo daquelas porções que serviam nas barracas da praia. Tinha uma fome não tanto do camarão em si, mas da quantidade. Ele estava preparado para comer muito. Morder aqueles pedaços bem grandes que explodem na boca.

Neste sentido da fome, a quantidade poderia ser relativa, como foi! O homem tinha muita fome! Depois de pedir seu prato preferido eis que o tempo de chegada superou todas suas expectativas. Quase nem pediu direito e já lhe chegara aquele prato de desejo.

Colocado o pedido no meio daquela mesa imensa, ele parecia um pontinho de um lápis no meio de uma folha. Tinha-se perdido na vastidão da mesa!

Assim que o pedido chegou o homem foi logo observando os olhares das pessoas de outras mesas se encontrarem ao olhar para o seu prato. Naquele momento pode olhar pela janela e ver que o estacionamento não cabia mais nenhum carro. Não cabia? Ora! Lá estava vindo um carro sobre a calçada, disputando espaço entre as pessoas, as quais pareciam andar sem mesmo notar aquele carro que vinha bem lento. De um lado e do outro do carro as pessoas andavam: umas de biquíni e sunga, outras com caixa de isopor sobre a cabeça e mais um tanto andando sem saber para onde ir, apenas estavam deixando a fluidez da calçada os levar.

O carro, todavia, não parava de vir na direção do restaurante. De igual modo, as pessoas não tiravam os olhos do prato daquele homem como que dizendo: “não vai comer?”. Logo se ouviu a batida de porta do carro. Desceu do carro uma mulher bem pequenininha que insistiu parar bem na entrada do restaurante. Escolheu sentar em uma daquelas cadeiras pesadíssimas e, depois de sentada, olhou pela grande janela e percebendo que o carro ficara com os vidros abertos ela aciona o alarme travando as portas e fechando todo o vidro. Contudo, o barulho da trave foi tão forte que pereceu ensurdecer a todos. Cortou todos os outros ruídos. No mesmo instante, o prato daquele homem deixou de ser o centro das atenções de todos aqueles olhares famintos, eles voltaram para aquele escandaloso alarme.

As pessoas falavam umas com as outras como que cochichando e acenavam para o carro e também para a pessoa que tinha saído dele.

O carro era muito grande. Tinha um formato de barca. As rodas pareciam escamas de peixe. Toda a aparência distorcia qualquer tentativa de comparação com outros tantos carros que se encontravam no estacionamento. Vendo que todas as pessoas estavam admiradas com o carro exótico, a mulher ligou e desligou o alarme causando outra vez o ruído que também não se parecia com nada. Era um som único.

Enquanto as pessoas tentavam decifrar o som inigualável do alarme, a mulher foi distraída pelo garçom que chegara para anotar o pedido.

Com o cardápio na mão, a mulherzinha baixou a cabeça e começou acenar ao garçom seu pedido. Ele escreveu com rapidez tudo que era ditado: “camarão, lagosta, marisco, mexilhão, lula...” o garçom parou um pouco de escrever e perguntou:

- “quer tudo isso mesmo, minha senhora?”.

- “o que te parece!? – respondeu a mulher prosseguindo seu pedido...

“além disso você me acrescenta: - se não for pedir muito- sardinha”.

_ “sim, minha senhora!” – respondeu o garçom meio sem jeito, envergonhado porque as pessoas das outras mesas estavam comentando também a seu respeito.

O garçom já estava entrando na porta da cozinha quando ouviu algumas pessoas gritando: “seu garçom, garçom!” Ele olha para trás e percebe que era a mesma mulher que precisava anda mais do seu serviço. Sem demora o garçom chegou à mesa e anotou outro item. Desta vez, por sua sorte a mulher não lhe pedira nenhum fruto do mar, o pedido foi apenas uma garrafinha d’água. Mas foi informado que seria em caráter de urgência, assim ele foi quase que correndo para a cozinha providenciar a água.

