A LETRA DE FAROESTE CABOCLO E SEUS INTERTEXTOS
Denilson Borges de Paula / UNISA
Márcia A.G.Molina /UNISA


Resumo:
O objetivo deste trabalho foi o de analisar as intertextualidades na letra da canção Faroeste Caboclo, mostrando como essa letra dialoga com textos bíblicos e com o texto do cinema americano. Ao longo da análise, percebe-se que o conhecimento de mundo que temos a respeito da vida de Jesus Cristo e o que temos acerca dos filmes de faroeste comuns nas décadas de 70 e 80, ajuda-nos a depreender esses intertextos. A análise apontou também que, apesar de alguns julgarem que Faroeste Caboclo uma paródia, entendemos que se trata, antes,de uma paráfrase, porque há um texto paralelo ao bíblico.

Palavras-chave: Letra de música - Faroeste Caboclo ? Lingüística Textual ? Intertextualidade.

Abstract:
The aim of this works was to analyze the intertextualities in the lyrics Faroeste Caboclo,by Renato Russo, showing how it dialogues with the Biblical Texts and the texts from the American movies. Durant our work, we could see that the Word knowledge about Jesus? live and about American movies, very common at 70th and 80 th, help us to infer these intertexts. The analyze showed us that Faroeste Caboclo is one paraphrase, in despite of someone thinks that it was a parody, because it is a parallel to the biblical text.

Key-words:

Music- Faroeste Caboclo ? Textual Linguistic - Intertextualities

Considerações iniciais
Desde há muito a preocupação com aulas de Língua Portuguesa, em relação à metodologia, é objeto de discussão entre os estudiosos. Nas décadas de 80 e 90, essas ganharam maior dimensão, em especial, depois da LDB de 1996.
Este documento ensejou trabalhos, dentre outros, direcionados à atividade do professor de Português em sala de aula. Pouco tempo depois, como fruto desses trabalhos, surgem os Parâmetros Curriculares Nacionais (1996), cujo objetivo foi o de nortear os trabalhos docentes dali em diante.
A diferença entre o que se praticava em termos de ensino de Língua e o que trazia o material foi muito importante. O trabalho do professor deveria deixar de privilegiar o tradicional ensino da gramática, caminhando para além do limite da frase, chegando-se ao texto. O objeto de trabalho do professor, portanto, passou a ser a unidade textual.
O objetivo do ensino da Língua Portuguesa passou, portanto, o de formar alunos bons produtores de textos orais e escritos.
Assim, cabe ao professor de Língua Portuguesa conhecer os elementos que constituem o texto, tanto no que se refere à coesão, quanto à coerência.
E é por isso que, neste trabalho, centramos aí nossas discussões e estudaremos uma letra de música de Renato Russo, intitulada Faroeste Caboclo, escrita entre 1977 e 1979 e gravada em 1987 no LP Que país é este?, quando o poeta ainda morava em Brasília, à luz da Lingüística Textual.
Nosso objetivo é o de analisar os textos com que se cruzam o Faroeste Caboclo, porque, como diz Bahktin (2006):
Todo enunciado concreto é um elo na cadeia de comunicação discursiva de um determinado campo. Os próprios limites do enunciado são determinados pela alternância dos sujeitos do discurso. Os enunciados não são indiferentes entre si, nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros (....)

O trabalho está assim organizado: no primeiro capítulo traçaremos um breve perfil do autor e apontaremos sua discografia. No segundo capítulo faremos uma breve síntese de Coesão e Coerência, detendo-nos em especial, na questão da Intertextualidade. No terceiro capítulo, apresentaremos a análise para, finalmente, mostrarmos as conclusões.

