SINOPSE DO CASE: INCIDE ITBI SOBRE A TRANSMISSÃO DE IMÓVEIS CUJOS VALORES ULTRAPASSEM O CAPITAL SOCIAL?[1]

 

Gabriela Felix Marão Martins²

Antonio de Moraes Rego Gaspar³

1 DESCRIÇÃO DO CASO

Hetfield Participações S/A deu início aos procedimentos necessários para integrar a sociedade empresária Metalúrgica Heavy Metal Ltda., em 2015. Para integralizar sua parcela de capital social, ofereceu um bem imóvel de R$ 750.000,00, sendo que sua parcela era de R$ 500.000,00. Porém, a Secretaria de Fazenda do Município de São Luís, alegando que o valor de a propriedade exceder em muito o capital social, não quis emitir a guia de recolhimento do ITBI que se refere ao imóvel integralizado ao capital da empresa com a imunidade total. Assim, o município atribuiu a tributação sobre o valor do imóvel incorporado que excedeu o limite do capital social a ser integralizado, preconizando que a imunidade que prevê o artigo 156, parágrafo 2º, I, da CF/88 se limita ao valor do imóvel suficiente à integralização do capital social.

2 IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO CASO

Haja vista o caso em questão, indaga-se:

a) Qual a regra-matriz de incidência tributária do ITBI?

Primeiramente é preciso que se aborde o conceito de regra-matriz de incidência. Regra-matriz de incidência são normas abstratas/gerais que incidem em casos concretos. Conforme Aurora Tomazini (2009) a palavra “regra” é empregada no mesmo sentido de norma jurídica, é uma construção interpretativa, que é obtida por meio do contato com textos legislados. “Matriz”, por sua vez, indica que essa construção é um “padrão sintático-semântico na produção da linguagem jurídica concreta” (CARVALHO, 2009, p. 362). Enquanto o termo “de incidência”, ainda conforme Aurora Tomazini (2009), demonstra que são normas que serão aplicadas em casos concretos. Em outras palavras, Regra-Matriz de incidência é uma norma padrão que será aplicada em casos concretos. Assim, podem-se ter diversos casos concretos, mas todos eles obedecerão o mesmo padrão. Essa regra pode, portanto, ser de qualquer natureza, inclusive a tributária. No que diz respeito a Regra-Matriz de Incidência Tributária, Paulo de Barros Carvalho bem leciona:

“A norma tributária, em sentido estrito, reiteramos, é a que define a incidência fiscal. Sua construção é obra do cientista do Direito e se apresenta, de final, com a compostura própria dos juízos hipotético-condicionais. Haverá uma hipótese, suposto ou antecedente, a que se conjuga um mandamento, uma conseqüência ou estatuição.” (CARVALHO, 2002, p. 235.)

Deste modo, pode-se concluir que a Regra-Matriz de Incidência Tributária é uma construção doutrinária, é uma norma geral/abstrata compreendida como juízo hipotético- condicional, onde há um fato gerador e uma consequência. Paulo de Barros (2009) afirma que cabe na Regra-Matriz de Incidência Tributária os critérios: material, temporal, espacial, pessoal e quantitativo.

Aspecto Material é dito como o fato gerador da obrigação. No que diz respeito ao ITBI, o fato gerador se traduz em uma situação de direito posto que, conforme se observa no Artigo 56, II da Constituição Federal, a materialidade se dá pela transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso: de bens imóveis, por natureza ou acessão física, excluindo-se a sucessão; de direitos reais sobre bens imóveis, exceto os de garantia. Também se materializa pela cessão, por ato oneroso, de direitos relativos à aquisição de bens imóveis.

O aspecto espacial é o espaço físico em que a relação jurídica pode se dar. Assim, no caso do ITBI, já que é um imposto que compete aos Municípios, o local é o do município onde se encontra o imóvel que é objeto do fato gerador: cessão de direitos ou a transmissão. (Artigo 156, II da CF c/c artigo 35, caput do CTN)

O aspecto pessoal abrange o sujeito passivo e ativo da obrigação tributária em questão. O sujeito ativo é aquele que tem condições jurídicas de cobrar o tributo e o sujeito passivo é aquele que realiza o fato dito imponível, ou outro que tenha ligação para com tal. Portanto, o sujeito ativo no ITBI são os Municípios, pois cabe a eles a instituição do ITBI, conforme dispõe artigo 56, II da CF e como sujeito passivo tem-se os contribuintes, que, em acordo com o artigo 42 do CTN é “qualquer das partes na operação tributada, como dispuser a lei.”

