INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS EM DECORRÊNCIA DE ABANDONO AFETIVO NA FILIAÇAO

Lorena Magalhães Brandão[1]

 

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO 2 EVOLUÇAO HISTÓRICA DA FILIAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO 2.1 A consagração do principio da paternidade responsável 3 A RESPONSABILIDADE CIVIL 3.1 Ato ilícito 3.2 Nexo de causalidade 3.3 Culpa 3.4 Dano 4. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS EM DECORRÊNCIA DE ABANDONO AFETIVO 5 CONCLUSÃO

 

RESUMO: A sociedade atual consagrou o princípio da paternidade responsável, pelo qual o cuidado ganhou um valor jurídico relevante, representando um dos principais deveres inerente aos pais e mães na criação da prole. Nota-se que foi atribuído aos pais, o dever de criação, atenção, educação e acompanhamento de seus filhos, os quais compreendem aspectos objetivos e perceptíveis quando da apreciação pelo Poder Judiciário. Desse modo, verificada a imposição legal de uma conduta comissiva aos pais, resta evidente que sua abstenção resulta no típico enquadramento ao conceito de ato ilícito por omissão, um dos pressupostos à existência da responsabilidade civil. A formação do indivíduo é um processo complexo, principalmente quando se trata de uma criança que não alcançou ainda o discernimento necessário para compreender algumas circunstâncias da vida em sociedade. O abandono afetivo, nestes casos, ganha uma conotação muito mais ampla, especialmente ante a gravidade dos danos que ele pode gerar. Por outro lado, nota-se que a penalidade da perda do poder de família estabelecida pelo Código Civil de 2002 não tem o condão reparatório próprio do Direito das Obrigações e com ele não se confunde.

PALAVRAS-CHAVE: DEVER DE CUIDADO, ABANDONO AFETIVO e REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS.

 

ABSTRACT: SUMMARY: The current society enshrined the principle of responsible parenthood, whereby care gained relevant legal value, representing one of the main duties inherent to parents in the creation of their offspring. Note that the love, subjective aspect, is not what was given to the parents, but only the duty of creation, care, education and monitoring of their children, which include objective and noticeable aspects when assessing the Judiciary. Thus verified the legal obligation of a commissive conduct for the parents, it is evident that its abstention results in the typical framing of the concept of tort by default, one of the assumptions of the existence of civil responsibility. Nobody grows just physically. The formation of a individual’s intellect is a process, as a rule, much more complex, especially when it comes to a child who has not yet reached the necessary insight to understand some circumstances of life in society. The emotional neglect in these cases, gains a much wider connotation, especially in view of the severity of the damage it can cause. Moreover, it can be noticed that the penalty of the loss of family power established by Civil Code of 2002 has not the reparatory ability inherent to the Law of Obligations and does not confuses with it.

KEYWORDS: DUTY OF CARE, AFFECTIVE ABANDONMENT and MORAL DAMAGE REPAIR.

 

1 INTRODUÇÃO

 

Nota-se que a família do século XXI é tipicamente multifacetada e, hodiernamente, vivem-se novas formas de interações sociais, em que as famílias são desfeitas e reconstruídas, sendo o fator do afeto, mais do que convenções, responsável por unir seus membros.

Apesar das diferentes composições familiares, uma coisa que deve permanecer intacta é o respeito à dignidade dos filhos, quando se encontram em uma situação peculiar de desenvolvimento e não possuem, por eles próprios, meios de se defenderem dos empecilhos vivenciados na sociedade. Para tanto, o ordenamento jurídico determina como a principal função dos pais a proteção e educação de seus filhos.

A relação entre pai/mãe e o seu filho não se confunde com a relação matrimonial, o que acarreta na permanência dos deveres paternais após uma eventual dissolução do casamento. Ocorre que não é incomum encontrar filhos abandonados afetivamente após o fim do relacionamento de seus pais.

Nesta situação, o filho acaba sendo extremamente prejudicado e sofrendo as consequências de um fato que não deu causa e tão pouco teve qualquer ingerência. É nesse contexto, que se faz necessário um estudo acerca da possibilidade de responsabilização dos pais em decorrência de abandono afetivo, em alguns casos.

O abandono afetivo é um assunto extremante complexo que remete a um estudo aprofundado para que possa ser compreendido desde sua ocorrência até suas consequências. Necessário se faz analisar os aspectos legais, doutrinários e jurisprudenciais, a fim de promover uma completa análise deste assunto tão polêmico.

 

2 A EVOLUÇAO HISTÓRICA DA FILIAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

 

Segundo Sílvio Rodrigues (2002), a filiação é a ligação existente entre pais e filhos, em linha reta e em primeiro grau, a qual surge através da consanguinidade, da adoção ou da sócio afetividade, vínculo que ganhou maior atenção atualmente. De forma clara, percebe-se que o conceito adotado pelo autor não se remete exclusivamente à consanguinidade como fator determinante para a existência da filiação. Todavia, nem sempre foi assim.

As Ordenações Portuguesas que vigoraram antes do Código Civil de 1916 tratavam a filiação como “uma espécie de favor concedido aos filhos e um meio, oferecido aos pais, de exonerar a sua consciência e de melhorar a sorte dos inocentes frutos de seus erros” (Ordenações Filipinas, Liv. II, Tít. XXXV, § 12 apud FARIAS, 2010, p. 544). O núcleo familiar tinha como pilares os valores patrimoniais e patriarcais, em que os bens da família deveriam ser passados de pai para filho, na medida de sua consanguinidade, sendo vedada qualquer interferência extraconjugal.

