1 Introdução

A interculturalidade tem se tornado o tema da moda. Na América Latina, está presente nas políticas públicas e nas reformas educativas e constitucionais. É eixo importante tanto na esfera nacional-institucional como no âmbito da cooperação inter/transnacional. Embora se possa argumentar que esta presença é efeito e resultado das lutas dos movimentos sociais, políticos e ancestrais, e suas demandas pelo reconhecimento dos direitos e da transformação social, também pode ser vista, ao mesmo tempo, por outra perspectiva: a que a liga aos desenhos globais do poder, capital e mercado.

Este trabalho pretende explorar estes sentidos e múltiplos usos da interculturalidade, para assim demonstrar a diferença entre a interculturalidade a serviço do sistema dominante e ela percebida como projeto político, social, epistêmico e ético de transformação e descolonialidade. Argumentaremos que a interculturalidade, em si, só terá significação, impacto e valor quando esteja assumida de maneira crítica, como ação, projeto e processo que procura intervir na re-fundação das estruturas e ordenação da sociedade que racializa, inferioriza e desumaniza, ou seja, na matriz ainda presente da colonialidade do poder.

2. A interculturalidade na América Latina

Faz menos de duas décadas que a América Latina começou a reconhecer "oficialmente" sua diversidade étnico-cultural; uma diversidade histórica enraizada em políticas de extermínio, escravidão, desumanização, inferiorização e também na suposta superação do indígena e negro, esta última parte da miscigenação (ou "crioulização") e em países como Brasil, Republica Dominicana e o Caribe colombiano e venezuelano, a mal chamada "democracia racial". Hoje, a nova atenção à diferença e à diversidade parte de reconhecimentos jurídicos e uma necessidade cada vez maior de promover relações positivas entre distintos grupos culturais, confrontar a discriminação, o racismo e a exclusão e formar cidadãos conscientes das diferenças para que possam trabalhar conjuntamente no desenvolvimento do país e na construção de uma sociedade justa, eqüitativa, igualitária e plural. A interculturalidade inscreve-se neste esforço. Porém, por ser conceito contemporâneo, usado numa variedade de contextos e com interesses sóciopolíticos por vezes opostos, a compreensão de seu significado e projeto muitas vezes fica ampla e confusa. Em síntese, podemos explicar o uso e sentido contemporâneo e conjuntural da interculturalidade sob três perspectivas diferentes.

A primeira perspectiva – relacional, faz referência de forma mais básica e geral ao contato e intercâmbio entre culturas, ou seja, entre pessoas, práticas, saberes, valores e tradições culturais diferentes, que poderia dar-se em condições de igualdade e desigualdade. Desta maneira, assume-se que a interculturalidade sempre tem existido neste continente, em face do contato e da relação entre os povos indígenas e afrodescendentes, por exemplo. Podem-se observar vestígios dessa mestiçagem, os sincretismos e as transculturações que formam parte central da história e natureza latino-americano-caribenha, história e natureza que seguem negando o racismo e as práticas de racialização.

Uma dessas perspectivas – nossa segunda perspectiva de interculturalidade – é a que podemos chamar de funcional, seguindo as idéias do filósofo peruano Fidel Tubino. Aqui a perspectiva de interculturalidade enraíza-se no reconhecimento da diversidade e diferença cultural com objetivos direcionados a inclusão da mesma no interior da estrutura social estabelecida. Desde esta perspectiva "liberal" – que busca promover o diálogo, a convivência e a tolerância –, a interculturalidade é "funcional" ao sistema existente; no tocante às causas da assimetria e desigualdade social e cultural, nem "questiona as regras do jogo" e por isso, "é perfeitamente compatível com a lógica do modelo neoliberal existente" [1].

Daí faz parte do que vários autores mencionam como a nova lógica multicultural do capitalismo global, uma lógica que reconhece a diferença, sustentando sua produção e administração dentro da ordem nacional, neutralizando-a e esvaziando-a de seu significado real, e tornando-a funcional a esta ordem e, a sua vez, à expansão do neoliberalismo e aos ditames do sistema-mundo. Nesse sentido, o reconhecimento e o respeito à diversidade cultural convertem-se numa nova estratégia de dominação, a que aponta à criação de sociedades mais eqüitativas e igualitárias, senão ao controle do conflito étnico e a conservação da estabilidade social com o fim de promover os imperativos econômicos do modelo (neoliberalizado) de acumulação capitalista, agora fazendo "incluir" os grupos historicamente excluídos em seu interior.

