Uma questão fundamental à construção de sentidos[1]

A noção de texto sofreu variações ao longo dos estudos lingüísticos, bem como a própria noção de interpretação. Notem-se três modalidades de se perceber o texto: a primeira, centrada na concepção de texto como uma realidade fechada delimitada pelo autor. Em uma segunda visão, o foco está no próprio texto, a língua é tida como um código, portanto, o texto é admitido exclusivamente como unidade de transmissão completa, e o autor, o responsável exclusivo pela emissão de uma mensagem fechada, de interpretação única. O sujeito-autor determina a sua mensagem supondo haver uma compreensão exclusiva para sua declaração. O texto é visto como um produto lógico, cujo leitor teria o simples papel de decodificação deste código e a leitura se resumiria à "captação das idéias do autor sem se levar em conta as experiências e o conhecimento prévio do leitor" (KOCH; ELIAS, 2006, p.10). Tem-se, porém, outra perspectiva, que considera a existência de sujeitos ativos, participantes do processo de interpretação. Observa a relação sujeito-texto-leitor e o sentido de um texto é construído a partir desta interação. A leitura exige a atividade por parte deste sujeito e, faz-se necessário, o resgate de suas memórias discursivas.

A questão da intertextualidade existente nas charges jornalísticas chama atenção, pois sob uma visão analítica do discurso, as leituras não possuem uma interpretação exclusiva e perpétua. Postula-se que o texto não é representativo em si, mas os discursos por este trazidos são os responsáveis pela sua significação.

Segundo Orlandi (2001, p. 10) "haverá modos diferentes de leitura, dependendo do contexto em que se dá e de seus objetivos.", portanto, o processo de leitura é dinâmico, assim as formas de leitura estão diretamente ligadas às circunstâncias e objetivos dados.

Um texto não diz apenas com o que aparece explícito, mas também diz ao não dizer, pois o implícito (não dito) também está significando e compondo os sentidos de determinado texto, assim como também são necessárias as relações que um texto mantém com outros, ou seja, a intertextualidade.

A construção textual, de acordo com Organdi, configura-se "como parte da relação mais complexa e não coincidente entre memória/discurso/texto." (2005, p.12). Deve-se notar a circunstância da enunciação, o contexto sócio-histórico, a memória discursiva e o modo de circulação.

O contexto sócio-histórico constitui-se na medida em que é considerado o momento de criação e de leitura, bem como os modos de produção e recepção. No contexto o autor é considerado como sujeito responsável pela coalizão dos discursos em uma mesma manifestação lingüística.

O texto e seus sentidos não existem de maneira estratificada, pré-estabelecidos, com significados fechados e, conseqüentemente, de interpretação bastante restrita. Ao contrário, segundo Brait (2003), o texto é formado por elementos de composição – as formas lingüísticas – associados aos elementos da situação. O texto define-se na condição de veículo para construção de sentidos, e a construção destes só é realizável em um contexto histórico-social. Dessa forma, os discursos inseridos em cada texto são elementos que materializam a ideologia vigente.

Segundo Mangueneau (2005, p.20),

compreender um enunciado não é somente referir-se a uma gramática e a um dicionário, é mobilizar saberes muito diversos, fazer hipóteses, raciocinar, construindo um contexto que não é um dado preestabelecido e estável.

A multiplicidade de sentidos não é uma característica exclusiva dos textos escritos, pois, apresenta-se como característica intrínseca das linguagens. Não há interpretação exata, o que existem são leituras possíveis. Durante a interpretação cognitiva de determinado texto, têm-se diversas possibilidades de leitura. Os sentidos, como expressados por Orlandi, "são construídos em confrontos de relações que são sócio-historicamente fundados e permeados pelas relações de poder com seus jogos imaginários." (2005, p. 103). Daí a importância da historicidade do sujeito no processo da cognição textual. De acordo com a Análise do Discurso, todo texto seria constituído por diversos discursos que se complementam e podem ora se afirmar, ora se contradizer.

O contexto pode ser compreendido como todos os saberes inter-relacionados que contribuem para a construção de sentidos. Assim, é o contexto quem determina o que pode ou não ser dito. De acordo com Foucault (apud GREGOLIN, 2003, p.49),

toda produção de sentidos deve dar-se no interior desses campos institucionalmente constituídos como lugares de onde se fala. Falar do interior desses campos significa inserir-se em uma formação discursiva que determina os modos de dizer e aquilo que se pode e se deve dizer em certa época.

A Análise do Discurso define a linguagem como mediação indispensável entre a pessoa e sua realidade. Faz uma articulação entre o eminentemente lingüístico e o sócio-histórico e ideológico. A linguagem está articulada aos modos de produção social. Nas palavras de Orlandi (2005, p. 63), "não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia [...]. Há pois práticas simbólicas significando (produzindo) o social. A materialidade do simbólico assim concebido é o discurso". Porém um determinado texto não compreende apenas um discurso exclusivo, pois, como ser ideologicamente formado, o homem carrega consigo os muitos discursos que adquire desde a infância.