O Código de 1916 (BRASIL, Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916) não alterou de maneira substancial a tratativa da matéria em análise e permaneceu a promover uma diferenciação legal entre os filhos, classificando-os como legítimos, ilegítimos ou adotivos.

Os primeiros eram aqueles frutos do matrimonio, considerados como tal quando gerados 180 dias após a realização do matrimonio, durante o casamento ou 300 dias antes da dissolução do casamento. Já os ilegítimos eram os filhos gerados fora do período supramencionado, podendo ser subclassificados em naturais (quando seus genitores fossem indivíduos sem qualquer empecilho de realizar o matrimônio e que não tivessem relação de parentesco) ou espúrios (filhos frutos de relações incestuosas ou de adultério, os quais a legislação, independente da vontade dos pais, proibia o reconhecimento). Por fim, havia os filhos adotivos, os quais tinham seus direitos minorados em relação aos gerados dentro de um matrimonio.

O Código Civil de 1916 trazia, portanto ideias de desigualdade entre os filhos, fazendo com que os direitos dos filhos ilegítimos fossem restritos em relação aos filhos fruto de um casamento. Filhos adotivos também eram tratados de forma diferente juridicamente, tendo seus direitos minorados em relação aos filhos considerados legítimos[2].

A filiação foi indiscutivelmente um dos temas que sofreu grandes mudanças após a Constituição Cidadã de 1988, a qual trouxe o princípio da isonomia entre os filhos no art. 227[3], §6º, a saber: “§6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. (BRASIL. Constituição, 1988)

Verifica-se, portanto, uma mudança na forma de tratamento da filiação, a fim de vedar a distinção entre os filhos. Ao contrário, qualquer dispositivo que trate de maneira desigual os filhos, seja no âmbito patrimonial quanto no social, será considerado inconstitucional e repelido. Trata-se, pois, de uma norma que visa preservar, em última análise, a dignidade da pessoa humana, a qual é um direito fundamental de aspecto generalizado, evitando que os descendentes sejam punidos por atitudes ou estigmas da sociedade, sob os quais não tiveram nenhuma ingerência.

Assim, os filhos adotivos, por exemplo, antes tratados de forma diferenciada, agora passam a ocupar a posse do estado de filho de maneira plena e a própria utilização do termo “ilegítimo” ou “legitimo” passou a ser repelida, a fim de não causar qualquer discriminação social ou jurídica, inclusive no campo sucessório.

Nesse sentido, o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que: "o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça".

2.1 A consagração do principio da paternidade responsável

Hoje já se pode falar em uma nova visão sobre a relação paterno-filial, em que se adotou o aspecto afetivo como um fator essencial. O princípio da paternidade responsável ganhou maior ênfase no atual sistema jurídico e atribui atualmente aos pais uma série de direitos-deveres, a fim de garantir o desenvolvimento saudável do ser que eles espontaneamente resolveram conceber.

A Constituição estabelece no caput do artigo 226, parágrafo 7º:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas (BRASIL. Constituição, 1988)

Entre tais direitos-deveres pode-se destacar o de guarda, compreendido como o convívio do filho com seus pais e irmãos, sendo que o abandono do filho melhor configura ilícito penal, consoante o art. 138, CP[4] (BRASIL, Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940). Por conseguinte, decorre da guarda o poder de vigilância, pelo qual os pais devem proteger seus filhos de perigos e evitar que eles causem danos a terceiros.

Os pais também devem promover a educação dos filhos em seu prisma mais amplo, além da segurança, saúde, alimentos (garantia do mínimo vital à subsistência do filho, resultante da proporção entre a necessidade do alimentando e os recursos do alimentante), auxílio, assistência, habitação, entre outros.

O artigo 1.634[5] do Código Civil de 2002 (BRASIL, Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002) dispõe sobre deveres que a paternidade traz ao individuo, estabelecendo obrigações como a de educar, criar e assistir os filhos menores, das quais se pode extrair o dever conviver com o filho de forma que ele tenha um crescimento adequado. Os artigos 3, 4 e 5 do Estatuto da Criança e do Adolescente também falam do dever da família em amparar a criança não só financeiramente, mas também da o direito de crescer psicologicamente de forma sadia, com cuidado necessário.

Esse direito da criança pode ser visto na Lei 8.069/90 (BRASIL, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990) em seu: “Art. 5º: Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.

Os danos causados pela falta de convívio familiar são reais e podem ser devastadores para o crescimento psicológico de uma criança. A ausência do cuidado, do afeto, a cada dia podem trazer graves consequências, mas no direito é dificil provar esses danos que muitas vezes não são visíveis por fazer parte do interior de quem sofre.

O sistema jurídico requer do ofendido provas claras dos fatos concretos, por isso surge uma dificuldade de se provar a existência do dano moral gerado ao filho por causa do abandono. Para demonstrar o quanto o abandono pode trazer problemas ao desenvolvimento da personalidade do indivíduo é necessário muitas vezes do auxilio de laudos periciais particulares e exames psicológicos.