A interculturalidade aqui é funcional não só ao sistema, senão também ao bem-estar individual, ao sentido de pertença dos indivíduos a um projeto comum e a modernização, globalização e competitividade de "nossa cultura ocidental", já assumida como cultura própria latino-americana. A terceira perspectiva – muito diferente da funcional e que assumimos aqui – é a interculturalidade crítica. Com esta perspectiva, não partimos do problema da diversidade ou diferença em si, nem da tolerância ou inclusão culturalista neoliberal. Melhor, o ponto central é o problema estrutural colonial racial e sua ligação ao capitalismo de mercado. Como processo e projeto, a interculturalidade crítica questiona profundamente a lógica irracional instrumental do capitalismo e aponta para a construção de sociedades diferentes, a outra ordem social.

O enfoque e a prática que se desprende da interculturalidade crítica não é funcional ao modelo societal vigente, senão árduo questionador do assunto. Enquanto a interculturalidade funcional assume a diversidade cultural como eixo central, sustentando seu reconhecimento e inclusão "manipulada" dentro da sociedade e do Estado nacional, e deixando fora os dispositivos e padrões de poder institucional – estrutural – os que mantêm a discriminação, iniqüidade e desigualdade – a interculturalidade crítica parte da questão do poder, seu padrão de racialização e a diferença que tem sido construída em função disso.

O interculturalismo funcional responde a parte dos interesses e das necessidades das instituições sociais; a interculturalidade crítica, por sua vez, é uma chamada de e desde o povo que tem sofrido uma histórica submissão e subalternização, de seus aliados, e dos setores que lutam, junto com eles, pela re-fundação social e descolonização, pela construção de um mundo melhor. Esta construção "de baixo" evidencia-se de maneira particular no contexto equatoriano, onde a interculturalidade é conceito bem visto e projeto significativo de cunho indígena, princípio ideológico de seu projeto político que – desde os 90 – vem iniciando a transformação radical das estruturas, instituições e relações – ainda coloniais – existentes. Uma transformação não só para os povos e nacionalidades indígenas, senão para o conjunto da sociedade. Entendida desta maneira, o problema central do qual parte a interculturalidade não é a diversidade étnico-cultural, é a diferença construída como padrão de poder colonial que segue transcendendo praticamente todas as esferas da vida.

Por isso mesmo, a interculturalidade entendida criticamente ainda não existe, é algo por construir. Daí seu entendimento, construção e posicionamento como projeto político, social, ético e também epistêmico – de saberes e conhecimentos –, projeto que afiança para a transformação das estruturas, condições e dispositivos de poder que mantém a desigualdade, racialização, subalternização e inferiorização de seres, saberes e modos, lógicas e racionalidades de vida. Desta forma, a interculturalidade crítica pretende intervir e atuar sobre a matriz da colonialidade, sendo esta intervenção e transformação passos essenciais e necessários na construção mesma da interculturalidade. Antes, porém, de explorar este entrelaço da interculturalidade e descolonialidade, examinaremos mais detidamente a matriz da colonialidade, dando algumas pautas para compreender sua transcendência como sistema e ferramenta permanente de poder, controle e dominação.

3. A matriz da colonialidade

Partir do problema estrutural-colonial-racial, direcionando-se para a transformação das estruturas, das instituições e das relações sociais e para a construção de condições radicalmente diferentes, a interculturalidade crítica, traça um caminho que não se limita às esferas políticas, sociais, e culturais. Senão também se cruza a do saber, ser e da vida mesma. Ou seja, preocupa-se por e com a exclusão, negação e subalternação ontológica e epistemica-cognitiva dos grupos e sujeitos racializados; pelas práticas de desumanização e subordinação.

Diferente do colonialismo que se entende tipicamente como relação política e econômica que envolve a soberania de um povo ou nação sobre outro em qualquer parte do mundo, acolonialidade é o padrão de poder que emerge no contexto da colonização européia nas Américas – que logo se torna natural – na América Latina, como também no planeta – como modelo de poder moderno e permanente.A explicação de Idón Chivas Vargas, representante do governo de Evo Morales na Assembléia Constituinte boliviana, é bastante clara:

A colonialidade é a forma como uns se sentem superiores sobre outros e isso gera múltiplas arestas de discriminação racial, e que na Bolívia mostra-se como a superioridade do branco frente ao índio, camponês ou indígena, uns são chamados a manipular o poder e outros a ser destinatário de tal manipulação, um destinado a conhecer e outros a ser destinatários desse conhecimento, uns são contra o progresso e os outros o desenvolvimento[2].

Embora a colonialidade atravesse praticamente todos os aspectos da vida, sua prática pode ser entendida com mais clareza a partir de quatro áreas ou eixos. O primeiro eixo – a colonialidade do poder – refere-se ao estabelecimento de um sistema de classificação social baseado na categoria de "raça" como critério fundamental para a distribuição, dominação e exploração da população mundial, no estilo, lugar e rols da estrutura capitalista-global do trabalho, categoria que – por sua vez – altera todas as relações de dominação, incluindo as de classe, gênero, sexualidade, etc. Este sistema de classificação fixou-se na hierarquia e na divisão de identidade racializada, com o branco (europeu ou europeizado masculino) por cima, seguem os mestiços, finalmente os índios e negros nos últimos degraus, como identidades impostas, homogêneas e negativas que pretendiam eliminar as diferenças históricas, geográficas, socioculturais e linguísticas entre povos de origem e descendência africana.