1. Renato Russo: Um trovador solitário
Considerado um dos grandes ícones da juventude dos anos 80, e um dos grandes poetas de toda uma geração, Renato Manfredini Junior, nascido em 27 de março de 1960, no Rio de janeiro, ficou conhecido com a alcunha, escolhida por ele mesmo, de Renato Russo (pt.wikipedia.org). O "Russo" que adotou como sobrenome artístico foi a forma que Renato encontrou de homenagear Jean-Jacques Rousseau (Genebra, Suíça1712 ? 1778 ) , e Bertrand Russel (País de Gales ? 1872 - 1970) personalidades que admirava. Filho do economista Renato Manfredini, funcionário do Banco do Brasil e de Dona Maria do Carmo, professora de inglês. Aos sete anos, se muda para os Estados Unidos, por causa de uma transferência de seu pai para Nova Iorque, onde aprende a falar inglês. Aos onze anos, uma nova transferência de seu pai o leva até Brasília, uma cidade importantíssima em sua história.
Renato teve uma infância e adolescência de classe média alta, típica do pessoal das bandas de Brasília. Entre os 15 e os 17 anos enfrentou várias operações e viveu entre a cama e a cadeira de rodas, combatendo uma doença óssea rara chamada epifisiólise. Nessa época, se entregou à leitura de grandes obras literárias, onde adquiriu vasta cultura que o influenciaria em suas composições. Em 78, inspirado pelo Sex Pistols, Renato formou o Aborto Elétrico, que no vai e vem de integrantes, contou com participações de Fê e Flavio Lemos (depois do Capital Inicial), Ico Ouro Preto e André Pretorius. Entre 79 e 82 abandonou o Aborto Elétrico e passou a fazer trabalhos solos. Neste período ficou conhecido como "O Trovador Solitário". É nesta época que nasce Faroeste Caboclo. Quando a lendária "cena de Brasília" já era uma força underground reconhecida, Renato Russo formou a Legião Urbana com Marcelo Bonfá, Eduardo Paraná e Paulo Paulista. Um ano depois, Paraná e Paulista deixavam a banda e entrava Dado Villa-Lobos. Nessa mesma época, os Paralamas do Sucesso estavam fazendo muito sucesso e Bi Ribeiro (baixista dessa banda e ex-aluno de inglês de Renato) consegue uma oportunidade para o Legião: gravar um disco pela EMI, conceituada gravadora no mundo todo. Com este fato, Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá sempre consideram os Paralamas como seus padrinhos.
Com seus refrões poderosos e letras que falavam de inseguranças emocionais e do niilismo da geração crescida durante o regime militar, a Legião Urbana bateu fundo nos anseios dos jovens brasileiros. Será e Ainda é cedo são músicas que "estouram" como sucessos.
No final desse mesmo ano, a banda entra em estúdio para gravar o disco "Dois", que deveria ser duplo e se chamar "Mitologia e Intuição". Mas, receosa, a EMI se recusa a laçar um disco duplo para uma banda tão nova como era a Legião. Este disco torna-se rapidamente um grande sucesso e é considerado por muitos, um dos maiores discos de rock nacional na história. Músicas como Tempo Perdido, Índios, Metrópole e Quase Sem Querer se tornam hits. Mas o maior sucesso deste disco e um dos maiores sucessos da Legião foi Eduardo e Mônica, uma música que conta a história de dois jovens que se apaixonam apesar dos estilos diferentes de vida.
No final de 1987, é lançado o disco "Que País é Este 1978/1987", que traz várias músicas da época do Aborto Elétrico e mostra como a banda mudou o seu estilo de música. É neste álbum que está incluída "Faroeste Caboclo".
O fato que marcou esta época, foi um show que aconteceu em Brasília, mais precisamente no estádio Mane Garrincha. Uma organização pífia faz centenas de feridos e três mortos. Um louco chegou a subir no palco e agarrar Renato Russo. O show foi interrompido e o que se via era uma imensa confusão no público. Renato Rocha e Marcelo Bonfá choravam no camarim e Renato Russo gritava: "Na vim aqui para dar show para animais".