“[...] o tempo um dos elementos determinantes na relação de filiação traz a consolidação da ausência da figura paterna, o que influencia sobremaneira a formação da personalidade dos filhos. Essa questão possui o condão de deixar varias marcas, muitas vezes incuráveis. A falta de um pai, além da infidelidade que lhe é própria, gera dificuldade em se assumir projetos de vida, tornando-se os filhos pessoas inseguras e com sentimento de rejeição” (ROSA; DIMAS; FREITAS, 2012, p. 115)

Nesse ínterim, é sempre bom registrar que tanto o pai quanto a mãe são igualmente responsáveis pelo exercício dos poderes-deveres acima mencionados, independentemente de estarem ou não na constância do matrimônio e dos motivos que os levaram a uma eventual separação. Havendo morte de um dos pais, o outro ficará responsável pelo cumprimento dos poderes-deveres.  No caso de divergência entre a vontade dos pais, o Poder Judiciário deverá ser acionado a decidir em conformidade com o princípio do melhor interesse do filho.

O poder familiar pode, todavia, ser extinto ou suspenso em situações previstas em lei. A suspensão pode ser revertida caso desapareça as hipóteses que deram causa a ela, ao contrário da extinção que tem caráter definitivo.

Segundo o artigo 1.635, do Código Civil de 2002 (BRASIL, Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002), extingue-se o poder familiar: “ I - pela morte dos pais ou do filho; II - pela emancipação, nos termos do art. 5o, parágrafo único; III - pela maioridade; IV - pela adoção; V - por decisão judicial, na forma do artigo 1.638[6]”.

Sob esse aspecto, pertinentes são as palavras da Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 1159242 - SP (2009/0193701-9 - 10/05/2012):

Nota-se, contudo, que a perda do pátrio poder não suprime, nem afasta, a possibilidade de indenizações ou compensações, porque tem como objetivo primário resguardar a integridade do menor, ofertando-lhe, por outros meios, a criação e educação negada pelos genitores, e nunca compensar os prejuízos advindos do malcuidado recebido pelos filhos. (STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 - SP (2009/0193701-9), RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI, julgado em 24/04/2012)

Já o artigo 1.637, do mesmo dispositivo legal, enumera as hipóteses de suspensão do poder familiar, in verbis:

Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha (BRASIL. Código Civil, 2002)

Além dessas consequências para o descumprimento das obrigações familiares, deve-se atentar que há graves danos causados aos filhos, o que suscita, atualmente, a discussão acerca de eventual responsabilidade dos genitores. Em específico, o abandono afetivo, decorrente da falta de convívio, atenção, entre outros, pode causar danos irreversíveis ao desenvolvimento do filho. Desse modo, evidente que a paternidade responsável tende a ser valorizada cada vez mais, ante seu caráter preventivo. Todavia, há de ser analisada criteriosamente as hipóteses de reparação/indenização ocorridas quando há o dano causado pelo abandono afetivo, aspecto que repercute na disciplina da responsabilidade civil.

3 A RESPONSABILIDADE CIVIL

Nos primórdios, quando ainda não prevalecia o Direito, predominava na sociedade a vingança privada, pela qual o dano ganhava destaque em prol do fator culpa. Nota-se que as pessoas tendiam a reagir de maneira imediata a qualquer atitude que lhes prejudicarem. Em um momento um pouco mais avançado, a pena de talião determinou a célebre solução comum a todos: “olho por olho, dente por dente”.

Decorrido um pouco mais de tempo, o Estado passou a substituir a vontade das partes e representou uma autoridade soberana, proibindo as pessoas a fazerem justiça com as próprias mãos.

Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2010) somente com o direito traçado pelos romanos é que foi feita a distinção entre a “pena” e “reparação”, quando a responsabilidade civil se dissociou da penal. Na Lei Aquília, traçou-se o princípio “In lege Aquilia et levíssima culpa venit” que significa que até a ofensa mais leve deve ser reparada. Já posteriormente o direito aperfeiçoou a ideia de separação das responsabilidades: a civil diante da vítima, a penal perante o Estado e a contratual na hipótese de inadimplemento de obrigações.

Tal diretriz foi incorporada no Código de Napoleão, o qual traçou a responsabilidade civil em razão da culpa, servindo de guia para os demais sistemas jurídicos de todo o mundo.

No Brasil, o antigo Código de 1916 prestigiava a responsabilidade subjetiva de maneira substancial, partindo do pressuposto geral que ninguém pode ocasionar dano ao outro. Havia, todavia, por meio de leis especiais, a consagração simultânea da responsabilidade objetiva. Por sua vez, o Código Civil de 2002 aproximou-se intimamente da responsabilidade objetiva, mas permaneceu com a cláusula geral da responsabilidade subjetiva no artigo 927 combinado com o artigo 186.

Urge salientar que não há qualquer óbice para a aplicação das regras do Direito das Obrigações no âmbito das relações familiares, em especial naquelas decorrentes do descumprimento dos deveres dos pais com os filhos. Deve-se, todavia, atentar para o fato de que predomina nas relações familiares um alto grau de subjetividade, em que os sentimentos de mágoa e amor ganham ênfase e não será o mero dissabor decorrente da vida em cotidiano que ensejará a responsabilidade civil.

Dispõe o artigo 927, do Código Civil de 2002, que: “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (BRASIL, Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002). Extraem-se desse dispositivo os pressupostos da responsabilidade civil, os quais serão minunciosamente analisados.

3.1 Ato ilícito

O artigo 186 do Código Civil de 2002 traz a definição legal de ato ilícito, a saber: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL, Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002). Nota-se que este dispositivo se aproximou bastante do artigo 159 do antigo Código de 1916 (BRASIL, Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916), apenas alterando a última parte, anteriormente expressada como “fica obrigado a reparar o dano”.

Entende-se o ato ilícito, então, como a ação ou omissão contrária ao Direito. Alguns autores preferem falar em conduta, uma vez que esta é gênero e reflete tanto a ação (comissão, prática de um comportamento), quanto a omissão (abstenção a um comportamento que deveria praticar em razão da lei, negócio jurídico ou ato do próprio sujeito).

