1. INTRODUÇÃO

De acordo com Singer (2001) a sociedade brasileira na passagem do século XIX para o XX foi marcada por diversas mudanças em âmbito cultural, social e econômico. A contradição tradicional/moderno fez-se presente, pois a realidade agrária contrastava com o ideal de modernidade ainda ausente. Na década de 1920 o processo de industrialização em São Paulo ocorreu de forma lenta, mas a revolução de 30 sob o comando de Getúlio Vargas instaurou um processo de reestruturação no país ao sobrepor a bandeira nacional aos emblemas representativos de cada estado - disputados entre São Paulo e Rio Grande do Sul.

O intervencionismo estatal, como afirma Ribeiro (2001), antes restrito à cafeicultura, foi ampliado, portanto, para a economia, o processo de desenvolvimento, e as relações de trabalho. Nas atividades urbanas o trabalho assalariado assumia predominantemente a forma capitalista, ou seja, em troca de uma jornada de trabalho o operário era remunerado em dinheiro. Nesse contexto, as cidades começaram a se desenvolver sob o investimento do Estado, promovendo assim uma nova imagem de cidade que “significasse ao mesmo tempo uma nova imagem da nação e das novas elites” (Ribeiro apud Sevcenko, 1983).

No entanto, dividiu-se a cidade entre “integrados” e “marginais” (Ribeiro, 2001, p. 147). As cidades alargaram-se e constituiram os bairros periféricos e favelas, em geral habitados por aqueles que trabalhavam nas fábricas e os que foram em busca de emprego, mas, mesmo sem êxito, se alojaram por ali mesmo na esperança de conseguir um trabalho. Vejamos nas palavras de Rizzini (2008, p. 25)

Acreditava-se fervorosamente na possibilidade de (re)formar o Brasil – proposta que logo adquiriu a dimensão de uma ampla “missão saneadora e civilizadora”. Bradava-se como ideal salvar o Brasil do atraso, da ignorância e da barbárie para transformá-lo numa nação “culta e civilizada”. A esses tempos de grandes mudanças estavam associados problemas de difícil solução, que se seguiram ao processo de abolição da escravatura e proclamação da república.

Deste modo, o Brasil, ao passar do regime monárquico[1] para o republicano[2] visava o desenvolvimento do país e para alcançar tal objetivo contava com a “salvação da criança” (idem, p. 27). Embalados pelos ideais republicanos de construção nacional, médicos e juristas brasileiros acreditavam que educar a criança era cuidar da nação, moralizá-la e civilizá-la era salvar a nação. No entanto, o discurso desse grupo apresentava-se ambíguo, pois, a criança deveria ser protegida, mas também contida, para que não trouxesse danos à sociedade. A criança era concebida ora em perigo, ora perigosa.

 Faz-se necessário destacar, contudo, que essas crianças tratadas pela literatura da época não diz respeito a todas as crianças independentemente da classe social, muito pelo contrário. As crianças em questão estão associadas à classe social em que estão inseridas, ou seja, são aquelas das camadas populares. Elas seriam a chave para o futuro da nação. Com o tempo o conceito de infância foi adquirindo novos significados e uma outra dimensão social. A criança passa de objeto de interesse e preocupação do âmbito privado da família e da igreja, para questão de âmbito nacional e social, cuja competência administrativa diz respeito ao Estado.

Rizzini assegura ainda que a criança passa a ser concebida como valioso patrimônio de uma nação, como um ser em formação que pode ser moldado para o bem ou para o mal. Na primeira hipótese ela estaria sendo útil para a nação se fosse devidamente educada, mesmo que para isso fosse necessário tirá-la de seu convívio familiar, caso este fosse considerado enfermiço, para que pudessem reeducá-la. Já na segunda se configuraria como uma “degenerada”, viciosa inútil a onerar os cofres públicos. Sob essa ótica, zelar pela criança demonstrava-se trilhar um caminho de uma concepção higienista e saneadora da sociedade, cujo objetivo consiste em atuar nos focos da doença e da desordem, ou seja, sob o universo da pobreza moralizando-a.