Em 1989, é lançado um disco histórico: "As Quatro Estações". Todas as músicas (Há Tempos, Pais e Filhos, Feedback Song For a Dying Friend, Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto, Eu Era um Lobisomem Juvenil, 1965 (Duas Tribos), Monte Castelo, Maurício, Meninos e Meninas, Sete Cidades e Se Fiquei Esperando o Meu Amor Passar) fazem sucesso. Este disco é o de maior vendagem da banda, com quase dois milhões de cópias vendidas. Dentre essas 11 músicas, sem dúvida o destaque é Pais e Filhos, que faz grande sucesso, se transformando num dos maiores sucessos da Legião.
Em 1990, ocorre uma grande mudança na banda. Renato Russo assume publicamente ser homossexual e descobre ser portador do vírus da AIDS. Renato também conhece a maior paixão de sua vida, o americano Scott, que lhe vicia em heroína Com Renato afundado no vício, em dezembro de 1991 é lançado o mais belo disco do Legião Urbana: "V" mostra todas essas mudanças na vida de Renato, com músicas falando de drogas. Teatro dos Vampiros e O Mundo anda tão Complicado viram hits. Mas duas músicas desse disco podem ser destacadas: a primeira é Metal Contra As Nuvens, uma belíssima música de onze minutos e meio que usa palavras difíceis que mostra um Renato Russo mais poeta. Renato Russo estava tão afundado no vício, que, durante a turnê deste disco, quando o Legião estava excursionando pelo nordeste, alguns shows tiveram que ser desmarcados, já que Renato estava caindo de bêbado e com fortes tendências suicidas.
Em 1992, é lançado o disco duplo "Música Para Acampamentos", que mostram as músicas da Legião tocadas ao vivo, algumas acústicas, alguns covers internacionais e apenas uma música inédita: A Canção do Senhor da Guerra, que se torna grande sucesso.
Em 1993, Renato Russo interna-se em uma clínica e se livra do vício das drogas e da bebida. Essa mudança pode ser notada no disco "O Descobrimento do Brasil", que fala de esperança e é sem dúvida, o disco mais alegre da Legião. Músicas como Vinte e Nove e Vamos Fazer Um Filme se tornam hits. Mas podemos destacar, assim como no disco anterior, duas músicas: Giz, que, além de ter se tornado um hit, era a música preferida de Renato Russo (ele dizia que a música era completinha), e Perfeição, que ganhou um vídeo-clipe num ambiente muito parecido com a capa do disco (cheia de flores), e por ser o maior sucesso do disco.
Em 1994 a Legião resolve dar um tempo. Com isso, Renato Russo lança, nesse mesmo ano, o seu primeiro disco solo, o "The Stonewall Celebretion Concert", um disco totalmente em inglês. The Stonewall era um bar nos Estados Unidos onde aconteceu um levante gay em 1970. Esse álbum continha músicas de Madonna, Bob Dylan, entre outros. Em 1995, é lançado o disco "Equilíbrio Distante", que trazia músicas em italiano. Nesse disco, Renato Russo canta muito bem, emplacando sucessos como Strani Amori e La Solitudine. Segundo o próprio Renato, esse disco foi feito em homenagem à sua família, de origem italiana.
1996 é um triste ano. A partir de janeiro, a Legião começa as gravações de seu novo álbum. Junto com isso, começam as complicações emocionais de Renato, que estavam presentes nas músicas desse álbum. Em setembro, apressadamente é lançado "A Tempestade" ou "O Livro dos Dias". O álbum bastante melancólico mostra o autor insinuando que algo está errado. A VIA LÁCTEA foi o primeiro sucesso a ganhar as rádios e acabou se transformando numa declaração de adeus com sua letra triste e reveladora sobre o estado de saúde do compositor. Este disco é o mais triste da Legião. Renato Russo morreu em seu apartamento, em Ipanema a 1:15 da madrugada de 11 de Outubro por insuficiência pulmonar e anemia aguda causadas pela AIDS, pesando apenas 45 Kg. Foi cremado no dia seguinte no cemitério do Caju no Rio de Janeiro. Renato Russo nunca admitiu ser portador do vírus, talvez para evitar a exposição dolorosa vivida por Cazuza, mas dava pistas sobre sua relação com a doença. Quando lançaram este último disco, propositalmente abriram mão de qualquer divulgação.(whiplash.net)