3.2 Culpa

Antes de adentrar no aspecto da culpa, mister se faz realizar uma diferenciação entre dolo e culpa, uma vez que ambos partem de uma conduta voluntária que viola a lei. Enquanto o dolo significa a infração consciente ao direito, compreendido como a vontade inicial de causar o dano, na culpa tem-se o dano causado de modo acidental. Na responsabilidade civil subjetiva, importa analisar a presença da culpa, uma vez que se trata de um elemento essencial para sua configuração.

Nos dizeres de Cavalieri Filho: “Culpa é a violação de dever objetivo de cuidado, que o agente podia conhecer e observar, ou, como querem os outros, a omissão de diligência exigível” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 32).

Por conseguinte, tem-se que o dever objetivo de cuidado significa agir de maneira cautelosa, determinada pelo Direito, de forma a não prejudicar terceiros. Fernando Pessoa (PESSOA, 1999, aput CAVALIERI FILHO, 2010, p. 33) aponta dois momentos cruciais na formação do agente: o primeiro aquele correspondente à formação da consciência, do intelecto, e o segundo aquele que visa a prática do ato em si, se observada as diligências necessárias adotadas por um homem médio. Nesse ponto, é importante analisar a capacidade da pessoa, seja física ou mental, não devendo um homem desempenhar uma função que não tenha capacidade para tal. Por outro lado, se ainda sim, desejar desempenhá-la, deve se resguardar de cuidados extras, a fim de evitar o dano à terceiro.

Verifica-se, assim, que a culpa nada mais é do que a prática de um ato imperfeito que prejudica um terceiro independentemente da vontade do agente, a qual inicialmente era lícita. Este resultado deve ser previsto (aquela conduta imaginada pelo agente, mas que ele crê que não irá ocorrer) ou previsível (o sujeito não imagina o resultado danoso, mas deveria imaginar em razão da possibilidade de ocorrência).

A falta de cuidado pode se manifestar por meio de imperícia (falta de capacidade técnica para exercer a conduta e mesmo assim a pratica), imprudência (prática de um comportamento comissivo, positivo, que causa dano a outro) e a negligência (prática omissiva que causa dano a um terceiro).

Outro aspecto relevante é a questão da dificuldade probatória da culpa, pela qual em alguns casos os juízes vêm admitindo a culpa “in re ipsa”, isto é, aquela presumida que decorre do próprio fato, ante a nítida existência da falta de cuidado. Quando isso ocorre, há praticamente a existência da inversão do ônus da prova, uma vez que o próprio fato já aponta para a prova da culpa.

Ao contrário do Direito Penal, em se tratando de responsabilidade civil não importa os diferentes graus de culpa, se levíssima, leve, ou grave, para a existência do direito à reparação. Todavia, urge salientar que o parágrafo único do artigo 944[7], do Código Civil de 2002, autoriza o aplicador do direito a amenizar, equitativamente, o “quantum” indenizatório quando houver grande desproporção entre o dano e a gravidade da culpa.

Situação diferente é a culpa concorrente, quando a vítima também contribui para o resultado danoso. Neste caso, deve-se atender ao preceito do artigo 945, do Código Civil de 2002, a saber: “Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano” (BRASIL. Código Civil, 2002).

3.3 Nexo de causalidade

O nexo de causalidade é a ligação existente entre o comportamento ilícito do agente e o resultado danoso. Na prática, o aplicador do Direito deverá se questionar se retirando aquele fato, haveria realmente aquele resultado danoso. Sob esse prisma, devem-se eliminar os acontecimentos que se revelarem sem importância para dar causa àquele dano.

Com efeito, o vigente Código Civil estabeleceu no artigo 403 que: “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual” (BRASIL. Código Civil, 2002).

Com isso, Carlos Roberto Gonçalves (2010) e tantos outros defendem que houve a consagração da teoria dos danos diretos e imediatos no âmbito civil do sistema jurídico brasileiro. Oportuna suas palavras: “Das várias teorias sobre o nexo causal, o nosso Código adotou, indiscutivelmente, a do dano direto e imediato (...)”. E continua: “Não é, portanto, indenizável o chamado “dano remoto”, que seria a consequência “indireta” do inadimplemento, envolvendo lucros cessantes para cuja caracterização tivessem de concorrer outros fatores”.

3.4 Dano

O dano é um dos elementos indispensáveis para a caracterização da responsabilidade, sem o qual não há no que se falar em qualquer dever de reparação/indenização. Desse modo, pode-se dizer claramente que no âmbito do Direito Civil a mera tentativa, sem a consumação de qualquer prejuízo, não enseja a condenação de um sujeito, ainda que este tenha atuado de modo doloso.

Isto é assim, porque a condenação de um indivíduo a pagar determinada quantia a outrem sem que este tenha lhe causado qualquer abalo corresponderia à típica concretização de enriquecimento sem causa, uma vez que o valor monetário recebido não estaria alcançando a função de ressarcimento a uma ofensa.

 De um modo geral, pode-se considerar o dano como uma violação a um bem que seja tutelado juridicamente. Nesse sentido, as palavras de Cavalieri:

(...). Conceitua-se, então, o dano como sendo a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja a sua natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade etc. Em suma, dano é lesão de um bem jurídico, tanto patrimonial como moral, vindo daí a conhecida divisão do dano em patrimonial e moral" (CAVALIERI F.º, 2005, p. 95-96).

