Sou Evellyn Ládya, professora do 3º ano A, da E.M.E.I.F. Professor José Inácio Hora, escola muito conhecida como Jardim Paulista, na cidade de Bertioga. Minha classe tem 31 alunos.

Aceitei o desafio de redigir esta narrativa de minha realidade profissional, principalmente com a pretensão de provocar uma análise e a reflexão a respeito do real sentido da inclusão escolar e para contribuir com a desmistificação do paradigma da inclusão.

No início do ano, antes de escolher a sala em que eu iria trabalhar, fui avisada por uma colega de trabalho que na escola e sala de minha preferência, estava matriculado um garotinho portador de algum tipo de deficiência mental, também considerou a ausência de estrutura da escola e da grande dificuldade de se trabalhar com este aluno, ainda sobre a não aceitação da deficiência pela família. Mesmo assim, assumi esta classe, considerei minhas experiências positivas com inclusão e também o desafio profissional.

Minhas experiências anteriores me levaram a questionar o termo inclusão, pois ele nos remete a algo que fora segregado e que deve ser incluído. Então atribui outro sentido à palavra inclusão e hoje a entendo como a não segregação, ou seja, a aceitação da diversidade. Devemos, como educadores, garantir a participação de todos, independentemente das peculiaridades, mas de forma proporcional e consciente de todo o compromisso que envolve a inclusão. Se abrangermos a definição da concepção inclusiva será fácil perceber, que se trata de solidariedade com o próximo, de repensar o sentido atribuído à educação convencional, que transcende o campo quantitativo e resignifica algo muito maior que é a edificação de um ser humano que tem necessidades que se diferenciam das minhas.

Ao tomar posse da sala, fui avisada por uma das responsáveis pela Secretaria da Educação de Bertioga, que enviaria para me auxiliar a professora Karen Keller, por causa da sua experiência com inclusão e pelo seu profissionalismo. Como já havíamos trabalhado no ano anterior, percebi que mesmo parecendo que seria um ano de muitos desafios, era muito provável que este ano fosse de superação profissional para nós duas. E realmente o foi.

O grupo docente juntamente com a direção da escola concordou em preparar uma classe de alunos com alto rendimento, para facilitar o trabalho com este aluno e também o trabalho com a classe. Ter uma criança com transtorno invasivo severo que não fala, não compreende regras, não mede sua força, não expressa necessidades e não tem concentração dentro de uma sala de aula e apresenta hiperatividade, exige muito envolvimento do profissional e dos alunos. Pois os outros alunos deverão compreender que aquela criança, não fará as mesmas atividades, terá regras diferentes, que precisa de auxílio para com estas regras e rotina diária, mas que dentro de suas limitações irá evoluir assim como eles.

Assim que iniciamos o trabalho, nos deparamos com a falta de estrutura da escola. Não temos jogos, não temos brinquedos, não temos parque. Só tínhamos a vontade de estimular aquela criança em todos os aspectos e conseguir avanços. Percebemos que apenas nosso envolvimento, principalmente o da professora Karen, pois eu ainda tenho as responsabilidades para com os outros alunos, não seria suficiente. Este aluno nos mostrava diariamente, a sua necessidade de tratamento fonoaudiológico, neurológico, psicológico e de intervenção medicamentosa. Para isso, precisaríamos ajudar a família entender a importância deste tratamento e conscientizá-los que ele não teria um desenvolvimento comum, que sem estes tratamentos não evoluiria e também toda família teria mais dificuldade de contê-lo nos aspectos comportamentais. Como esta compreensão tardou, tivemos a ideia de irmos, pessoalmente, falar com a a principal responsável pelo NACE (Núcleo de Apoio à Criança Especial), solicitando o atendimento deste menino. A professora Karen se prontificou em acompanhá-lo no horário escolar, caso a família não continuasse com o tratamento, pois consideramos que a escola não tinha nenhum estímulo material e que em pequena parte do tempo ele seria tratado por profissionais que eram mais necessários a ele. Saímos contentes com a segurança de que tínhamos conseguido nosso objetivo, mas nada foi feito e nem recebemos nenhuma resposta. A estratégia voltou-se fortemente em direção à conscientização da família e tivemos uma conversa muito séria com a mãe deste aluno. Após esta conversa, a mãe buscou o tratamento com a fonoaudióloga e passou a ministrar os medicamentos de forma mais pontual. Hoje, ainda não temos a estrutura necessária (jogos, brinquedos, parque), mas ele já nos dá o feedback que compreende o que falamos, sabe o que pode ou não fazer, às vezes demonstra que quer ir ao banheiro, segue religiosamente seu horário e sua rotina e o mais importante, é querido por todos os alunos e interage com todas as crianças da escola, que não têm medo dele, ao contrário, sempre o chamam para brincar. Ele é o centro das atenções.