          A autora relata que a deterioração das “classes inferiores” é concebida como um problema moral e social que deve ser enfrentado pelo Estado e a medicina higienista com suas ramificações de cunho psicológico e pedagógico deve se propor a atuar na esfera doméstica para que possa educar as famílias e vigiar seus filhos.

Aqueles que não pudessem ser criados por suas famílias, tidas como incapazes ou indignas, seriam de responsabilidade do Estado. Por outro lado, a criança representava uma ameaça nunca antes descrita com tanta clareza. Põe-se em dúvida a sua inocência. Descobrem-se na alma infantil elementos de crueldade e perversão. Ela passa a ser representada como delinquente e deve ser afastada do caminho que conduz à criminalidade, das escolas do crime, dos ambientes viciosos, sobretudo as ruas e as casas de detenção. (RIZZINI, 2008, p. 26)

          Entretanto, nem sempre foi assim. Segundo Silva (1997) de 1.500 a 1874, houve a implantação do modelo português de atenção ao menor, exclusivamente de caráter filantrópico, presentes nas santas casas de misericórdia onde subsequentemente foram instaladas as Rodas dos Expostos[3]. Neste período não era comum a prática de internação de crianças por muito tempo, pois elas eram encaminhadas para as chamadas famílias beneméritas que as criavam e as mantinham como agregadas. 

O autor afirma que de 1874 a 1922 o Brasil foi palco de uma intensa migração estrangeira, isto ocasionou a criação de diversas sociedades cientificas que trabalharam no controle de doenças epidêmicas e na ordem dos espaços públicos como escolas, internatos e prisões. Nesse período, no trato com as questões referentes às crianças, foi dada a supremacia ao médico em detrimento do jurista. Do mesmo modo criou-se a legislação sanitária estadual e municipal. As amas de leite, contratadas e pagas para que exercessem tal função, eram as principais agentes a encaminhar aos expostos, criando-os, oferecendo-os a outras famílias ou simplesmente enterrando-os quando faleciam.

Rizzini (2008, p. 26) destaca ao afirmar que no fim do século XIX, no Brasil, a criança era considerada filha da pobreza, “material e moralmente abandonada” como um problema social preocupante que demanda ação urgente. No âmbito jurídico associa-se ao problema uma categoria específica, a do “menor”. Esta compreensão por parte desse setor da sociedade divide a infância em duas e passa a ilustrar aquela que é pobre e, por isso, potencialmente perigosa, abandonada e pervertida, como tal precisa da intervenção do Estado.

            A autora reitera que esse juízo se desenvolveu e ampliou-se no início do século XX, dando espaço para criação de um complexo aparato médico-jurídico-assistencial cujas metas eram tornar as crianças úteis para a sociedade. Definidas no trato com a prevenção, educação, recuperação e repressão elas foram elaboradas. A prevenção era desenvolvida no sentido de vigiar a criança de modo a evitar sua degradação, a qual contribuía para a degeneração da sociedade. A educação se propunha a educar o pobre, afeiçoando-o para o hábito do trabalho. A recuperação sugeria reeducar ou reabilitar o menor que se encontrava vicioso[4] através do trabalho e da instrução, retirando-o, assim, do meio da criminalidade.  A repressão apoiava a contenção do menor delinquente, impedindo-o que causasse novos danos.

A conciliação desses movimentos resultou, portanto, na organização da justiça e da assistência (pública e privada) nas três primeiras décadas do século XX (idem, p. 27). Salientava-se que a criança deveria ser educada visando-se o futuro da nação, entretanto, concretamente, esta ação revelava-se que, se tratando da infância pobre, educar tinha como principal objetivo ensiná-la para submissão. Por este motivo, o país optou por desenvolver uma política jurídico-assistencial ao invés de investir numa política nacional de educação de qualidade e de livre acesso.

A autora supracitada salienta que essa preferência resultou na dicotomização da infância. De um lado, a cidadania estava reservada para as crianças que eram mantidas sob os cuidados da sua família. Do outro, objeto de leis, medidas filantrópicas e programas assistenciais eram destinados àqueles mantidos sob a tutela vigilante do Estado, os menores, cujo direito reservado era a estadania[5]. O argumento de que investir na infância era civilizar o país foi utilizado pelo Estado como pretexto para que este pudesse tutelar os filhos dos pobres, cerceando seus passos e mantendo-os à margem da sociedade. Tornando-os, assim, filhos do governo[6].