2. Lingüística Textual
Os estudos de Lingüística Textual deram início no Brasil no final da década de 80, com as professoras Ingedore V. KOCK e Leonor Lopes FÁVERO, especialmente, partindo dos trabalhos de Halliday e Hasan e Van Dijk (1976), e estes afirmam que o que permite determinar se uma série de sentenças constitui ou não um texto são as relações coesivas com e entre as sentenças, que criam a textura. A preocupação de ambas é analisar os elementos que instauram textualidade no texto: coesão e coerência.

Texto

Texto, para FÁVERO (1999,p.7) pode ser tomado em duas acepções: em sentido amplo, significando toda capacidade textual do ser humano, ou, quando nos referimos à linguagem verbal, estamos no caminho do discurso: atividade lingüística de um sujeito, numa dada situação comunicativa, de acordo com suas condições de produção (apud: FÁVERO e KOCK, 1983).

Todo discurso, contudo, é manifestado concretamente por meio de texto.

Já, etimologicamente, texto quer dizer "tecido". Um todo em que as partes devem vir ligadas pela relação de sentido e de união, coesão. Uma das propriedades que distingue um texto de um amontoado de palavras ou frases é o relacionamento existente entre si.
Assim, o texto que apresenta essas características tem, de acordo com FÁVERO (opus cit) textualidade, que é a característica de o texto ser todo (coeso e coerência).

2.1 Coesão
Para FÁVERO, a coesão é uma característica que se manifesta micro textualmente e pode ser:

a) Coesão referencial Há certos itens na língua que têm a função de estabelecer referência. Fazem referência a alguma coisa necessária a sua interpretação, mas não são interpretados semanticamente por seu sentido próprio. A referência constitui um primeiro grau de abstração.
A coesão referencial pode ser obtida de duas formas:
1) Substituição: Se dá quando um componente é retomado ou procedido por uma pro ? forma (elemento gramatical representante de uma categoria). No caso de retomada tem-se uma anáfora e, no caso de uma sucessão, uma catáfora.
As pro ? formas podem ser pronominais,verbais,adverbiais, numerais, e exercem função de pro-sintagma, pro-constituinte ou pro-oração
2) Reiteração: ( do latim reiterare = repetir) É a repetição de expressões do texto ( os elementos repetidos têm a mesma referência), e se dó por: repetição do mesmo item lexical, sinônimos, hiperônimos e hipônimos, expressões nominais definidas e por nomes genéricos.

a) Coesão recorrencial: Se dá quando, apesar de haver retomada de estruturas, itens ou sentenças, o fluxo informacional caminha, progride; tem, então, por função levar adiante o discurso.
Constituem casos de coesão recorrencial: recorrência de termos; paralelismo; paráfrase; recursos fonológicos segmentais e supra-segmentais.

b) Coesão seqüencial: Os mecanismos de coesão seqüencial scrictu sensu (porque toda coesão é, num certo sentido, seqüencial) são os que têm por função, da mesma forma que os de recorrência, fazer progredir o texto, fazer caminhar o fluxo informacional. Diferem dos de recorrência, por não haver neles retomada de itens, sentenças ou estrutura

2.2 COERÊNCIA
Para a autora, a coerência não é uma característica exclusiva do texto. Esse pode ter sentido para uma pessoa numa determinada situação e não ter para a outra. A coerência também pode variar de acordo com o conhecimento de mundo, lingüístico, etc. do interlocutor. Assim, para a autora, a relação de coerência depende, sobretudo desses conhecimentos, chamados por Van Dijk (......) de modelos cognitivos globais (frame, esquema, script).
KOCK e TRAVAGLIA (1990 P.59) asseveram que outros fatores além desses contribuem para o estabelecimento da coerência, como: Elementos lingüísticos, conhecimento de mundo, conhecimento partilhado, inferências, fatores de contextualização, situacionalidade, ,informatividade, focalização, intencionalidade e aceitabilidade, consistência e relevância e intertextualidade.

