MENDES, Paulo Henrique Aguiar. Tradução Paulo Henrique A. Mendes. In.: Revista Scripta, Belo Horizonte, v. 7, n. 13, 2 sem. 2003. p. 115–136

 

Por: Rosimeire Soares da Silva[1]

 

Para Paulo Henrique Aguiar Mendes, estudioso em Linguística, com ênfase em Análise do Discurso, no artigo Literatura Brasileira e Discursos Constituintes, existe uma relevante busca de estreitamento entre os estudos linguísticos e estudos literários pelo viés da concepção discursiva da linguagem a qual tem sido objeto de trabalho de vários autores, dentre eles, Dominique Maingueneau.

O modelo de análise dos “Discursos Constituintes” de Maingueneau é a fundamentação teórico-metodológica para abordagem desse artigo. Em seguida, o corpus contemplado é o romance da literatura brasileira, Iracema – José de Alencar - bem como a recuperação de  posicionamentos de importantes críticos literários como Alfredo Bosi e Antônio Cândido.

A literatura se auto-legitima, na perspectiva de Mainguenau, citado por Mendes, ao construir uma tradição e manifestar uma vasta instituição de “rituais enunciativos” ligados ao processo de construção e contextualização de obras associadas a certos gêneros os quais podem ser definidos de forma aproximativa e sob certas condições sócio-históricas. A partir de teorias discursivas como o “dialogismo” e o “interdiscurso”, admite-se que a identidade de um discurso se define na relação com sua alteridade, pois nenhum discurso vem ao mundo numa condição inocente, mas sempre numa relação constitutiva com outros discursos.

Não obstante, muitos estudiosos têm assumido o desafio de construir tipologias discursivas como: tipologias linguístico-enunciativas, funcionais e situacionais. Dessa forma, Mendes, de forma panorâmica, caracteriza os Discursos Constituintes como discursos que se auto-legitimam na própria enunciação.

Esses discursos estão na “origem” de certos setores de atividade social, logo mobilizam archéion (associado ao trabalho de fundação) e se realizam sob forma de práticas discursivas institucionalizadas ou cena englobante. Essa cena corresponde ao que comumente é chamado de discurso filosófico, religioso, etc. De forma também ampla, fundamentado na teoria de Maingueneau, Mendes defende que os gêneros (cena genérica) são “famílias de textos” associadas a práticas sócio-discursivas, socialmente reconhecidas, por exemplo: conto, novela, editorial. Já a cenografia é uma categoria que se instaura a partir das escolhas lingüístico-discursivas do sujeito que se institui como enunciados do texto encenado.

Reportando às obras Ilíada e Odisseia, cuja autoria é atribuída à “entidade enunciativa” denominada Homero, o discurso literário como discurso constituinte são textos fundadores à medida que fundam, através de sua enunciação (cenografia), não só o gênero (cena genérica), mas a própria concepção de literatura ocidental (cena englobante).

Assim, o advento do romantismo brasileiro, mormente em sua fase indianista, como movimento que pretende fundar a literatura nacional é excelente ilustração dessa relação, pois o discurso literário brasileiro é atravessado por outros discursos constituintes como o filosófico, bem como os múltiplos discursos que podem exercer alguma influência sobre os constituintes. Dessa forma, a constituição do discurso literário brasileiro é corroborada pela produção intelectual e política da época e pela crítica literária.

Pode-se dizer que autores românticos como Gonçalves Dias, José de Alencar e outros formavam o que Maingueneau chama de “comunidades discursivas” que são grupos restritos legitimados pelo saber adquirido através da enunciação, instituindo “posicionamentos”. No caso do romantismo brasileiro, os posicionamentos poético-ideólogicos podem ser exemplificados através das fases do romantismo, não havendo correlações diretas e/ou simétricas, mas apenas contradições entre posicionamento estético e político.

Outro ponto importante, nesta abordagem, é o estudo das relações estabelecidas entre os diferentes gêneros no processo de constituição o qual Maingueneau chama de “hierarquia de gêneros” cuja propriedade fundamental consiste na concepção de que existem enunciados que gozam de maior prestígio que outros. Segundo o pesquisador francês, citado por Mendes, no âmbito dessa hierarquia discursiva é possível estabelecer distinções entre os discursos primeiros e segundos (aqueles que são auto-constituintes, e os que se limitam a comentá-los, resumi-los); os fechados e abertos; textos fundadores e não-fundadores (os fundadores pretendem estar na origem da fundação de um discurso constituinte).

Alguns estudiosos brasileiros como Antônio Cândido de Haroldo de Campos possuem opinião convergente no que se refere à obra Iracema, de José de Alencar, considerada “poema” em prosa e O Guarani – do mesmo autor -  como uma epopéia. Esses textos se inscrevem, portanto, como “fundadores” do discurso literário brasileiro através de sua enunciação.