  1. DESENVOLVIMENTO

Volpi (2001) apresenta que em 1902, Mello Mattos[7] propõe para o Brasil um Projeto de Proteção para o Menor, mas apenas em 1926 é transformado em Lei, sendo, enfim, promulgado em 12/10/1927. Nasce então o primeiro Código de Menores do Brasil, Lei 6.697, denominado Código Mello Mattos. O início da chamada etapa tutelar, devido à participação do Estado na tutela do menor. Este termo, antes utilizado pela legislação penal para abarcar todos aqueles que não tivessem completado a maioridade estipulada em 21 anos, passa agora a denotar a infância pobre, o/a delinquente.

De acordo com o autor, o Código de Menores consistiu numa lei extremamente minuciosa que continha 231 artigos. Chama atenção a especificação detalhada das atribuições da autoridade competente, o Juiz de Menores, assim como as prerrogativas do Juizado de Menores. A legislação reflete um protecionismo que tinha como principal objetivo o controle absoluto do Estado sobre a população considerada promotora da desordem. Por considerar o menor como pervertido, ou em perigo de o ser, como afirma Rizzini (2008), abria-se a possibilidade, em nome da lei, de enquadrar uma criança pela simples suspeita, desconfiança ou pela indumentária que portasse.

As teorias sobre criminalidade em voga nos países tidos como civilizados corroboravam para justificar a necessidade de intervenção por parte do Estado. No cerne dessas teorias estava a concepção de que o lócus social era capaz de produzir criminosos, e, portanto, capaz também de evitar que se formassem criminosos. Caberia, portanto, à sociedade fazer sua escolha: simplesmente punir os autores de crimes através da “Justiça Repressiva”, mantendo-os como eternos candidatos à reincidência, ou recuperá-los para a vida em sociedade. Logo, essas ideias foram endossadas por adeptos da “cruzada pela infância”. (RIZZINI, 2008, p. 123)

De acordo com a autora, essas ideias foram seguidas também pela América Latina e Brasil, o qual se espelhou na experiência norte-americana de uma concepção de justiça especialmente dirigida aos menores através da constituição de tribunais especiais para julgamentos destes. Os “Tribunais de Menores”, como eram chamados, funcionariam sob o comando de juízes também especiais, os quais contariam com a colaboração de outros especialistas, tais como jurista penitencialista, médico fisiologista e psiquiatra e pedagogo para cumprir sua “missão jurídico-social” (Rizzini, idem).

Contudo, Silva (1997) assevera que o Código Mello Matos transformou a criança vítima, infratora ou negligenciada em uma única categoria arbitrária de menores abandonados[8]. Homogeneizou-se a categoria “menor”, pois adolescentes autores de infrações penais e adolescentes vítimas de todo tipo de abuso e exploração eram enquadrados num mesmo âmbito, o de ação penal, a qual era suavemente denominada de tutelar. A prática social abarcava aspectos correcionais e repressivos através da negação de direitos básicos que deveriam ser garantidos pelo Estado.

As leis visavam, sobretudo, prevenir a desordem, na medida em que disponibilizavam a tutela do Estado nos casos em que as famílias não conseguissem conter seus filhos insubordinados, assim como suspender o pátrio poder, pois previam a possibilidade de agir sobre a autoridade paterna, transferindo a paternidade ao Estado caso considerasse necessário. No entanto, o contexto em que essa ação era considerada necessária caracterizava-se quando a pobreza deixava de ser digna e a família era definida como sendo “contaminada pela imoralidade” (RIZZINI, 2008, p. 65).

De acordo com Silva (1997) a aprovação do primeiro Código de Menores gerou a desativação da Roda dos Expostos. Através do Escritório de Admissão estabelecido na Casa dos Expostos a entrega da criança passou a ser feita diretamente pelos seus genitores, sendo que, em troca do fim do anonimato, o Código estabeleceu o sigilo relacionado às causas da exposição, do nascimento da criança e da condição de seus pais. Assim, iniciou-se a fase denominada pelo autor como Assistencial, pois acentuou a tutela sobre o exposto até os dezoito anos de idade.