Trabalhar com inclusão é também ter muitas surpresas. Para conseguir manter a rotina diária deste aluno, tivemos que nos esforçar muito, como por exemplo, impor a hora de terminar a brincadeira com a bola, que a brincadeira que ele mais gosta. Teve um dia, em que foi mais difícil contê-lo e ele nos puxava com força em direção ao lugar onde a bola estava guardada e foi necessário que eu e a professora Karen segurássemos ele. Percebendo que não o deixaríamos pegá-la, mesmo sem emitir sequer uma palavra durante todos aqueles meses em que trabalhamos com ele, este aluno nos olhou apertando forte o nosso braço e disse: bola. Foi o suficiente para nos emocionarmos, pois foi como se ele nos dissesse, que pode aprender alguma coisa, que tem a capacidade de falar, mas que precisa de toda a ajuda para isso. Foi a única palavra que emitiu até hoje, mas aquela lembrança nos estimula a continuarmos lutando por ele.

Este aluno, por pouco tempo foi o único aluno especial na sala. Aceitei uma aluna que estava matriculada no 4º ano, já repetente, que estava em fase de alfabetização e apresenta traços de déficit cognitivo moderado e problemas comportamentais, que em sua fase de desenvolvimento embrionário teve sua formação prejudicada pelo uso de drogas, por isso seu desenvolvimento infantil ficou exposto a muitas doenças e que havia sido adotada, entretanto já completamente adaptada e feliz. O trabalho com esta aluna, que se encontrava silábico-alfabética próxima à consolidação para alfabética, teve sua dificuldade acentuada devido a seu comportamento contumaz. Por ser muito estimulada em casa, a aluna não apresenta dificuldades em executar atividades, mas costuma estar obstinada a não mostrar o que sabe. O aproveitamento com ela na recuperação paralela, sempre oscilou, pois devido seu comportamento, a aluna muitas vezes fingia que não sabia realizar as atividades para ter a atenção e isso atrasou muito seu desenvolvimento. Tenho que ser persistente durante o trabalho na sala de aula, que ainda é feito de forma quase individualizada, e hoje a aluna lê, produz pequenos textos e já está tendo questionamentos ortográficos.

Logo depois, recebi mais uma aluna com o quadro de déficit cognitivo, que também se encontrava silábico-alfabética, que havia perdido a mãe adotiva há poucos meses e estava se adaptando com a madrasta. Além do trabalho na recuperação paralela, fora do horário normal de aula, procurei unir as duas alunas para fazer um trabalho mais seqüenciado, mas percebi que por questões comportamentais, não conseguiria desenvolver o trabalho, pois uma não tolerava dividir a atenção e a outra preferia ser ajudada pelas amiguinhas. Neste momento, tive que ser flexível e combinei com a última aluna que ela se sentaria muito próxima a mim, que poderia contar com a ajuda das outras coleguinhas, mas que teria que contar também com meu auxílio. Deu certo e hoje esta aluna está alfabética com questionamentos ortográficos, gosta de ler e já produziu alguns textos.

A classe passou a ficar mais solidária, houve momentos em que alguns alunos discriminaram essas crianças, mas logo consegui, junto com a professora Karen, a quebrar este início de segregação. Uma das alunas de minha classe estava iniciando um 'grupinho' de meninas, mas que justamente as alunas que tinham mais dificuldade, não poderiam estar. Expus a situação à sala e conversamos sobre esta divisão entre meninos e meninas, meninas que sabem mais e as que sabem menos, e todos perceberam que a classe em si já é um grupo e que este grupo tem que ser fortalecido e não desmembrado, e que nossa maior missão era nos ajudar a ajudar nosso aluno mais especial. Com esta conversa resolvemos a situação. Contudo escolhi a aluna "líder do grupo", para auxiliar a professora Karen com o aluno com transtorno invasivo sempre que ela terminasse as lições e aos poucos ela passou a se sentir bem com ele e hoje gosta de ser importante por ajudá-lo e ajudar outros coleguinhas.