Um segundo eixo é a colonialidade do saber: o posicionamento do eurocentrismo como ordem exclusiva da razão, conhecimento e pensamento, a que descarta e desqualifica a existência e viabilidade de outras racionalidades epistémicas e outros conhecimentos que não sejam os dos homens brancos europeus ou europeizados. A colonialidade do ser, um terceiro eixo, se exerce por meio da inferiorização, da subalternização e da desumanização: o trato da "não existência". Faz pôr em dúvida o valor humano destes seres, pessoas que, pela sua cor e suas raízes ancestrais, ficaram claramente "marcadas": a desumanização racial na modernidade, a falta de humanidade nos sujeitos colonizados que os distanciam da modernidade, a razão e as faculdades cognitivas. O último eixo tem sido tema de pouca reflexão e discussão: o da colonialidade cosmogônica da mãe natureza e da vida mesma. Encontra sua base na divisão binária natureza/sociedade, descartando o mágico-espiritual-social, a relação milenar entre mundos biofísicos, humanos e espirituais – incluindo ancestrais, espíritos, deuses, e orixás – a que dá sustentação aos sistemas integrais de vida, conhecimento e a própria humanidade.

4. Considerações finais

Nesta última parte, trataremos do entrevero da interculturalidade e da descolonialidade, como projetos que caminham juntos. Construir a interculturalidade – assim entendida criticamente – requer transgredir, interromper e desmontar a matriz colonial ainda presente e criar outras condições de poder, saber, ser, estar e viver, que se distanciam do capitalismo e sua única razão. De forma similar, a decolonialidade não terá maior impacto sem o projeto e esforço de interculturalizar, de articular seres, saberes, modos e lógicas de viver dentro de um projeto variado, múltiplo e multiplicador, que aponta para a possibilidade de não só co-existir senão de conviver (de viver "com") numa nova ordem e lógica que partem da complementaridade e das parcialidades sociais[3]. Esta é a visão e o projeto que há nas novas Constituições políticas de Bolívia e Equador.

De todas as lutas exercidas nos últimos anos pelos movimentos sóciopolíticos ancestrais da América do Sul, tal vez as mais transcendentais são as que apontam a re-fundação, interculturalização e descolonização do Estado. Acabar com o Estado ainda colonial e o modelo neoliberal é trazer e assumir iniciativas que passam da resistência à insurgência, ou seja, da posição defensiva a processos de caráter proposital e ofensivo que pretendem in-surgir e re-construir (uma mudança no que se entende como "movimento social" e particularmente "movimento indígena") Aí está a parte transcendental: de transformar o Estado entendido como estrutura-instituição de exclusão e dominação, e como produto e reprodutor do que o boliviano Rafael Bautista tem-se referido como "o monólogo" da razão moderno-ocidental"[4] ainda colonial na sua prática e conceito.

Portanto, é curioso e diferente nas novas constituições equatoriana e boliviana seu esforço de "interculturalizar", de destacar lógicas, racionalidades e modos sócio-culturais de viver historicamente negadas e subordinadas e fazer com que estas lógicas, racionalidades e modos de viver contribuam em forma chave e substancial, a uma nova construção e articulação – a uma transformação – de orientação descolonial.


[1] TUBINO, Fidel. La interculturalidad crítica como proyecto ético-político. Encuentro continental de educadores agustinos, Lima, enero 24-28, 2005. http://oala.villanova.edu/congresos/educación/lima-ponen-02.html, acesso em 25 set. 09.

[2] VARGAS, Idón M. Chivas, Bolivia constitucionalismo: máscara del colonialismo, en Prensa Indígena, La Paz, acesso em 26 set. 09. Disponível em www.bolpress.com/art.php?Cod=2007041107.

[3] YAMPARA, Yampara Pachakutt. I – Kandiri en el paytiti [reecuntro entre la búsqueda y retorno a la Armonía originaria], La Paz: ediciones qamañpacha –CADA, 1995. Apud Walsh, Catherine. XII Congresso ARIC, Interculturalidade e (des) colonialidade: Perspectivas críticas e políticas. Disponível em http://aric.edugraf.ufsc.br/congrio/html/anais/anais.html. Acesso em 22 set. 09.

[4] BAUTISTA, Rafael. Bolivia: del Estado colonial al Estado Plurinacional, documento inédito, La Paz, 25 de enero de 2009. Apud Walsh, Catherine. XII Congresso ARIC, Interculturalidade e (des) colonialidade: Perspectivas críticas e políticas. Disponível em http://aric.edugraf.ufsc.br/congrio/html/anais/anais.html. Acesso em 22 set. 09.