Neste sentido, Volpi (2001) relata que, ante a inexistência de instituições especializadas para o atendimento dos menores, estes, quando condenados, eram postos no sistema carcerário dos adultos, sofrendo os abusos decorrentes dessa promiscuidade. Esta prática, de acordo com Silva (1997), foi desenvolvida pelas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas presentes no Brasil durante o domínio português. Ao longo do século XIX a figura do discernimento foi questionada no meio jurídico, mas continuou em prática[9].

Entretanto, nas duas primeiras décadas do século XX, ganhava força a ideia de ser necessário “compreender a pretensa criminalidade infantil” (Rizzini, 2008, p. 126) promovendo o seu afastamento da área penal. Neste momento, visava-se uma humanização da justiça e do sistema penitenciário e na trilha desse movimento o caso da criança foi considerado. Deste modo, a noção de discernimento foi abertamente contestada e erradicada como a aprovação do Código de Menores de 1929.

No entanto, faz-se necessário salientar que, como afirma a autora, o primeiro documento oficial de repercussão que visava a tutela do Estado sobre a criança foi o projeto de lei do senador da República Alcindo Guanabara, apresentado ao Senado em 1906. Este tinha como objetivo regular a situação da infância moralmente abandonada e delinquente. Posteriormente, adicionado ao projeto de Mello Mattos foi útil para construção do Código de Menores. Contudo, como afirma Volpi (2001, p. 27),

Se no campo jurídico a questão veio sendo abordada desde 1927, no campo das políticas públicas, somente no governo de Getúlio Vargas é que o Estado cria o Departamento Nacional da Criança (1940), com o objetivo de coordenar em âmbito nacional as atividades de atenção à infância. Com o objetivo de desenvolver atividades de amparo aos “menores desvalidos e infratores” é criado, em 1941, o Serviço de Assistência ao Menor (SAM). A característica desse serviço era considerar crianças e adolescentes pobres como potenciais marginais. A ideia que se tinha era de que a sociedade é um todo “harmônico”, com setores e funções diferenciadas. Se há algo que não funciona, ele precisa ser retirado do meio social, recuperado e reintegrado. A existência de crianças e adolescentes pobres era vista como uma disfunção social e para corrigi-la o SAM aplicava a   fórmula   do   sequestro   social:   retirava   compulsoriamente   das   ruas   crianças   e adolescentes pobres, abandonados, órfãos, infratores e os confinava em internatos isolados do convívio social, onde passavam a receber um tratamento extremamente violento e repressivo. Essas instituições totais tinham na própria denominação um indicador de suas funções: patronatos, centros de recuperação, reeducação e institutos agrícolas. A promiscuidade, a violência, o tratamento desumano, a atuação repressiva dos ‘monitores’. As grades e muros altos, o distanciamento da população através da organização interna das instituições garantiam a arbitrariedade e o desconhecimento por parte da população do que acontecia ‘intramuros.

A passagem pelo SAM[10] tornava o menor temido e marcado e a imprensa colaborou para construção de tal imagem. Ao passo que denunciava os abusos desenvolvidos na instituição destacava o grau de periculosidade dos “bandidos”. Essa prática, no entanto, colaborou para que o SAM viesse a ser extinto pouco tempo depois.  Esclarece-nos Sposati (2008) que, na gestão do SAM o Estado foi alvo de várias críticas por parte da sociedade. Esta reivindicava mudanças no trato com os menores, pois os relatos que se tinham referiam-se a maus tratos e subordinação da direção dessas instituições relacionadas a atitudes clientelistas.

Deste modo, os interessados pela causa utilizaram essa mesma imprensa para divulgar as notícias e pressionar o governo. Conforme afirma Volpi (2001), a Assembleia Geral das Nações Unidas (1959) aprovou a Declaração dos Direitos da Criança, acontecimento que se revestiu de grande significado na medida em que atribuía cidadania à criança, responsabilizando o Estado pelo seu bem-estar. Entretanto, o golpe militar de 1964 abortou, entre os muitos sonhos, o de modificar o tratamento à infância e adolescência. O objetivo de extinguir o SAM e gerar uma política que atendesse dignamente aos direitos infanto-juvenis foi sobreposta por uma Política Nacional de Bem- Estar do Menor (PNBEM)[11].