Trata-se, pois, da concretização da proibição de o ser humano a causar dano a outro. Jorge Pessoa (apud CHAMONE, 2008, p. 1) elenca, ainda, três elementos indispensáveis para que o dano seja indenizável: alienidade (que o dano tenha sido gerado por um terceiro), certeza (o dano poderá ser duvidoso) e o mínimo de gravame (o prejuízo irrisório não deve ser indenizado). Em especial, sobre este último critério:

A lei não afirma expressamente que o prejuízo, para ser reparável, tenha de apresentar um mínimo de gravidade ou valor, mas tal conclusão é imposta pelo bom-senso e até pelo princípio da boa-fé: a exigência da reparação de um desses prejuízos [mínimos] só poderia explicar-se pelo propósito de vexar o lesante e, como tal, não mereceria a tutela do direito. Sendo a responsabilidade civil uma obrigação, pode invocar-se, em abono desta tese, a regra do n.º 2 do artigo 298.º, [do Código Civil Português] segundo a qual a prestação deve corresponder a um interesse do credor digno de protecção legal (Pessoa Jorge, 1999, p. 387-388 apud CHAMONE, 2008, p.1).

Como reflexo disso, tem-se que o mero dissabor não ensejará o direito a indenização, como já decidiu o Colendo Superior Tribunal de Justiça em reiteradas decisões.

Dano moral é a lesão não patrimonial ligada aos direitos da personalidade, tais como a honra, imagem, etc. É comum neste tipo de caso, a ocorrência de um sentimento de humilhação, sofrimento, dor ou angustia na vítima, porém é importante destacar que o dano moral não se confunde com o mero dissabor resultante da vida em sociedade. Dessa forma, um simples desconforto emocional que não seja realmente grave não deve ser indenizado.

A diferença entre direito patrimonial e extrapatrimonial é baseada na ideia de possível valoração do bem violado. No caso de dano aos direitos patrimoniais existe a possibilidade de verificar o valor monetário do bem como, por exemplo, quando alguém quebra uma lanterna de um carro e é possível calcular o valor do prejuízo causado mediante uma simples pesquisa de valores no mercado. Em contrapartida, o dano extrapatrimonial é a violação a bens que não podem ser monetarizados como, por exemplo, no caso em que uma mãe perde um filho em um atropelamento por imprudência de um cidadão alcoolizado, o que gera um dano psicológico a essa mãe que não pode ser valorado ante a ausência de um valor no mercado para esse sentimento de dor. Eis os chamados danos morais.

Por se tratarem de bens não valoráveis como intimidade, honra e dignidade, é difícil mensurar o valor a ser reparado em função dos danos morais, cabendo ao Poder Judiciário determinar, ante as circunstâncias especiais do caso concreto, o quantum indenizatório, já que a Constituição de 1988 não traz um critério definido pronto para essa valoração.

Com isso, ante a falta de um valor numérico especifico, os tribunais brasileiros passaram a adotar os princípios gerais da proporcionalidade e razoabilidade, na busca por uma quantificação mais equânime possível, a fim de alcançar o caráter reparatório.

Maria Helena Diniz (apud GONÇALVES, 2010, p. 403) ainda acrescenta alguns outros importantes critérios a serem observados no processo de quantificação do dano moral, dentre os quais se destacam: a) evitar a arbitragem de valores meramente representativos ou que causem a obtenção de quantias exacerbadas, b) observar a natureza, gravidade e extensão da lesão, c) a vantagem aferida, a capacidade financeira do lesante e as suas condutas posteriores, d) a qualidade da prova do dano, e) as características especificas do lesado relacionadas com o dano, f) analisar precedentes, g) buscar a objetividade e equidade.

Com efeito, nem sempre o instituto do dano moral foi aceito pela jurisprudência majoritária brasileira, a ponto de garantir a efetiva reparação por um eventual dano sofrido. Ao longo do tempo, via-se que os juízes tinham um repúdio ao instituto do dano moral, ante a impossibilidade de se obter a exata quantificação do dano. Por outro lado, a doutrina já apresentava uma posição vanguardista e coadunava com o direito comparado, a fim de tutelar essa situação tão própria.

O reconhecimento jurídico do instituto do dano moral, de forma mais generalizada, foi uma conquista do atual ordenamento jurídico brasileiro através da Constituição de 1988, especificamente no artigo 5º[8], incisos “V” e “X”, os quais preveêm a reparação a bens imateriais juridicamente tutelados e aos direitos da personalidade. No âmbito civil, o Código de 2002 dispôs no artigo 186 que a consequência do dano, mesmo exclusivamente moral, é considerado ato ilícito, portanto sujeito a reparação.

Atualmente, já não há mais qualquer dúvida acerca da aplicação do instituto do dano moral, podendo a pessoa jurídica, inclusive, pleitear a reparação, consoante o verbete sumular 227[9], do STJ.

Para que o dano moral gere a responsabilidade civil é necessária a presença de alguns requisitos cumulativos como: a existência de um dano, a ocorrência de um ato ilícito, a culpa do autor (não se pode cobrar atenção de um pai que não sabia da existência de um filho) e o nexo causal entre o dano e o ato ilícito.

4 INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS EM DECORRÊNCIA DE ABANDONO AFETIVO

Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2010) o Código Civil dá aos pais o poder de família, o qual os obriga a guarda e o convívio dos filhos, independente de sua origem, priorizando assim a dignidade da pessoa humana. Não apenas se resume ao sustento financeiro, mas sim a obrigação de criar o filho de forma que ele cresça tendo suprido todas as necessidades para seu desenvolvimento adequado, inclusive as psicológicas, sendo o afeto e o convívio dos pais importantes para isso. Portanto, a falta de convívio, sem justa causa, pode causar um prejuízo, um dano a criança ou adolescente, gerando assim responsabilidade civil.