O aspecto quantitativo da hipótese de incidência leva em consideração o próprio Artigo 3 do CTN, que assegura que a norma tributária deve prever o verbo e o complemento, o momento em que surge a obrigação, local, sujeitos e a base de cálculo e alíquota. Trazendo para o ITBI, a base de cálculo é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos, como dispõe artigo 38 do CTN. A alíquota seria o percentual, cujo limite não excederá os limites fixados em resolução do Senado Federal, que distinguirá, para efeito de aplicação de alíquota mais baixa, as transmissões que atendam à política nacional de habitação.

O critério espacial leva em consideração o momento em que se dá o fato gerador. Posto isto, no caso do ITBI será o momento em que se dá a transmissão. (Artigo 35, I e II do CTN).

b) Qual o conceito de imunidade tributária.

A imunidade tributária é uma norma constitucional (art. 150, VI) que versa sobre as limitações do poder de tributar. O Professor Paulo de Barros Carvalho traz o seguinte conceito de imunidade:

“A classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, que estabelecem de modo expresso a incompetência das pessoas políticas de direito interno, para expedir regras instituidores de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas.” (2002, p. 178)

A doutrina diferencia imunidade de isenção. Conforme José Luiz de Gouvêia Rios (1998), a imunidade se trata da renúncia fiscal ou vedação da cobrança de tributos que a Constituição estabelece. RIOS (1998) acrescenta que ainda que o termo utilizado na Constituição seja isenção, em bem verdade trata-se de imunidade. A isenção, por sua vez, seria a escusa por parte de determinadas pessoas e situações, na qual o Estado concede o recolhimento de certos tributos, por meio de leis infra-constitucionais (RIOS, 1988).

c) Qual o limite de interpretação das normas tributárias imunizantes?

O artigo 111 do Código Tributário Nacional (CTN) determina que se interprete literalmente a legislação tributária que verse sobre a outorga de isenção. Traz, portanto, uma limitação à letra da lei. Ricardo Lobo Torres (2006) explica que este tipo de interpretação literal é designada como “restritiva” pela doutrina. Este é um artigo duramente criticado por grande parte da doutrina, pois, conforme aduz José Souto Maior Borges, acaba por ocasionar a “subordinação acrítica e servil do intérprete” (1980, p. 121), levando ao totalitarismo (1980, p.122). As jurisprudências têm se posicionado de forma a adotar a interpretação extensiva, ampla e teleologia, como no julgado que segue:

A imunidade, sendo uma limitação constitucional ao poder de tributar, não deve sofrer leitura restritiva, tal como a isenção. Segundo a boa doutrina, a regra imunitória, como todos os preceitos constitucionais, deve ser interpretada com largueza, atendendo, destarte, o propósito político perseguido pelo constituinte (Proc. DRT-1 n. 2.983/90. TITSP, 4ª C, Rel. Juíza Maria Malfada Tinti. Boletim TIT 17.06.95).

Tem-se como outro exemplo o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n° 237.718, ocorrido em 29 de março de 2001, onde houve provas de que a interpretação dada às regras tributárias imunizantes tem dado importância:

“à interpretação teleológica das normas de imunidade tributária, de modo a maximizar-lhes o potencial de efetividade, como garantia ou estímulo à concretização dos valores constitucionais que inspiram limitações ao poder de tributar” (BRASIL, RE 237.718, 2001).

Fato é que, a depender do limite que se dá à interpretação das normas de imunidade tributária, têm-se diferentes entendimentos e consequências. É o que será visto adiante.

3 DESCRIÇÃO DAS DECISÕES POSSÍVEIS

d) Incide a imunidade tributária prevista no artigo 156, § 2º, I, da CF/88 quando o imóvel superar o valor do capital social integralizado?

d.1) Não incide a imunidade tributária.