Com a mesma rapidez que o garçom saiu ele chegou. Entregou a garrafa para a mulher que ao abrir a garrafa seu corpo absorveu, em uma explosão, toda a água. Nesse ínterim, o garçom lhe fitou os olhos tentando identificar aquela misteriosa mulher. Sua pergunta para si mesmo era: “o que virá a ser esta mulher?”.

O povo do restaurante fingiu não ter visto nada? Oxalá! Nada disso. Todos em um uníssono balbucio comentavam aquele extraordinário acontecimento. Assim, uma criança ao perceber o ocorrido, levanta de sua cadeira e prontamente vai ao encontra da mulher oferecendo-lhe outra garrafinha d’água. No entanto, a mulher recusa a oferta da inocente criatura.

Na outra mesa, o homem, vendo tudo aquilo acontecendo, não sabia se comia logo seu camarão ou se esperava mais. Entretanto, ele perguntou a si mesmo: “o que eu estou esperando?” Por sorte a resposta não vinha. Ele continuava ali olhando o horizonte do mar. Sabia que todos do restaurante esperavam ansiosos que ele degustasse daquele camarão enquanto ansiava para ver qual seria o pedido da mulher, pois a mesma causara vexame ao garçom com seu pedido.

Naquela dúvida se comia o camarão ou não, o homem desvia seu olhar do horizonte e enxerga um casal trabalhando ao lado do restaurante. Eles estavam construindo uma pequena casinha.

A mulher bem alta, seus olhos eram da cor do infinito do céu, seus dentes brilhavam como o sol, seu cabelo ondulava como as ondas do mar, seu olhar era fixo como alguém em adoração; suas mãos ao pegar nas ferramentas do seu companheiro de trabalho eram suaves como ouvir o marulho do mar.

O pedreiro tinha ótimas qualidades. Ficava o tempo todo obsevando o povo que entrava e saia do restaurante e, às vezes, acenava com a mão para quem passava na calçada.

Enquanto o casal trabalhava bem concentrados em suas ocupações o pedreiro foi distraído com um som vindo de dentro do restaurante. Com isso, ele deixa cair um tijolo sobre a superfície da colher que estava voltada para cima, impulsionado-a, com muitíssima velocidade, para dentro do restaurante caindo no meio do prato do homem que obsevava toda a movimentação do local sem saber se comia ou não seu camarão. A resposta lhe chegou sem fazer tanto esforço.

Com a colher de pedreiro dentro do seu prato e camarão espalhado por toda a mesa, o homem não poderia imaginar no que seria pior: ser observado por ter recebido o pedido mais rápido que todos do restaurante ou ser ridicularizado por não conseguir decidir a tempo hábil se comeria ou não seu camarão.

Não quis se concentrar na possibilidade de “ser observado” ou “ser ridicularizado”, achou por bem pegar uma caderneta que estava dentro de sua sacola. Na capa do livreto estava escrito: “Ad Acta” [Aos Arquivos]. Ao abrir em uma determinada página estava escrito:

“Um fato que me desassossega nos turistas é que “Deus” quase não chama a atenção deles. Aliás, esta ausência de Deus é pressentida muito mais quando se busca aproximar, não dos turistas, mas sim dos ambulantes. Oxalá fossem mesmos ambulantes! Não passam de um bando de comerciantes esfomeados por dinheiro. Dá-me um asco pensar neste povo doentio! São pilantras, próprios! Sacanas até nos ínfimos dos seus prazeres. “Prazeres”! Sim. Estes “comerciantes” “de meio dia” não eliminam de suas vidas os prazeres do capital. Eles percorrem nas grandes orlas do mar como mergulham nos amplos sabores da vida carnal. De suas bocas sarcásticas destilam o veneno febril do anúncio returbante de um nada encarnado em um produto hostil. Ufa! É um tédio poder conviver com estes “comerciantes dos gritos”!

Lendo este inciso, o homem tentou reproduzir toda a cena que vivera naquele exato momento. Não conseguia fixar em um único fato para iniciar seu relatório. Seus pensamentos vinham e iam como as ondas do mar. Deste modo, contentou em deixar seu livreto sobre a mesa no meio de tanta sujeira que o camarão derramado produzira. Cruzou os braços e ficou observando o garçom que chegava com o pedido da mulher.