2.2.1. Fatores que auxiliam no estabelecimento da coerência no texto
São vários os elementos que contribuem no estabelecimento da coerência:
-Elementos lingüísticos: Servem como pistas para a ativação dos conhecimentos armazenados na memória,constituem o ponto de partida para a elaboração de inferências, ajudam a captar a orientação argumentativa dos enunciados que compõem o texto, etc (P.59).
-Conhecimento de mundo: Adquirido à medida que vivemos, tomando contato com o mundo que nos cerca e tendo experiências com uma série de fatos. Armazenam-se os conhecimentos em blocos, que se denominam modelos cognitivos, entre os quais podem ser citados: os frames, os esquemas, os planos, os scripts e as superestruturas ou esquemas textuais (P.60).
-Conhecimento partilhado: Os elementos textuais que remetem a esse conhecimento entre os interlocutores constituem a informação "velha" ou dada, ao passo que tudo aquilo que for introduzido a partir dela constituirá a informação nova trazida pelo texto (P.64).
-Inferências: Operação pela qual, utilizando-se se conhecimento de mundo, o receptor de um texto estabelece uma relação não explícita entre dois elementos deste texto que ele busca compreender e interpretar ( P.66).
-Fatores de contextualização: São aqueles que "ancoram" o texto em uma determinada situação comunicativa (P.67).
-Situacionalidade: pode-se ser ista atuando em duas direções: da situação para o texto ou do texto para situação (P.69).
-Informatividade: Grau de previsibilidade da informação contida no texto. Um texto será tanto menos informativo, quanto mais previsível ou esperada for a informação por ele trazida (P.71).
-Focalização: Concentração dos usuários (produtor e receptor) em apenas uma parte de seu conhecimento e com a perspectiva da qual são vistos os componentes do mundo textual (P.72).
-Intencionalidade: Refere-se ao modo como os emissores usam textos para perseguir e realizar suas intenções, produzindo assim, textos adequados à obtenção dos efeitos desejados (P.79).
-Aceitabilidade: Constitui a contraparte da intencionalidade.Mesmo que um texto não se apresente, à primeira vista, como perfeitamente coerente, o receptor vai tentar estabelecer a sua coerência, dando-lhe a interpretação que lhe pareça cabível (P.80)
-Consistência: Exige que cada enunciado de um texto seja consistente com os enunciados anteriores (P.81). Relevância: Exige que os enunciados sejam interpretáveis como falando sobre o mesmo tema (P.81)
- Intertextualidade: pode ser de forma ou de conteúdo.,m
A intertextualidade de forma ocorre, quando o produtor de um repete expressões, enunciados ou trechos de outros textos, ou então o estilo de determinado autor ou de determinados tipos de discurso. (P.75). Como o objeto de nosso trabalho reside na análise da intertextualidade em letra de música, veremos mais detalhadamente esse tópico, a seguir.

2.2.1.2. Intertextualidade
KOCK (2000), citando BARTHES(1974), diz que o "texto redistribui a língua" e que "todo texto é um intertexto". Já BEAUGRANE & DRESSLER(1981) apontam como um dos padrões ou critérios de textualidade, a intertextualidade,que,diz respeito aos modos como a produção e recepção de um texto dependem do conhecimento que se tenha de outros textos com as quais ele se relaciona.
KOCK (1986) fez distinção entre intertextualidade em sentido amplo e em sentido restrito. Para ela, intertextualidade em sentido amplo é a condição de existência do próprio discurso, pode ser aproximada do que, sob a perspectiva da Análise do Discurso, se denomina interdiscursividade.VERÓN (1980, p.82)diz: "Um texto não tem propriedades ?em si?; caracteriza-se somente por por aquilo que o diferencia de outro texto (...).Por isso, também a noção de intertextualidade não se refere apenas à verificação de um dos aspectos do processo de produção dos discursos, mas também á expressão de uma regra de base do método (...); trabalha-se sempre sobre vários textos, conscientemente ou não, já que as operações na matéria significante são, por definição, intertextuais". A autora também refere-se e concorda com KRISTEVA (1974, p.60) quando afirma: "Qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é a absorção e transformação de um outro texto".

Em relação à intertextualidade em sentido restrito, diz tratar-se da relação de um texto com outroa textos previamente existentes, isto é, efetivamente produzido (JENNY apud KOCK, 2000, p.48)
Entre os tipos de intertextualidade em sentido restrito, podem-se considerar os seguintes:
1. De conteúdo X de forma/conteúdo
2. Explícita X implícita
3. Das semelhanças X das diferenças
4. Com intertexto alheio, com intertexto próprio ou com intertexto atribuído a um enunciador genérico
Todas essas manifestações da intertextualidade permitem apontá-la como fator dos mais relevantes na construção da coerência textual (KOCK ,2000, p.50 apud KOCK & TRAVAGLIA,1989).