Em setembro, recebi um aluno pré-silábico que já havia cursado parte do 2º ano na escola, mas que fora transferido para outra cidade, onde foi aprovado. Esta criança não tem laudo, mas com oito anos, não tem desenvolvida sua coordenação motora fina, não tem memória de longo prazo, conhecia apenas sete letras do alfabeto, não fazia relação biunívoca, não se expressava de forma clara pela fala, não conhecia todas as cores. A mãe não tem interesse em acompanhar a vida escolar, não o envia de manhã para as aulas de recuperação paralela e nem tem responsabilidade de cuidados básicos com ele. A criança parece ter algum grau de deficiência mental e é nítida sua necessidade de tratamentos. Mas mesmo encaminhando esta problemática à direção da escola, a Prefeitura, não tem ainda estruturado nenhuma rede de atendimento neurológico e psicológico. Sua mãe não buscou tratamento e não se interessa em fazê-lo, mesmo assim, esta criança é atendida por mim todos os dias de forma quase individualizada, digo quase, pois proporcionalmente, são muitos casos que merecem esta atenção. Atualmente, este aluno está silábico com valor de vogais e algumas consoantes, ainda precisa do alfabeto para lembrar-se das letras e ainda luta para memorizar os números de 1 a 10, mas sente-se muito feliz quando pode brincar com seu amiguinho especial, transparece que seus interesses são típicos de educação infantil, é como se ele estivesse estagnado no tempo, com idade incompatível comportamental e cognitivamente.

Mesmo com uma criança com transtorno invasivo severo, duas com déficit cognitivo e problemas psicológicos em fase de alfabetização, uma com capacidade mental inferior à normal, foi matriculado em minha classe uma aluno com laudo de esquizofrenia de subtipo paranoide, ou seja, a criança sofre de crises de paranóia. Este tipo de doença deve ser tratado com medicamentos e acompanhado periodicamente, felizmente, sua mãe entende esta necessidade e, ao que me consta, o mantêm medicado e em tratamento. O aluno tem momentos de hiperatividade, momento de introspecção, reações exageradas, sem medicamentos fica desconfiado, às vezes alterna a noite pelo dia e acaba por dormir na sala de aula. Sua escrita é silábica e como não tem muita concentração, tem dificuldade de memorizar letras e números, por isso ele tem um alfabeto e numerais para utilizar como referência diariamente. Há dias em que está com a memória menos prejudicada. Metade do dia faço o trabalho de alfabetização com ele, mas é inútil prosseguir durante o restante do dia, pois ele não se concentra, brinca e inventa histórias, às vezes se levanta, dança ou anda pela sala. Todas as crianças gostam dele, pois é muito carismático e engraçado. Sente-se o melhor aluno da sala e sempre me pergunta se realmente é, quando eu afirmo, ele fica vaidoso e provoca brincando com o restante da sala.

Diariamente executo quatro tipos de planejamento, com conteúdos direcionados a cada necessidade. Muitas vezes, me encontro ensinando contas de divisão para a maioria da classe, ajudando um aluno a memorizar os números de 1 a 10 e outro a somar com materiais concretos e outro a resolver situações-problema por meio de desenhos, simultaneamente. Para se ter bom resultado com todos os alunos, há de ser flexível pedagogicamente e o mais importante é o ambiente de aprendizado, todos ali são respeitados nas suas diferenças e estão todos aprendendo.

A aceitação é fundamental para inclusão efetiva, porém exige esforço de toda a escola, além do auxílio da família e apoio médico. A escola para ser inclusiva em sua essência, deve ser construída com este pensamento, deve ser estruturada para possibilitar a construção de conhecimento e dar as oportunidades de aprendizado adequadas para o desenvolvimento potencial de todas as crianças que recebemos, isto é, valorizar a heterogeneidade.