Os internatos continuaram funcionando sob nova versão e deram origem a uma rede nacional de Fundações de Bem- Estar do Menor (FEBEMs). A Funabem foi criada, portanto, sob os destroços do SAM. Vinculada ao Ministério da Justiça, com autonomia financeira e administrativa, a instituição possuía como objetivo principal a “transformação do modelo de atendimento carcerário e desumano em um novo modelo pautado num acolhimento terapêutico que visava a reintegração do menor à sociedade” (SPOSATI, 2008, p. 51). De tal modo, passou a estimular o desenvolvimento de programas que almejassem a integração do menor na comunidade mediante ações de assistência à família e até mesmo nos termos de Faleiros (2009), “colocação familiar em lares substitutos”.

Conforme afirma Sposati, a Funabem[12], ainda que tenha carregado consigo essas premissas, acabou se convergindo ao autoritarismo, visto que se configurou como um meio de controle social em nome da segurança nacional. Ademais, sem deixar em segundo plano o objetivo inicial da proposta. O sistema educativo proposto pelo Estado brasileiro na década de 60 e inicio de 70 caracteriza-se, portanto, por práticas coercitivas e violentas.

 A reformulação ocorrida no Código de Menores (1979) transformou-se na Lei nº 6.697. Apesar das modificações realizadas, o documento persistiu na legitimação da violação de direitos, ou seja, o menor continuou a ser concebido como aquele que estivesse fora dos padrões sociais estabelecidos, a partir de ações estatais de caráter punitivo e, extremamente, arbitrário. Vejamos que, enquanto o Código de 1927, consistia em instrumento de proteção e vigilância da infância e adolescência, o de 1979 foca no controle social dessa mesma categoria. O “menor” abandonado ou delinquente, objeto de vigilância do juiz, passou ao posto de menor em situação irregular objeto de medidas judiciais.

  1. CONCLUSÃO

Com o ressurgimento dos movimentos populares, cujo principal objetivo era lutar pela democratização do país, o regime ditatorial chegou ao fim. Incluso nesses movimentos estavam aqueles que batalhavam pela defesa dos direitos do “menor” e término do sistema que estigmatizava as crianças e adolescentes que por ele passava. A sociedade de forma expressiva desaprovava as ações desenvolvidas e relatava sua ineficiência, “o desrespeito à dignidade humana e aos direitos mais fundamentais” (VOLPI, 2001, p. 29).

Diante desse contexto, Volpi (idem) afirma que educadores se propuseram a sair das instituições e ir às ruas para conhecer, de fato, de onde vem esses meninos e meninas. Ao adentrar na realidade em que viviam notaram um contexto absolutamente diferente do “padrão”. Eles/as possuíam horários, valores, linguagens diferentes e outros padrões morais repelidos pela sociedade. Ao mesmo tempo em que rua era a casa deles/as, nela também estavam expostos e sujeitos ao tráfico de drogas e exploração sexual.

Dessa forma, surgem no Brasil iniciativas de atendimento aos meninos e meninas de rua que tomam uma nova forma e, devido a sua inovadora proposta passou a ser conhecida como Educação Social de Rua. Motivados pela pedagogia proposta por Paulo Freire avançou-se na discussão do atendimento que deveria ser dado àquelas crianças. No inicio da década de 1980, então, nasce o Projeto Alternativas de Atendimento aos Meninos e Meninas de Rua, com a finalidade de colocar em contato as diversas experiências espraiadas pelo país, promovendo, nessa perspectiva, uma troca de conhecimentos acerca do atendimento dado a esse público.

         No contexto de mobilização social vivenciado pelo Brasil na década de 1980, emerge um movimento que contribuiu significativamente para o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e protagonistas da sua própria história. A proposta do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR)[13] se diferenciava do tratamento dado a estas pessoas até então. Com o objetivo de tornar esses meninos e meninas visíveis perante a sociedade, de modo a considerar o que eles tinham a dizer sobre sua situação, o movimento se desenvolveu ao longo da década.