3.0 Análise da letra da música.
A letra da música Faroeste Caboclo de autoria de Renato Russo faz-nos pensar na hipótese de o poeta querer fazer um contracanto com a história de Jesus Cristo. São vários os momentos em que o autor dialoga com outros textos que lhe são anteriores e que contam a história da vida do Messias.
Ao nomear o protagonista da história de João de Santo Cristo "... Não tinha medo tal João de Santo Cristo...", percebe-se logo a intenção de Renato em querer, desde o princípio do texto, que sua letra fizesse lembrar a história do "filho de Deus". Mas o autor parece construir a personagem de forma diversa de como era, agia e pensava Jesus de Nazaré.
A trajetória da infância de Jesus é pouco conhecida, mas acredita-se num menino comportado e cumpridor das ordens dos pais. Já João de Santo Cristo tinha uma vida desregrada "... quando com um tiro de soldado o pai morreu..." e ?... era o terror da cercania onde morava...". Enquanto Cristo levava uma vida religiosa, Santo Cristo "...ia pra igreja só para roubar o dinheiro que as velhinhas colocavam na caixinha do altar..."
Quando o autor aponta que "... de tanto brincar de médico aos doze era professor..." lembramo-nos de que, nas escrituras, Jesus pregava no templo com doze anos: Está escrito que "todos os que o ouviam admiravam sua inteligência e respostas" (Lucas 2:47). Encontramos intertexto também quando Renato escreve "... sentia mesmo que era mesmo diferente, sentia que ali não era seu lugar..." e, pelo conhecimento de mundo que temos, Jesus também sabia que não era uma pessoa comum. Nas escrituras religiosas, fala-se em Jesus como Salvador e como o Messias que viria a Terra para salvar a humanidade dos pecados, termos usados pelo autor de Faroeste Caboclo nos versos:"...E comprou uma passagem foi direto a Salvador..."e "... ia perder a viagem, mas João foi lhe salvar..." Outra retomada de texto é a profissão do pai ?terreno" de Cristo, carpinteiro. E na música que estamos analisando, Santo Cristo ao chegar a Brasília decide "...cortar madeira, aprendiz de carpinteiro...".
Jesus Cristo, como sabemos, pregava para que as pessoas se arrependessem de todos os seus pecados e, em determinado momento, João de Santo Cristo deixa de lado sua vida bandida "...Foi quando conheceu uma menina e de todos seus pecados ele se arrependeu..." Há também intertexto quando ..." Um senhor de alta classe com dinheiro na mão..." aparece para Santo Cristo "...e ele faz uma proposta indecorosa e diz que espera uma resposta, uma resposta de João...". Cristo foi tentado pelo diabo e na 3ª tentação o demônio mostrou-lhe todos os reinos do mundo com seu esplendor e disse-lhe: "Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares". Então Jesus lhe diz: "Vai-te Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto". Com isso o diabo o deixou (Mateus 4,1-11, in www.filhodapaixao.org.br).
O texto de Faroeste Caboclo diz: "...Não boto bomba em banca de jornal nem em colégio isso eu não faço não..." e mais "... e é melhor o senhor sair de minha casa..."
No decorrer da história de sua vida, Jesus combatia a hipocrisia de forma feroz e veemente, e João deparou-se com certa pessoa "...Mas acontece que um tal de Jeremias traficante de renome apareceu por lá...."sujeito que transbordava hipocrisia "Desvirginava mocinhas inocentes e dizia que era crente mas não sabia rezar..." que se tornou seu maior inimigo...
Como todos nós sabemos, Jesus foi traído por um de seus apóstolos a quem tanto amou. Na letra da canção, João de Santo Cristo sentiu a traição na alma: "... chegando em casa então ele chorou... com Maria Lúcia Jeremias se casou, e um filho nela ele fez." Ao contrário de Cristo que aceitou essa traição como parte de sua missão, Santo Cristo dominado pela raiva " ... era só ódio por dentro..." desafiou Jeremias "...e então o Jeremias pra um duelo ele chamou..." que nos faz lembrar dos textos de filmes de faroeste americanos, tão populares nos anos 60, 70 e 80. A maioria desses era de duelos por motivos banais ou não: amor, honra, dinheiro ou vingança.
O ápice do texto de Renato Russo é o duelo de João e Jeremias, em que este atira em Santo Cristo à traição: "...Um homem que atirava pelas costas e acertou o Santo Cristo e começou a sorrir..." . João agoniza diante do povo que assiste a tudo sem fazer nada: ?...Sentindo o sangue na garganta ..." "...e o povo a aplaudir...". Percebemos aqui dois intertextos: um com o momento da crucificação de Jesus Cristo que também agonizou em frente à população impassível e outro, como dito anteriormente, como os filmes de cowboys, em que a população, muitas vezes ovaciona o vitorioso.
Mais uma vez percebemos uma retomada do texto bíblico, quando, na canção, o autor escreve: "...Se a via-crúcis virou circo estou aqui...". Sabemos que este termo se refere ao trajeto seguido por Jesus Cristo carregando a cruz até o calvário.
No cristianismo o sangue de Jesus serve como redenção para os pecados dos homens e a obtenção da vida eterna com o perdão de Deus. Na Santa Ceia, ao tomar o cálice de vinho em suas mãos, Jesus pronuncia: "Tomai, todos, e bebei; este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos, para remissão dos pecados" ( in www.paroquias.org) Na música, Santo Cristo convida Jeremias: "...dá uma olhada no meu sangue e vem sentir o teu perdão..." e mata o inimigo como nos filmes de western.
Para finalizar, notamos um paralelo, quando Renato Russo afirma que Santo Cristo morre sem atingir seu objetivo: "... e João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília com o diabo ter..." . Jesus Cristo também morre, porém no cristianismo sua morte representa o cumprimento de sua missão, pois DEUS entregou seu próprio filho em sacrifício para o perdão dos pecados.
Indagado sobre a música Renato Russo disse: "Faroeste eu escrevi em duas horas e meia. Foi assim: PRARRRRNNN. Sabe, mas era fácil por causa da métrica, Faroeste tem uma métrica de música brasileira, então fica fácil. Então na hora a história foi aparecendo, aparecendo, eu fui escrevendo, escrevendo e aí saiu. O Povo brasileiro adora contar histórias, então resolvi também contar uma"(cultalt.tripoli.com).