Carlos Roberto Gonçalves (2010) explicita que as relações entre pais e filhos transpassam as barreiras consanguíneas e financeiras, abarcando também questões de aspectos emocionais, como o amparo, a proteção, a educação e a orientação para a formação do indivíduo como um todo. Portanto o descumprimento desse direito de convívio pode gerar para o filho o direito a compensação por danos morais, visto que a falta de afeto e atenção, correspondem a um comportamento ilícito omissivo, contrário ao Direito, podendo gerar graves problemas psicológicos na formação do filho.

Tais hipóteses de responsabilização por dano moral em decorrência de abandono de afeto na filiação devem ser interpretadas com muito cuidado no caso em concreto, a fim de só ser considerado como tal se for um dano, como no caso da falta do convívio e afeto gerar um trauma ao filho. O simples fato de causar dor ou aborrecimento é um estado de espirito e é relativo para cada pessoa. Para que exista a reparação por um dano moral é necessário um prejuízo significativo na vida do filho causado pela falta de cuidado, pelo desamparo.

Não se está com isso querendo obrigar os pais a amar sua prole, mas proteger o direito de cuidado do filho previsto constitucionalmente, no Código Civil de 2002 e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Trata-se, na verdade, de uma resposta da sociedade a um comportamento tipo como reprovável na esfera jurídica e, por muitos, no meio social.

O amor, por sua vez, diferencia-se do cuidado, na medida em que este se relaciona com o amparo definido em lei e necessário para o infante se desenvolver, ao passo que aquele corresponde à motivação, a qual efetivamente apresenta um subjetivismo impróprio de sofrer uma determinação jurídica. Desse modo, nota-se que o dever de cuidado apresenta elementos objetivos passíveis de serem percebidos no caso concreto, ao revés do amor.  

Tão pouco se pretende monetarizar o afeto, até mesmo porque, como tido, não é o amor propriamente tido que está a ser analisado, mas sim o dever de cuidado dos pais, o qual é complexo e envolve muitos aspectos, como o convívio, a educação, a inserção social do filho, entre outros.

Nesse aspecto, as palavras de Rodrigo da Cunha Pereira:

Se um pai ou uma mãe não quiserem dar atenção, carinho e afeto àqueles que trouxeram ao mundo, ninguém pode obrigá-los, mas à sociedade cumpre o papel solidário de lhes dizer, de alguma forma, que isso não está certo e que tal atitude pode comprometer a formação e o caráter dessas pessoas abandonadas, afetivamente. Afinal, eles são os responsáveis pelos filhos e isto constitui um dever dos pais e um direito dos filhos. O descumprimento dessas obrigações significa violação ao direito do filho (PEREIRA, 2008, p.1)

Nesse contexto de valorização da paternidade responsável, podem-se destacar algumas decisões jurisprudências, como a que ocorreu em setembro de 2003 quando o Juiz Mario Romano Maggioni, titular da 2ª Vara da Comarca de Capão da Canoa, situada no litoral do Rio Grande do Sul, decidiu por condenar o pai que, apesar de pagar corretamente as necessidades financeiras do filho, não mantinha uma convivência adequada com ele e, por conta disso, foi obrigado a pagar um montante equivalente a 200 salários mínimos.

A motivação do Juiz Mario foi que a falta de uma relação mais próxima com o pai traria danos ao desenvolvimento do filho, uma vez que é dever dos pais educar seus filhos, sendo a educação compreendida não só como a possibilidade de frequentar uma escola, mas, além disso, como convivência familiar, afeto, a atenção, o carinho, entre outros.

Outro caso de suma relevância para a discussão sobre a elevação do afeto como uma obrigação, um dever nas relações de filiação, foi o caso de o, menor púbere, Alexandre Fortes que teve sua ação julgada improcedente pelo juiz de primeiro grau, mas alcançou êxito em sede de recurso, quando o Tribunal de Minas Gerais decidiu a favor da indenização por danos imateriais em decorrência do abandono afetivo. Após ter rompido o matrimônio com a mãe da criança, a relação paterna-filial passou a ser apenas financeira, não mais existindo qualquer contato pessoal entre o pai e filho.

O tribunal julgou a favor enxergando que a falta do convívio com o pai fere a dignidade da pessoa humana que é um principio amparado pela legislação. Apesar da decisão positiva para o autor no Tribunal, após ser julgado pelo STJ, em 2005 a decisão foi modificada, não concedendo ao autor indenização por danos morais, por não considerar o abandono um ilícito.

O Ministro relator Fernando Gonçalves fundamentou sua decisão negativa ao autor o fato que a decisão favorável iria tornar a desunião ainda maior entre pai e filho, a ponto de afastá-los de maneira definitiva. Argumentou, ainda, que as funções do pai já estariam sendo cumpridas já que esse pai esteve em dia com sua pensão alimentícia e, portanto, não há no que se falar em reparação, já que o filho já estaria sendo cuidado financeiramente dentro das normas, não constituindo o abandono meramente afetivo um ato ilícito. Além disso, o Ministro ainda falou que não teria fundamento algum obrigar alguém a amar o outro.