Partindo dessa conjuntura, conforme afirma Macêdo e Brito (1998), o MNMMR apresentou-se ao país na década de 80 como uma entidade civil sem fins lucrativos que, de forma autônoma, e composta por educadores, ativistas e colaboradores voluntários, lutavam pela construção e garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes. Portanto, com o desígnio de transformar jovens das camadas populares em sujeitos políticos capazes de opinar sobre suas vidas.

Ser ativo em situações que envolvem seus interesses expressa-se como fator de extrema relevância para desenvolvimento da cidadania desses sujeitos em situação de vulnerabilidade social. Ter a chance de serem ouvidos e uma lei que garanta seus direitos foram as principais premissas desenvolvidas pelo MNMMR, afim de que meninos e meninas de rua fossem reconhecidos como sujeitos em fase de desenvolvimento e, como tal, deveriam ter uma atenção especial. O resultado desse movimento fez emergir o Estatuto da Criança e do Adolescente no limiar da década de 1990.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Política Nacional de Assistência Social. Brasília: MDS/SNAS, 2004

FALEIROS, V. P. Infância e Processo Político no Brasil. In: A arte de Governar Crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. PILLOTI, F. & RIZZINI, I.(org) 2ª ed. São Paulo, Cortez, 2009.

MIRANDA, S. G. Criança e adolescente em situação de rua: políticas e práticas sócio-pedagógicas do poder público em Curitiba. Curitiba, 2005. 340 p. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Paraná.

MACÊDO, M. J. & BRITO, S. M. O. A luta pela cidadania dos meninos do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua: uma ideologia reconstrutora. Psicologia Reflexão e Crítica. vol.11 n.3 Porto Alegre 1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-79721998000300010&script=sci_arttext>. Acesso em: 07 de maio de 2012.

RESENDE, V. M. “Eu queria voltar a ser criança”: O discurso do protagonismo juvenil e a identificação de uma jovem protagonista em relação aos papéis desempenhados junto ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dlcv/enil/pdf/69_Viviane_MR.pdf.> Acesso  em: 07 de maio de 2012.

RIBEIRO, L. C. Cidade, Nação e Mercado: Gênese e evolução da questão urbana no Brasil In: Brasil um século de transformações. Sachs, I.; Wilheim, J.; Pinheiro, P. S.  São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

RIZZINI, I. O Século Perdido: raízes históricas das políticas públicas para infância no Brasil. 2ª ed São Paulo, Cortez, 2008.

SINGER, P. Evolução da Economia e da vinculação internacional In: Brasil um século de transformações. Sachs, I.; Wilheim, J.; Pinheiro, P. S.  São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

SILVA, R. Os Filhos do Governo: a formação da identidade criminosa em crianças órfãs e abandonadas. São Paulo, Ática, 1997.

VOLPI, M. Sem Liberdade, Sem Direitos: a privação da liberdade na percepção do adolescente. Cortez, São Paulo, 2001.

Idem. Adolescentes Privados de Liberdade: A Normativa Nacional e Internacional & Reflexões acerca da Responsabilidade Penal. Cortez/Fonacriad, São Paulo, 1997.

XAVIER, A.   As ações, lutas, estratégias e desafios do Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente no Espírito Santo. Disponível em:  <http://web3.ufes.br/ppgps/sites/web3.ufes.br.ppgps/files/Aracely%20Xavier.pdf.> Acesso em: 07 de maio de 2012.



[1] Por Monarquia entende-se um sistema de governo em que o monarca, ou rei, governa um país e a transmissão do poder ocorre de forma hereditária.

[2] República compreende o significado de “coisa pública”. Consiste em uma forma de governo em que o chefe do Estado é eleito pelos cidadãos ou pelos seus representantes. Entretanto, a república em questão refere-se à chamada República Velha, a qual foi marcada pelo domínio político das elites agrárias mineiras, paulistas e cariocas. Para maiores detalhes sobre esses e outros modos de governo acessar www.suapesquisa.com.