O garçom tirou de uma bandeja quadrada um livro e entregou-o a mulher, a qual assim que recebeu o livro “Genealogia da Moral” de Nietzsche abriu-o iniciando sua leitura.

Lia muito rápido. Parava apenas para fazer algumas marcações. Grifava as palavras diferentes e circulava aquelas que tinham dois ou mais significados. Entretanto, ao ler uma citação que discorria a respeito do amor não se conteve noutra preferência, senão enfatizar todo o parágrafo:

“Não, o contrário é a verdade! O amor brotou dele como sua coroa, triunfante, estendendo-se sempre mais na pura claridade e plenitude solar, uma coroa que no reino da luz e das alturas buscava as mesmas metas daquele ódio, vitória, espólio, sedução, com o mesmo impulso com que as raízes daquele ódio mergulhavam, sempre mais profundas e ávidas, em tudo que possuía profundidade e era mau”.

Decodificando esta elocução, ela contornou várias vezes estas expressões: “ódio, vitória, espólio, sedução”. Pensava: “o que significa estes termos?”.

Continuou sua leitura até deter na passagem que mencionava o homem: “- junto com o temor do homem, perdemos também o amor a ele, a reverência por ele, a esperança em torno dele...”

Ainda lendo e, sem perceber que o garçom já tinha ido e vindo com seus frutos do mar, a mulher foi despertada de sua leitura e recebeu seu pedido, o qual foi servido com a ajuda de três garçons.

Com toda voracidade a mulher comia todas aquelas iguarias marítimas. Parecia estar com pressa. Olhava para os lados como quem estivesse com medo. Em menos de um minuto comeu tudo que lhe servira. Todas as pessoas do restaurante estavam extasiadas por ver uma pessoa tão pequenina comer aquele tanto e em tão pouco tempo.

A mulher olhou pela janela e viu que estava começando a chover. Estava relampejando e trovejando sem parar. Logo a chuva foi caindo com os pingos bem fortes iniciando uma grande tempestade. A água do mar subiu e tinha alagado todo o pátio externo do restaurante. Nisso, a mulher já se impacientou e, de repente, ela subiu na mesa, pois havia entrado água no restaurante e aproximava dela.

O garçom veio correndo da cozinha e estava tentando subir na mesa e se livrar da água, porém caiu uma pedra de gelo bem grande no telhado abrindo uma grande cratera no telhado, por onde entrou muita água molhando, assim, o garçom.

Na medida em que recebeu aquele jato d’água o garçom se transformou em um cachorro. Com medo dos trovões e relâmpagos o cachorro saiu correndo dentro do restaurante e ladrando sem parar. Corria de um lugar para outro. Estava sem direcionamento. Entrava debaixo das mesas.

Saiu correndo e entrou na casinha que o casal havia construído. Depois que o cachorro entrou na casinha, o pedreiro e a mulher saíram.

O Pedreiro saiu correndo e meio que nadando até mergulhar definitivamente no mar. A mulher, ainda se transformando, davam alguns passos e balançavam os braços até nascerem as grandes asas de suas costas. Ela se transformou em uma valente águia e voou para uma montanha próxima ao mar.

O homem permanecia em seu lugar de braços cruzados até que a tempestade veio mais forte e arrancou todo o telhado do restaurante molhando a mulher que subira na mesa.

A mulher se transformou em uma Sereia. Seu corpo aumentou de tamanho. Ela foi nadando até sumir por completo no mar.

O homem, depois de ver todo o acontecido, levantou-se de sua cadeira e saiu andando ao passo que deixava seus pertences no meio de toda aquela destruição e persignou-se com o sinal da cruz. Em seguida, virou-se para traz e abençoou os restos dos destroços daquele restaurante. O homem esperançoso era um padre.

Joacir Soares d’Abadia, padre, Alto Paraíso-GO, 22 de janeiro de 2015.