Considerações Finais

Antes de tecer nossas considerações finais, lembramos que nosso objetivo foi o de apontar os intertextos entre o texto da obra Faroeste Caboclo com o bíblico e com os de filmes de cowboys. Assim, em primeiro lugar devemos afirmar que, apesar de muitos entenderem tratar-se de uma paródia de textos bíblicos, julgamos antes tratar-se de uma paráfrase dos mesmos, pois,"bem ou mal, na totalidade ou em parte, fielmente ou não, se restaura o conteúdo de um texto-fonte, num texto derivado" (FÁVERO, 1999, p.28 apud FUCHS,C.1983).
Esses pontos de intertextualidades são percebidos em episódios que remetem a elementos presentes na história da vida de Jesus tais como: arrependimento, pecado, tentação,hipocrisia, traição, redenção etc. Recordemo-nos de que:

"Todo e qualquer texto tem um multivocidade inerente; o enunciador faz sempre interpretação do texto-fonte e, assim, não só o restaura de modo diferente, mas também faz uma interpretação do texto-derivado no momento eu que o produz como paráfrase". FÁVERO 1999, p.29, apud FÁVERO, L.L. & URBANO, H. 1988).

Esses intertextos contribuem ainda para a coesão de texto, já que atuam como articuladores entre informações antigas e novas. O leitor, ao efetuar a leitura do texto de Renato Russo, recupera os textos-fonte, alinhava-os, costura-os, tece-os, deixando de ser um, para ser vários.






REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


FÁVERO, Leonor Lopes. Coesão e Coerência Textuais. São Paulo: Ática, 1999

KOCH, Ingedore Villaça, TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A Coerência textual. São Paulo: Contexto, 1991.

KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2000.

www.whiplash.net ( consultado em março de 2010).
www.filhodapaixao.org.br (consultado em maio de 2010).
www.paroquias.org ( consultado em maio de 2010).
cultalt.tripoli.com (consultado em junho de 2010).








Estudante de Letras ? Orientado pela Profa. Márcia A G Molina