INSTRUMENTO PERSEGUIDO
Publicado em 18 de maio de 2009 por Paulo de Aragão Lins
INSTRUMENTO
PERSEGUIDO
No seminário no Recife chegou de Campina Grande um colega muito sério, muito consagrado, chamado Eliezer de Araújo. Junto com sua bagagem o colega trouxe um piston, ou trompete. Como ele era muito fechado, ou tímido, ficava meio arredio, o que não sei porquê, valeu-lhe o apelido de Colibri.
Não fique escandalizado. No seminário todo mundo ganha um apelido. Bem, o fato é que o Eliezer resolveu no segundo ou terceiro dia que chegara ao seminário, antes mesmo de tomar o banho de lama, ensaiar seu trompete. O pior é que ele não tocava nada, só fazia aquelas notas de ensaio que enche a paciência de qualquer cristão.
O banho de lama era um costume muito interessante. Os calouros chegavam ao seminário e não sabiam de nada. Como o ano letivo começava em março e em março normalmente chove no Recife, o pessoal veterano ficava esperando dar a primeira chuva e fazer lama em uma parte de terra que tinha no terreno do seminário, para agarrarem os calouros e darem um banho de lama neles. E o pior é que aproveitavam quando cada calouro estava bem arrumado.
Muito antes do banho de lama, Colibri resolveu ensaiar seu trompete. O pessoal que estava estudando as duras matérias do seminário naquele tempo, não agüentou e resolveu dar um trote nele. Esperaram ele sair um dia para um culto e esconderam o trompete.
Quando ele chegou da igreja, procurou o trompete e não encontrou. Ele não se fez de rogado. Quando o reitor chegou no dia seguinte ele foi imediatamente prestar uma queixa formal do desaparecimento do trompete. O reitor tratou-o com toda a deferência, mas Colibri não sabia que havia transgredido a mais séria lei não escrita dos estudantes - dedurar os colegas. Estas queixas não funcionavam com a Diretoria do seminário. O reitor falou para ele que tivesse paciência que um dia o trompete iria aparecer.
No dia seguinte Colibri estava tomando café quando ouviu no segundo andar os toques inconfundíveis do seu trompete:
- Tã-tã-rã. Tã-tã-rã. Tã-tã-rã.
O coitado do Colibri deixou seu saboroso pão com manteiga e queijo do reino e subiu as escadas em disparada. Não encontrou ninguém no terceiro andar e do trompete, nem sombra. Quando chegou à mesa de refeição, seu precioso sanduíche tinha desaparecido.
Outra hora estava estudando com afinco para uma prova de grego do super exigente professor, Rev. Victor Pester, quando escutou novamente o clarim:
- Tã-tã-rã. Tã-tã-rã. Tã-tã-rã.
Deixou tudo e correu atrás do clarim. Quando chegou no extremo do seminário, misteriosamente escutou o trompete tocando do outro lado. Correu para lá e nada do instrumento.
Com isto os dias foram passando e passaram-se os meses. Chegamos ao fim do semestre e o trompete de Colibri tocou muitas vezes, porém o coitado jamais o descobriu. Perto do final do semestre ele nem corria mais para descobrir onde ele estava, porque não conseguia encontrá-lo. O mais interessante é que nessas alturas já não era apenas o dele que tocava. Os estudantes tinham conseguido duas cornetas de banda e tocavam os três instrumentos em diferentes lugares do seminário, deixando o pobre do Eliezer furibundo.
No dia que ele estava arrumando as malas para sair em sua viagem de férias, como todos nós o fazíamos, para irmos trabalhar em alguma igreja, de repente, amarrado com uma fita vermelha, estava o trompete, bem polido e com um cartão de lado.
Ele pegou o cartão e nele estava escrito:
"Colega Colibri, nós te amamos, mas não pudemos resistir à tentação".
Anos depois fui pregar na igreja dele em Feira de Santana, Bahia, e comentei:
- E o trompete, colega?
- Aquilo foi muito triste, Aragão. Vocês destruíram a vocação de um grande músico.