[3] A Roda dos Expostos consistia em um artefato de madeira presente nas Santas Casas de Misericórdia onde a criança era depositada. Ao girar o objeto a criança era transportada para dentro da instituição, sem que ninguém soubesse quem a depositou. Para maiores informações sobre a Roda dos Expostos consultar Rizzini, 2008.

[4] A autora utiliza esse conceito para designar o “menor” envolvido na criminalidade e corrompido por esta.

[5] José Murilo de Carvalho utiliza o termo estadania para se referir à ação paternalista do Estado em contraposição a participação de cidadãos ativos no processo político. (Rizzini, 2008, p. 29)

[6] Nomenclatura utilizada por Roberto da Silva (1997) para abordar os sujeitos de sua pesquisa nascidos entre 1940 e 1968, os quais ficaram grande parte de sua infância e juventude institucionalizados e sob tutela do estado no período do governo militar.

[7] José Cândido de Albuquerque Mello Mattos nasceu em Salvador-BA e formou-se em direito em Recife-PE. Ele foi o primeiro juiz de menores do Brasil e da América Latina e o criador do primeiro Código de Menores brasileiro. (RIZZINI, 2008, p. 77)

[8] Diante da postura do Código de Mello Mattos, o juiz de menores Allyrio Cavalieri o nomeou de “Doutrina da Situação Irregular”, pois eliminou-se a variedadede categorias existentes, tais como abandonado, delinquente, transviado etc., para introduzir uma única categoria, a do menor em situação irregular. Sendo que o artigo 56 do Código assegurava que no prazo de trinta dias, contados da entrada em juízo, o menor fugitivo ou perdido que estivesse em situação irregular e que não fosse procurado por seu responsável o juiz o declararia abandonado e dar-lhe-ia um destino, ou seja, ele seria internado. Contudo, os artigos 16, 17 e 18 garantiam a necessidade do “estudo de caso”. Este compreende o estudo social, o estudo psicopedagógico e o exame médico como medidas anteriores à sentença de internação, devendo ser realizadas no prazo de três meses a partir do recebimento da criança. (RIZZINI, 2008)

[9] Antes da instauração de uma legislação específica para os menores a noção de discernimento constituía o alicerce da prática jurídica. As penas eram aplicadas a indivíduos menores de idade levando em consideração o seu grau de consciência em relação aos crimes cometidos. No Brasil, a primeira lei penal do Império, o Código Criminal de 1830, estabelecia que só não fossem punidos os menores que possuíssem menos de quatorze anos. O primeiro Código Penal da República, redigido em 1890, declarava não criminosos os menores de nove anos completos. E assim se seguiu. Em diferentes períodos históricos foram fixadas determinadas faixas etárias para aplicação da noção de discernimento. (VOLPI, 2001)

[10] O conjunto de instituições de cunho moralizador integradas, a partir dos anos de 1940, passou a constituir o SAM, o qual veio sistematizar ações que até o momento ainda encontrava-se descentralizada em instituições que atuavam com desígnio filantrópico. As práticas de encarceramento, afastamento de suas famílias, castigos corporais e ensinamentos de valores morais e cívicos faziam parte do cotidiano dos menores presentes nesses espaços. No imaginário popular o SAM tinha se transformado em uma instituição para prisão de menores transviados, em uma escola do crime, afirma Rizzini (2008).

[11] De acordo com Silva (1997) Provocada no cerne da Escola Superior de Guerra (ESG), a PNBEM reproduzia uma prática de repressão que deu prosseguimento ao tratamento desumano de que os menores eram vítimas.

[12] De acordo com Sposati (2008) Com a criação do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS), em 1977, a Funabem passou a integrar a Previdência Social brasileira e a Secretaria de Assistência Social (SAS). Com essa inserção os trabalhos das Funabem foram ampliados, de modo que passou a ser a instituição que dita a política, e as instituições estaduais denominadas de Febems ficam subordinadas a ela e executam a política nos estados.

[13] O conceito de ‘meninos/as de rua’ adotado é amplo: ultrapassa o senso comum de que pertencem a essa categoria apenas crianças e jovens que tiram da rua seu sustento, para abarcar também crianças e jovens de famílias sócio-economicamente excluídas. (RESENDE, 2008, p. 3)