Invisibilidade social: a outra face do preconceito
Publicado em 31 de janeiro de 2010 por José Frazão Araujo Souza
As raízes da apartheid social no Brasil remontam aos primeiro anos da
formação do povo brasileiro. Esse preconceito tem vários fatores: o
econômico, o social, o cultural, o religioso, etc. Porém, o que está
mais presente nos últimos tempos é o social; por ser mais disfarçado, é
mais cruel e desumano.
Palavras-chaves: apartação. discriminação. invisibilidade social.
ABSTRACT: The roots of social apartheid in Brazil go back to the first
years of the Brazilian people training. This bias has several factors:
the economic, social, cultural, religious, etc. However, what is more
present in recent times is the social; be disguised, is more cruel and
inhumane. Keywords: contributions. social discrimination, invisibility.
Segundo a enciclopédia,o conceito de invisibilidade social "tem sido aplicado, em geral, quando se refere a seres socialmente invisíveis, seja pela indiferença, seja pelo preconceito, o que nos leva a compreender que tal fenômeno atinge tão somente aqueles que estão à margem da sociedade".
Existem diversos fatores que contribuem para que a invisibilidade social ocorra: histórico, cultural, social, religioso, econômico, estético etc. É o que acontece, por exemplo, quando um mendigo é ignorado de tal forma que passa a ser apenas mais um objeto na paisagem urbana
A invisibilidade histórico-cultural no Brasil tem as suas raízes no contexto da expansão européia ultramarina.A conquista da América obedeceu ao projeto de expansão econômica e religiosa. A Europa, por não possuir riquezas naturais suficientes para sua expansão econômica, foi necessário sair à procura de novas terras onde fosse possível alcançar seu objetivo: explorar as riquezas do Novo Mundo.
A teoria econômica da época ensinava que o acúmulo de metais preciosos era sinônimo de prosperidade econômica. Eno campo religioso, a Igreja Católica necessitava recuperar novos membros arrebanhados pela recente Reforma Protestante.
Os portugueses quando da chegada ao continente americano não vieram acompanhados de suas esposas, logo se uniram maritalmentecom ameríndias e depois com negras. Daí deu-se início à futura formação do povo brasileiro com a combinação de basicamente três etnias: o europeu, o índio e o negro.
Essa união provocou a resistência da Igreja Católica por considerá-la espúria, no contexto de sua tradição. Na preocupação de zelar pelos bons costumes e moral cristãos, a Igreja obrigou os colonos a legalizar a união realizando o casamento dos primeiros lusos no novo continente.
Essa miscigenação cristalizou-se com as futuras levas de escravos negros trazidos da África para o Brasil. Esse amálgama racial foi motivo de preocupação de cientistas e pensadores racistas do século XIX. Chegou-se a pensar que trazendo imigrantes europeus, em poucos anos a população de cor negra se extinguiria.
A nobreza européia não se via como agentes diretos do trabalho manual. Seria necessária uma grande quantidade de mão-de-obra escrava para fazer possível a realização do projeto dos conquistadores. Como o português já possuía experiência com o trabalho escravo – pois foram os primeiros a importar escravos da África para Portugal - adotaram esse expediente. Quem trabalhou a terra foram os escravos negros e não o europeu. Essa mentalidade logo se fez presente nas relações entre o senhor e escravos. Estava-se inaugurando a apartheid social em terras americanas.
O sociólogo Gilberto Freire, em seu alentado livro "Casa – Grande e senzala" afirma que no Brasil não existiu discriminação na relação senhor de engenho e escravo, mas uma relação amistosa em que reinava uma verdadeira democracia racial. A historiadora Lilia Moritz Schwarcz confirma a postura freiriana quando escreve que "a propalada idéia de uma 'democracia racial' [foi] formulada de modo exemplar na obra de Gilberto Freyre". (Schwarcz: 1998, p. 178).
Outro fator importante na criação do preconceito é o econômico. Apesar de não ser determinante, como alguns pensam, com o desenvolvimento do capitalismo os menos favorecidos tornaram-se homens invisíveis. De acordo com o psicólogo Samuel Gachet, "o sistema capitalista sobrevive sob a lei da mais valia, na qual para que um ganhe é imediatamente necessário que outro perca". E conclui dizendo que " ... a população de baixa renda é vista como um vasto mercado consumidor e essa é a sua única forma de visibilidade".
O fenômeno da apartação tem como exemplo maior o caso da África do Sul. A desigualdade econômica até o final dos anos 40 existia sem haver necessidade de leis que separassem brancos de negros. A população de cor negra convivia e se submetia a esse sistema racista dominado pela maioria branca. Com o desenvolvimento da urbanização e o crescimento econômico, foi necessária a criação em 1950, da Lei do Registro de População onde obrigava a separação dos grupos sul-africanos. Essa lei classificou a população em três categorias: os africanos, ou negros, os de cor ou mestiços e os brancos. A esse sistema dou-se o nome de apartheid, que no idioma africâner significa separação, apartação.