Seguindo o voto relator, o Ministro Aldir Passarinho motivou a sua decisão no fato da consequência para o abando afetivo ser a perda do poder de família e não o que foi pedido pelo autor (danos morais), existindo apenas um voto favorável para o autor em questão.

Foi vencido o Ministro Barros Monteiro, que alegou que a desconstituição do poder familiar é uma consequência do direito de família que se diferencia da reparação civil, a qual foi pleiteada pelo autor. Por consequência verificado o dano nos autos, necessária indenização por dano moral.

Neste diapasão, é importante relembrar algumas considerações importantes que já foram exaustivamente discutidas neste artigo. O dever de cuidado encontra amparo jurídico subsumido nas obrigações paternas e maternas, bem como no princípio da paternidade responsável. Nessa linha, viu-se que o artigo 226 da Lei Matter não se resume ao amparo material, uma vez que não só esse é necessário para o bom desenvolvimento do indivíduo. Por conseguinte, também foi explicitado que não se está a obrigar ninguém a amar o outro, mas tão somente a tutelar os direitos do filho. Embora sobre este último aspecto, ainda há quem defenda ser este um direito do filho, como é caso de Flávio Tartuce:

Somente como argumento subsidiário para justificar a existência da violação de um direito alheio pode ser invocado o direito do filho ao amor de seus genitores. Segundo a melhor doutrina, o direito ao amor é um direito fundamental do menor, uma vez que entre os seus direitos essenciais se coloca, em primeiro plano, o direito de receber uma carga afetiva dos genitores, o que é primaz para a sua formação como pessoa humana (TARTUCE, 2012, p. 289)

 Outro importante caso para a discussão sobre a obrigação dos pais de dar afeto foi o julgamento que aconteceu em abril de 2012, na 3ª turma do STJ, a qual tinha como relatora a Ministra Nancy Andrighi. Trata-se de um “leading case” que recolocou em questão a discussão sobre a existência da responsabilização por dano moral causada por abandono afetivo. Neste processo uma filha entrou com uma ação contra o pai por abandono moral e material, alegando que estava sendo tratada de forma diferente em relação aos seus outros irmãos unilaterais e que demonstrou varias vezes ao seu genitor interesse de se aproximar, porém apesar disso, não conseguiu êxito.

O magistrado singular julgou improcedente o pedido inicial, não acolhendo a tese de danos morais, sob o fundamento de que houve afastamento do pai por atitudes grosseiras da mãe da autora contra ele, porém o Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a decisão de piso e concedeu a prestação jurisdicional almejada, sendo tal acórdão confirmado pelo STJ ao negar provimento ao recurso especial.

Foi a primeira vez que o STJ definiu que o status de pai não traz apenas o dever de sustento financeiro, mas também o de proporcionar suporte psicológico, convívio e educação. O abandono afetivo nas relações de filiação não se trata apenas da falta de amor e sim de negligenciar as necessidades durante o crescimento da prole, não cuidar, não amparar o desenvolvimento do filho. A ideia de se obrigar alguém a amar é questionável em qualquer relação, porém o dever de cuidado, o qual exige inexoravelmente a presença paterna e materna, para uma criança é um direito.

O fundamento é que o homem precisa mais do que o “necessarium vitae” para a sua formação. Isto pode ser identificado em uma das passagens de Tânia da Silva Pereira:

Waldow alerta para atitudes de não cuidado ou ser descuidado em situações de dependência e carência que desenvolvem sentimentos, tais como, de se sentir impotente, ter perdas e ser traído por aqueles que acreditava que iriam cuidá-lo. Situações graves de desatenção e de não cuidado são relatadas como sentimentos de alienação e perda de identidade. Referindo-se às relações humanas vinculadas à enfermagem a autora destaca os sentimentos de desvalorização como pessoa e a vulnerabilidade. 'Essa experiência torna-se uma cicatriz que, embora possa ser esquecida, permanece latente na memória'. (PEREIRA; OLIVEIRA, 2008, p. 309)

Desse modo, evidente que o cuidado e atenção aos filhos deixaram de ser considerado como um aspecto acessório e o seu real valor no processo de desenvolvimento interno do indivíduo ganhou maior relevância jurídica, em especial com o precedente concebido pelo STJ.

Nesse contexto, é importante asseverar que parte da doutrina é contrária à indenização por abandono afetivo, com a visão de que isso não traria bons resultados para as relações familiares, pois traria para valores financeiros o que se trata de sentimento. Maria A. Menezes e Regina B. Tavares, utilizam como principais argumentos que esse tipo de indenização poderia trazer uma ideia de monetarização ao sentimento de afeto, que esse pagamento não poderia voltar o tempo e trazer a relação de volta, trazem como argumento também que essa indenização só traria mais afastamento entre pais e filhos.

Sobre isso, um importante levantamento é feito por Theodureto de Almeida Camargo Neto:

A rigor, se mero protesto irregular de um título ou a indevida inscrição do nome de alguém em cadastro restritivo de crédito rendem ensejo a indenizações, porque não admitir a possibilidade de reparação de danos extrapatrimoniais, resultantes do abandono afetivo de filhos?

Afinal, duvida não pode haver de que as mágoas, os ressentimentos, as tristezas decorrentes da omissão dos pais deixam sequelas muito mais graves no espírito das vítimas do que aquelas que se originam de simples abalo de crédito. (CAMARGO NETO, 2011, p. 29)

Pode-se perceber, portanto que existe uma discussão tanto doutrinária quanto jurisprudencial a respeito da existência ou não do envolvimento da responsabilidade civil em questões que envolvam filiação. Apesar desse impasse, inegáveis são os argumentos favoráveis que podem ser usados à aceitação de danos morais por abandono afetivo. É de suma importância se levar em conta os aspectos afetivos que estão surgindo como base familiar atualmente, levando-se em conta princípios como da paternidade responsável, principio da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança.