O artigo 156, §2 da Constituição Federal é claro ao afirmar que “§ 2º - O imposto previsto no inciso II: I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital (...)”. Desta forma, por meio da uma interpretação restritiva, entende-se que somente incide a imunidade tributária em cima daquele valo suficiente à integralização de capital social. Fora isto, não é caso de imunidade.

Desta maneira, somente sobre a importância que excede o valor do capital social a integralizar, recairia o ITBI. O voto a seguir do desembargador Jaime Ramos bem expõe este entendimento, ao julgar a Apelação Cível do Mandado de Segurança nº 2011.073712-5:

“Todavia, a imunidade tributária não é ampla e irrestrita, mas apenas em relação ao valor do imóvel suficiente à integralização do capital social, vale dizer, se o capital social a ser integralizado é de R$ 10.000,00, por exemplo, e o valor do imóvel incorporado ao patrimônio da pessoa jurídica para a realização desse capital é R$ 30.000,00, o imposto sobre a transmissão de bens (ITBI) não incidirá tão somente sobre a importância de R$ 10.000,00. Isso porque a intenção do legislador constituinte, ao estabelecer a imunidade do ITBI sobre imóveis incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, destinados à integralização do capital social, foi a de facilitar a instituição/criação de novas sociedades e a movimentação de bens que representassem o capital exigido para tal finalidade, e não a de criar mecanismos a fim de que os sócios transferissem para o patrimônio da pessoa jurídica imóveis de valor superior àquele necessário à integralização do capital social, e assim ficar totalmente imunes à tributação.

Aliás, o Código Tributário Nacional determina que, "ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior: I - quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito" (art. 36 -grifo aposto).” (BRASIL, AP 2011.073712-5)

Destarte, por meio do artigo 36 do Código Tributário Nacional, que versa sobre a não incidência deste imposto sobre a transmissão de bens em determinadas circunstâncias, compreende-se que não é caso de conceder imunidade ao valor que excede o valor total do imóvel a ser integralizado.

Posto isto, não incide a imunidade tributária sobre o valor total do imóvel, somente sobre o valor suficiente a integralização de capital social.

d.2) Incide a imunidade tributária.

Por meio de uma interpretação ampla e extensiva, chega-se à conclusão de que a imunidade tributária estende-se também à importância que exceda o valor a ser integralizado no capital social da pessoa jurídica. Conforme Artigo 5º do Código Civil deve-se levar em consideração o fim social a que a lei se dirige, qual seja possibilitar a entrada de pessoas física e jurídicas no mercado, e então, a partir deste óbice, a imunidade incidiria inclusive sobre o valor do imóvel que excede o valor da integralização.

Importante destacar que a não incidência da imunidade sobre o valor total do imóvel poderia ser configurado como um obstáculo À Livre Iniciativa (Artigo 1º da Constituição Federal) e da Autonomia da Vontade (artigo 170, inciso IV da Constituição Federal). Da mesma forma, causar-se-ia grande insegurança jurídica, pois não há nada na Constituição que vede a imunidade sobre o valor que excede o da integralização, muito pelo contrário, permite a imunidade nesses casos para preservar os princípios ditos anteriormente.

Posto isto, incide a imunidade tributária sobre o valor total do imóvel, inclusive sobre o que excede o valor da integralização de capital social.

 

 

 

REFERÊNCIAS

BORGES, José Souto Maior. Isenções tributárias. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1980.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 14ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico semântico. São Paulo: Noeses, 2009.

TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

BORGES, José Souto Maior. Isenções tributárias. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1980.

COSTA, Regina Helena. Imunidades tributárias: teoria e análise da jurisprudência do STF. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

RIOS, José Luiz de Gouvêia. III Seminário Nacional de Fundações. Belo Horizonte, 01 a 03 de dezembro de 1998.

TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.



[1] Case apresentado à disciplina Direito Tributário I, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

² Aluna do 7º Período, Noturno, da UNDB.

³ Professor Esp., Orientador.