O professor Cristovam Buarque falando sobre a apartheid na África do Sul, afirma que
"Novas leis surgiram complementando o desenvolvimento separado na África do Sul. Foram regulamentadas as áreas onde as pessoas poderiam residir trabalhar e circular conforme sua cor; consolidou-se a necessidade de passaportes para os não- brancos circularem entre as áreas; proibiram-se contatos sociais, inclusive casamentos, entre pessoas de raças diferentes; foram estabelecidos sistemas segregados de educação com diferentes padrões e qualidades; definiram-se tipos de emprego para cada raça; foram restringidos os movimentos sindicais de trabalhadores não-brancos; e negou-se a participação política aos não-brancos nos processos parlamentares e governamentais" (BUARQUE: 1999, p.15).
Esse sentimento de superioridade dos brancos em relação aos negros foi o responsável por uma nova ética que lhes dava a sensação de irresponsabilidade e ausência de culpa ante a desigualdade. Encontramos um paralelo com o exemplo dos europeus em relação aos escravos negros e os índios. E agora nos tempos da modernidade esse sentimento de não-culpa está presente ante a pobreza urbana, a fome, a mortalidade infantil, os meninos de rua.
A forma mais cruel da apartheid já não é a racial: é a social. Cristovam Buarque ao se referir à imigração nos Estados Unidos afirma que
(...) "As propostas de novas leis para a imigração não visam impedir entrada de estrangeiros conforme a raça, mas conforme a renda. Os Estados Unidos dão direito de residência permanente a qualquer pessoa, de qualquer nacionalidade ou raça, desde que ingresse com certo montante de dólares" (Id.: 1999 p.25).
E conclui dizendo que
"O avanço técnico integrou os países e as pessoas do planeta, mas dividiu-os socialmente (...). A apartheid renasceu com outra forma, e em dimensão planetária, mas com o mesmo propósito: garantir, por meio da exclusão das grandes massas, os privilégios que não podem ser distribuídos para todos" (Id. 1999 p.25,26).
Esse sistema de segregação social foi estudado e vivenciado pelo psicólogo da USP Fernando Braga da Costa, que passou por uma experiência inusitada ao encarnar o papel de gari em defesa de sua tese de doutorado intitulada "Garis – um estudo de psicologia sobre invisibilidade pública" (COSTA:2004). Ele observou durante sua experiência que atos cotidianoscomo olhar, reconhecer e cumprimentar as pessoas, são visivelmente ignorados. O psicólogo descobriu que muitas vezes os trabalhadores são tratados de forma pior do que um animal doméstico, que, pelo menos é chamado pelo nome. Até com seus professores e colegas não foi reconhecido. Ou seja, a pessoa comum, no Brasil perde sua identidade, fica sem rosto. Inclusive sua tese serviu de inspiração para o personagem da atriz Camila Pitanga da rede globo que interpretou o papel de faxineira. A atriz vivenciou a dolorida experiênciade ser invisível socialmente.
Juliana Porto em seu artigo "Invisibilidade social e a cultura do consumo"ao se referir aos trabalhadores sem identidade diz que,
"(...) Quando, a caminho do trabalho, passamos por um gari fazendo a varredura de nossa calçada, o identificamos por seu uniforme como executante de tal função, mas não o notamos por suas singularidades. Ao contrário, o vemos quase como se fosse parte do mobiliário urbano"(PORTO: p.2)
Na sociedade capitalista existe uma inversão de valores. A mídia como criadora de celebridades momentâneas, constrói verdadeiros castelos de areia que se desmoronam à presença dos primeiros vendavais. Apelando para o estético, ascende ao estrelato pessoas comuns usando como critérios o externo e o bonito. Em uma sociedade onde os valores morais e éticos são colocados no lugar do medíocre e superficial, o talento e competência são preteridos em nome da fama passageira, pelo domínio da mídia, da cultura da aparência, da publicidade, do espetáculo fútil. O cidadão comum é marginalizado, apartado por uma sociedade consumista e materialista; desprovido de bens materiais perde a sua identidade, torna-se um anônimo. Sem nome. Sem rosto.
_________________________
REFERÊNCIAS:
COSTA, Fernando Braga da. "Homens invisíveis" – retratos de uma humilhação social" . Ed. Globo, 2004.
SCHARCZ, Lilia Moritz. 1998. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. In: Fernando A. Novais, (org.). História da vida privada no Brasil, v. 4, Contrastes da intimidade contemporânea, organizado por Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, p. 173-244.
BUARQUE, Cristovam. O que é apartação: a apartheid social no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999.
PORTO, Juliana. "Invisibilidade social e a cultura do consumo" s/d.