De acordo com estes, as funções paternas ultrapassam o sustento financeiro, incluindo também o dever de convívio e afeto ao filho. Pode-se usar artigos como o 186 do Código Civil, o qual dispõe que comete ato ilícito quem gerar danos mesmo que apenas morais a outra pessoa para sustentar essa ideia da possibilidade de indenização por abandono moral.

Nesse sentido, já existe um projeto de lei proposto pelo Senador Marcelo Crivella que tramita no Congresso Nacional desde 06/12/2007 (PL n°700/2007), o qual pretende regulamentar de uma forma mais específica o caso em análise e sugeri modificar o Estatuto da Criança e do Adolescente, a fim de incluir lá o abandono afetivo como um ilícito penal e civil. Eis uma passagem interessante da justificativa da lei:

A Lei não tem o poder de alterar a consciência dos pais, mas pode prevenir e solucionar os casos intoleráveis de negligência para com os filhos. Eis a finalidade desta proposta, e fundamenta-se na Constituição Federal, que, no

seu art. 227, estabelece, entre os deveres e objetivos do Estado, juntamente com a sociedade e a família, o de assegurar a crianças e adolescentes – além do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer – o direito à

dignidade e ao respeito. [...]Amor e afeto não se impõem por lei! Nossa iniciativa não tem essa pretensão. Queremos, tão-somente, esclarecer, de uma vez por todas, que os pais têm o DEVER de acompanhar a formação dos filhos, orientá-los nos momentos mais importantes, prestar-lhes solidariedade e apoio nas situações de sofrimento e, na medida do possível,

fazerem-se presentes quando o menor reclama espontaneamente a sua companhia. (CRIVELLA, 2007, p.1)

 

5. CONCLUSÃO

Como foi visto no início deste trabalho, o atual sistema jurídico adotou o princípio da paternidade responsável como um daqueles principais norteadores das questões relativas ao Direito de Família. Tal consagração derivou da interpretação ao artigo 227, § 6º, da Carta Magma. A sociedade atual já se dissociou do modelo patriarcal e a questão do cuidado como um dever inerente aos pais e mães passou a ser visto como uma obrigação principal na criação da prole.

Nota-se que está sendo cobrado dos pais o dever de criação, atenção e educação, os quais compreendem aspectos objetivos e perceptíveis quando da apreciação pelo Poder Judiciário.

Desse modo, verificada a imposição legal de uma conduta comissiva aos pais, resta evidente que sua abstenção resulta no típico enquadramento ao conceito de ato ilícito por omissão, um dos pressupostos à existência da responsabilidade civil. Nesse cenário, não será qualquer dano que alcançará guarida do Poder Judiciário, sendo que a mera mágoa ou rancor digno da vida em família deverá ser renegado pelos aplicadores do Direito.

Quando se fala em abandono afetivo, deve-se ter em mente transtornos e mágoas que emergem da situação. É o caso, por exemplo, dos pais que resolvem desistir de um filho adotivo, após ter sido completado todo o processo de adoção, inclusive decorrido um grande período de tempo em companhia da criança. É notório que surgirá nessa criança um sentimento de rejeição, a qual poderá comprometer de forma crucial sua forma de relacionamento em sociedade e seus valores pessoais, como amor, honestidade e compaixão com o próximo.

Ninguém cresce apenas fisicamente, a formação do intelecto do indivíduo é um processo, via de regra, muito mais complexo, principalmente quando se trata de uma criança que não alcançou ainda o discernimento necessário para compreender algumas circunstâncias da vida em sociedade. O abandono afetivo, nestes casos, ganha uma conotação muito mais ampla, essencialmente ante a gravidade dos danos que ele pode gerar.

Por conseguinte, nota-se que a penalidade da perda do poder de família estabelecida pelo Código Civil de 2002 não tem o condão reparatório próprio do Direito das Obrigações e com ele não se confunde.

Assim, necessário é que a situação tão peculiar dos infantes que sofreram danos profundos e muitas vezes de dificílima reparação, alcance uma proteção no ordenamento jurídico como um todo. A jurisprudência já galgou um grande avanço feito pelo STJ em 2012, o qual permitiu a indenização por dano moral e representou um importante precedente na luta contra a impunidade típica dessa situação peculiar, em que só era aplicado aos pais a penalidade de perda do poder familiar prevista no Código Civil de 2002.

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[1] Aluna de Direito do Centro Universitário Jorge Amado - UNIJORGE, décimo semestre, turma B, Matutino, sob a orientação do Professor Osvaldo Almeida Neto.

[2] Só a partir da promulgação da Lei nº 883/49 é que foi oficializado o reconhecimento dos filhos adotivos.

[3] Art. 227, CF/1988. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[4] Art. 244, Código Penal. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)

[5] Art. 1.634, Código Civil de 2002. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:

I - dirigir-lhes a criação e educação;

II - tê-los em sua companhia e guarda;

III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;

IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;

V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;

VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;

VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

[6] Art. 1.638, Código Civil, 2002. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:

I - castigar imoderadamente o filho;

II - deixar o filho em abandono;

III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;

IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.

[7] Art. 944, Código Civil de 2002. A indenização mede-se pela extensão do dano.

Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

[8] Art. 5º, CF/1988. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;[...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[9] Súmula 227, STJ: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.