A educação inclusiva exige mudanças profundas no sistema educacional. Ainda hoje, apesar de nossa legislação e do olhar do mundo para com a inclusão, há profissionais da educação que têm posições controvertidas sobre o assunto, muitas vezes por insegurança ou pela realidade da falta de apoio ao profissional que atende este aluno. Não é sem razão tal sentimento, contudo, através desta experiência o profissional passa a entender a sua real missão. Admito que é muito difícil, dentro do mesmo espaço, termos demandas tão distintas e específicas e que muitas vezes, nem entidades especiais conseguem atender adequadamente à todas as necessidades de algumas deficiências.

Pessoalmente, questiono se são todas as deficiências que devem ser inseridas no ambiente escolar comum, pela própria necessidade da deficiência relacionada à falta de estrutura do ambiente escolar. Precisamos nos interrogar se podemos atender qualquer deficiência dentro do ambiente escolar que temos.

A Resolução n.2/2001, da Lei de Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, recomenda: Os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, cabendo às escolas organizar-se para o atendimento aos educandos com necessidades educacionais especiais, assegurando as condições necessárias para a educação de qualidade para todos. Como podemos verificar a lei 'recomenda' a matrícula de todo e qualquer aluno com necessidades especiais e estabelece que a unidade escolar, que como sabemos, não tem autonomia de contratação, nem financeira, organize-se para atender essas crianças e que ainda, deve assegurar condições adequadas e de qualidade. Como garantir esta qualidade sem condições físicas, estruturais e financeiras para atender todos os tipos de deficiência?

Posso aproveitar como exemplo para ilustrar a situação, meu aluno com transtorno invasivo de desenvolvimento, que tem características como: estados de agitação ou cólera súbita, crises de agressividade alternadas com inibição e mudanças bruscas e inesperadas do estado de ânimo, descontrole da força, sem atitude mínima de autoproteção frente a perigos comuns. A escola e até mesmo a própria casa, muitas vezes é um importante fator de risco a este tipo de criança, se não for acompanhada constantemente. Esta criança pode queimar-se por não saber que o fogo queima, pode levar um choque por não saber que a tomada é perigosa, pode cortar-se com tesourinhas e outras coisas que crianças de oito anos, sabem que irão se machucar muito e por isso não o fazem. Pelos nossos estudos, eu a professora Karen, sabemos que podemos esperar muito pouco da evolução desta criança, principalmente se não for acompanhada por especialistas da saúde, mas além de seu desenvolvimento, nossa grande preocupação é com sua segurança dentro do ambiente escolar.

Costumo defender a necessidade de uma legislação definindo que tipos de alunos considerados de inclusão, que podem ser atendidos na escola convencional. Há muitos autores que questionam este tipo de posição, por afirmarem que não podemos escolher quais deficientes poderão ser incluídos, que cada um tem suas dificuldades assim como qualquer outro aluno. Mas se todos consentimos que realmente existe a heterogeneidade e sabemos, através da medicina, as graves particularidades de algumas síndromes ou deficiências, é mais respeitoso com a criança proporcionar um atendimento à altura de sua necessidade. E a realidade nos mostra que o ambiente escolar, muitas vezes não tem a estrutura adequada para todo o tipo de inclusão e que pode, para algumas deficiências, ser até prejudicial. Será que a inclusão seria positiva, se inserirmos uma criança com necessidades especiais severas, em uma escola sem estrutura para recebê-la ou alguém para acompanhá-la, podendo até expor este aluno a riscos?

Recomendações técnicas são necessárias e a inclusão escolar faz parte do direito dos brasileiros à dignidade humana, por isso defendo a inclusão com dignidade e entenda-se por dignidade, ter todo o atendimento médico, psicológico, psicopedagógico, pedagógico necessário e com certeza, a estrutura escolar adequada.

Por de ter "vestido a camisa" em todos os casos que recebi, não deixo de defender um dia sequer o direito, de qualquer aluno meu, de ser respeitado como ser humano. E o resultado deste trabalho vem da melhor forma possível, depois de poder verificar os avanços, através de um beijo melado, um desenho ou uma garatuja colorida, um pequeno texto ou apenas um balbucio carinhoso.

Evellyn Ládya Franco Pontes.