Os discursos são de domínio público e é essa natureza pública que os torna tão inerentes ao sujeito. No que tange às leituras textuais, nota-se a natureza constitutivamente ideológica dos discursos. Observa-se essa natureza, por exemplo, no uso repetido de uma mesma palavra com acepções diversas. De acordo com Possenti (2003, 40),

o (efeito de) sentido nunca é o sentido de uma palavra, mas de uma família de palavras que estão em relação metafórica (ou: o sentido de uma palavra é o conjunto de outras palavras que mantêm com ela uma certa relação).

As condições de formação e de produção discursivas também devem ser tidas em conta, pois "a partir do domínio da memória é que se podem entender os efeitos que são produzidos numa seqüência discursiva" (Orlandi, 2005, p. 110). Assim, o mesmo e o diferente articulam-se o tempo todo na (re) produção tanto de discursos quanto de leituras. Da relação do interdiscurso (o repetível) com o intradiscurso (seqüência lingüística).

Observe-se agora a análise da seguinte charge:

Fonte: Jornal A tarde, Caderno 3, 18 de março de 2008.

Intitulada de "Presente americano", esta charge denota forte ironia desde o seu título. Na ironia diz-se literalmente muitas vezes, o oposto do que se está dizendo, do que se pretende transmitir. Vai além da visão superficial primária do texto. Segundo Francisco da Silva (2003, p. 92),

eminentemente argumentativa, a ironia no discurso [...] político social desempenha o papel de encaminhar o leitor ao desvelamento, ao desmascaramento das intenções que estavam mascaradas, ocultadas no discurso do outro. Assim, o procedimento irônico, por uma artimanha lingüístico-discursiva sinaliza ao leitor, possibilidades de leitura. Rotas para a compreensão do discurso do outro.

Subentende-se, por exemplo, que presente deva ser algo satisfatório, agradável, desejável, em bom estado, mas que neste caso, tende a uma interpretação exatamente do oposto. Tem-se a caricatura de George. W. Bush, abraçado carinhosamente (esse carinho está denotado na ilustração dos coraçõezinhos) um enorme abacaxi, ofertando-o para "McCain, Hillary ou Obama". Quem são estes possíveis recebedores? Quais sentidos são presumíveis no que diz respeito à oferenda?

Primeiro, o sujeito-leitor precisará identificar o que a caricatura da figura masculina está representando neste ensejo. Deverá conhecer o que representa, neste caso, reconhecer que se trata da figura de um líder internacional. Os três nomes citados como possíveis recebedores abordam os principais candidatos à eleição do cargo presidencial dos Estados Unidos da América.

Para que este evento comunicativo dê-se de forma inteligível, é preciso considerar que abacaxi aparece como intertexto da idéia de um problema de solução difícil. Essa associação da figura do abacaxi à idéia de problema já é de conhecimento público. Porém esta significação só é dada após o sujeito-leitor conectar os textos apresentados (desenhos e palavras) ao contexto político em que figura os EUA. Sintetizando o contexto: têm-se, de um lado, as eleições presidenciais e, do outro, a crise financeira na qual o referido país está inserido.

Novamente, na conformação do processo de leitura, foi necessária a mescla de diversos intertextos, por conseguinte, podem ser identificados múltiplos discursos. Intentando obter uma perspectiva mais ampla da mensagem externada na charge, por várias vezes o leitor recorreu à memória, restaurou conhecimentos e re-significou informações dadas. Note-se como o contexto provoca, modifica integralmente a interpretação. Embora os Estados Unidos seja uma potência mundial, configura-se num momento de recessão. O que, em outras circunstâncias representaria uma dádiva positiva, conformou-se num abacaxi, e dos grandes.

O texto, como considerado na Análise do Discurso, revela-se multifacetado e plurissignificativo. Funciona como um suporte empírico para manifestação dos discursos. Sendo assim, abrolham questões que vão além do reconhecimento lingüístico. Esta é a razão pela qual esta teoria faz parte das aplicações aqui realizadas. Segue uma direção mais reflexiva, centrada no sujeito e no seu modo de recepção. Considera-o em sua historicidade, deste modo, em sua unicidade coletiva.

Conclui-se, com base no estudo apresentado, que quanto mais textos um sujeito-leitor conhecer, maior será seu grau de aprofundamento durante a leitura de outros textos, ou seja, quanto mais praticar a leitura, maior será o seu nível cognitivo. Este aprofundamento pode ser apontado como o responsável pelo seu grau de argumentação e contra-argumentação. Por isso, trabalhou-se aqui, a charge, um texto de cerne ideológico que cogita o cenário político em questão, considerando que é uma variação textual que solicita do seu leitor muito mais que a mera decodificação, mas o reconhecimento de seus subsídios constituintes, dentre eles, seus intertextos, seus discursos, e o contexto histórico situado.



[1] Izabel C. O. Ghissoni Filha. Graduada em Letras pela UNEB.