Mendes, nesse artigo, faz uma competente aplicação da teoria de Maingueneau ao demonstrar que o dispositivo enunciativo construído em Iracema é especialmente ilustrativo e discute as indicações paratextuais, como o título, dedicatória e o prólogo, essenciais para a realização de uma análise da obra. No título, “Iracema, lenda do Ceará”, o sintagma opositivo expressa, de maneira concisa, as coordenadas espaço-temporais que fundam o dispositivo enunciativo instaurado. “Lenda” remete à constituição de uma “cronografia”, enquanto “Ceará” refere-se à constituição de uma “topografia”. Nesse viés, Mendes ressalta a referida hipótese de Antônio Cândido que é o fato de o indianismo não servir apenas como passado lendário, mas também como passado histórico, similar à Idade Média.

Mendes destaca a dedicatória contida em Iracema, “TERRA NATAL, um filho ausente” e antes de apresentá-la afirma que complementa o dispositivo enunciativo instituído referindo-se à relação enunciador/enunciatário. Em seguida, a construção dessa relação contratual de reconhecimento mútuo das instâncias enunciativas se desdobra de modo mais explícito e intimista no prólogo, escrito sob a forma de uma carta, e ressalta a projeção especular metonímica que se estabelece entre o “amigo”, os “patrícios cearences”, o “público” e o “leitor” a fim de vislumbrar a hipótese de que a “dêixis discursiva” é estrategicamente projetada sobre a “dêixis fundadora”, desdobrando a cena enunciativa. Essa forma de construção estratégica da “cenografia” em Iracema fica ainda mais clara no primeiro capítulo do romance, pois do ponto de vista do enunciado, sabe-se que narram episódios do final do enredo. No entanto o que mais interessa é o ponto de vista da enunciação. Nessa perspectiva, a partir dos dois primeiros enunciados do romance, observa-se que o enunciador inicia a narrativa instaurando diretamente a cena enunciativa, ao invocar os “verdes mares bravios e sua terra natal”.

 Em seguida, o enunciador começa a interpelar o enunciatário através de perguntas retóricas e suas respectivas respostas, narrando no tempo presente. Ao referir-se ao tempo da própria enunciação e ao tempo do narrado ocorre a configuração de uma estratégia de presentificação do dispositivo enunciativo. Inscrevendo-se nesse tempo-espaço original “presentificado” pela enunciação, o narrador pode legitimar as narrativas míticas e pode recontá-la ao leitor.

A partir do segundo capítulo, narrado agora no passado, inicia-se a história da “virgem dos lábios de mel”. Mendes confronta duas leituras de dois críticos sendo Alfredo Bosi (1994), no capítulo “Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar” da obra Dialética da colonização. E a segunda leitura refere-se ao texto de Haroldo Campos “Iracema: uma arqueografia de vanguarda”, publicado em Metalinguagem e outras metas em que não se evidencia a submissão do elemento indígena, mas na perspectiva da conduta transgressora da personagem Iracema, visto que ela é ao mesmo tempo “seduzida” e “sedutora”. Portanto José de Alencar, em Iracema, estabelece uma “provocação experimental”, através de uma linguagem que traduza o estado adâmico do universo mítico-poético construído e revelado através da narração.

O processo de construção da prosa poética no romance Iracema é um caso paradigmático de instituição de um “código de linguagem” cujas relações constituem uma “interlíngua” em que o escopo passa ser a fundação de uma língua literária nacional estabelecida entre o “português” e o “tupi”.  Assim, José de Alencar torna-se um tradutor, visto que não é viável utilizar a linguagem clássica para representar um mundo “em estado de natureza”, configurando incongruência entre enunciação e enunciado. Portanto a escritura tupinizada de Iracema, ao barbarizar o português canônico, constrói a identidade da língua e da literatura brasileira.

No nível da cadeia significante grafo-fônica, ressalta-se a exploração de ritmo, sonoridade vocálica e da suavidade prosódica. Na dimensão da representação semântica, demarcam-se traduções de expressões em tupi; uso recorrente de símiles; expressões metafóricas. Já no aspecto da estruturação sintática, prima pela escolha de uma sintaxe concisa, marcada pelo uso da coordenação em detrimentos da subordinação. De acordo com Mendes, a construção de uma “linguagem brasileira crioula”, como resultado de uma fusão entre a língua do colonizador e do colonizado, estabelece relação analógica com a construção de universo brasileiro crioulo, compatibilizando as contradições entre os dois povos (índio e português) pela via de idealização poético-ideológica.

A amálgama da “cenografia” e o “código de linguagem” resulta numa última categoria a ser privilegiada  por Mendes: o ethos. A construção do ethos no romance Iracema passa necessariamente pela sobreposição da dêixis discursiva à dêixis fundadora, visto que foi escolhida a prosa poética em detrimentos dos pomposos versos clássicos dos poemas épicos. Portanto a ambientação selvagem remete à construção da imagem e do ethos do enunciador e enunciatário como sujeitos afeitos à natureza e caracterizados pela simplicidade e altivez dos nativos da terra cearense.

Nota-se, portanto, que a busca por um estreitamento entre os estudos linguísticos e estudos literários, pelo viés da concepção discursiva da linguagem, é de extrema relevância, visto que materializa e respalda importantes teorias tanto no campo da linguística como da literatura. Torna-se pertinente também ampliar essas pesquisas, conforme declarou o próprio Mendes, a fim de estabelecer fronteiras de estudos dentro da literatura brasileira, todavia não com intuito de segmentar os campos, mas de compreendê-los em sua amplitude.

 

 

 


[1]Mestranda em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.