IM) POSSIBILIDADE DE TRANSAÇÃO PENAL NA AÇÃO DE INICIATIVA PRIVADA

 1 INTRODUÇÃO

O presente artigo visa discutir a possibilidade de transação penal oferecida pelo Ministério Público, nos crimes em que a lei prevê o direito ao ofendido de iniciar a persecução penal (crimes de ação penal de iniciativa privada).

A criação dos juizados especiais criminais Lei n.º 9.099/95, possibilitou ao Ministério Público a transação penal nos crimes de ação penal pública, mas, será que tal instituto pode ser estendido aos crimes cuja ação seja de iniciativa privada?

Iremos abordar no presente trabalho o conceito de ação penal de iniciativa privada, transação penal, bem como os princípios que regem tais institutos, com o intuito de se verificar a (im) possibilidade da transação penal nos crimes cuja ação seja de iniciativa privada.

Para tanto, abordaremos também dispositivos legais, em especial previstos na Constituição da República, Código de Processo Penal, Código Penal e a Lei 9.099/95 que instituiu os juizados especiais.

Passaremos agora ao estudo aprofundado do tema, começando pelo conceito de ação penal de iniciativa privada, os dispositivos legais, bem como os princípios que regem tal instituto.

2 AÇÃO PENAL DE INICIATIVA PRIVADA, Conceito, dispositivos legais e princípios.

 

 

A ação penal de iniciativa privada distingue-se da ação penal pública, cuja titularidade é exclusiva do Ministério Público (art. 129, I, da Constituição Federal), sendo que ação de iniciativa privada é exercida pelo ofendido, ou por quem tenha qualidade para representá-lo (arts. 100, §2º, do Código Penal e 3º do Código de Processo Penal), mediante queixa crime, por meio de procurador com poderes especiais, devendo contar com os mesmos requisitos da Denúncia (art. 41 do Código de Processo Penal).

Conceituando tal instituto, Frederico Marques nos ensina que:

 

Ação penal privada é aquela em que o direito de acusar pertence, exclusiva e subsidiariamente, ao ofendido ou a quem tenha qualidade para apresentá-lo. Ela se denomina ação privada, porque seu titular é um particular, em contraposição à ação penal pública, em que o titular do ius actionis é um órgão estatal: o Ministério Público. (MARQUES, Frederico, 1997, p.321).

 

Temos que salientar que a persecução penal nos crimes de iniciativa privada se inicia com uma ação do ofendido provocando o Estado à prestação jurisdicional. Neste sentido, Eugenio Pacelli de Oliveira entende que:

 

A única razão para a permanência da ação penal privada parece ser o controle – objetivo, e não discricionário – de propositura da ação penal, o que permite à vítima de determinados delitos ingressar no juízo criminal independentemente do juízo de valor que dele ou sobre ele fizer o Ministério Público. Em outras palavras, ação privada existiria para reservar inteiramente ao seu respectivo titular – ofendido e/ou legitimados para o processo – não só o juízo de conveniência e oportunidade da ação, mas, sobretudo, para permitir que o ofendido (ou seu representante legal e os demais legitimados para a ação, em caso de morte ou ausência dele) manifeste livremente a sua convicção – opinio delicti – acerca da existência do crime e da suficiência da prova para a instauração da ação penal. (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, 2011, p.141). (Grifamos).

 

Devemos observar também, que os crimes de iniciativa privada, não se encontram listados taxativamente em um único dispositivo legal, estando espalhados ao longo da Parte Especial do Código Penal e leis extravagantes, podendo ser identificados pela expressão “somente se procede mediante queixa”.

Iremos abordar agora alguns princípios da ação penal de iniciativa privada, começando pelo princípio da oportunidade que concede ao ofendido a faculdade de promover a ação penal. Assim, ele somente ajuizará queixa crime se julgar conveniente, tendo ampla discricionariedade para decidir. Já o princípio da disponibilidade determina que ajuizada a queixa crime, pode o querelante dela dispor, até o trânsito em julgado da sentença condenatória, através dos institutos do perdão e da perempção (artigos 51 e 60, respectivamente, do Código Penal). Pelo princípio da indivisibilidade entende-se que “a queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará o processo de todos...” (CAPEZ, 2001, P. 18), e finalmente temos o principio da intranscedência oriundo do art. 5º, XLV, da CF/88, determinando que a ação penal somente deve ser proposta em face das pessoas responsáveis pela prática do delito, não devendo se estender a terceiros.

Conceituado o instituto da ação penal de iniciativa privada, sua diferença em relação a ação pública bem como os princípios que regem tal ação, passaremos agora ao exame do instituto da transação penal e em seguida verificar a possibilidade de transação penal nos crimes de iniciativa privada.

 

3 TRANSAÇÃO PENAL CONCEITO E PREVISÃO LEGAL

 

 

A palavra “transação” provém da expressão latina transactio, derivada do vernáculo transigere. Significa negociação, pacto, ajuste, enfim, exprime a idéia de convergência de vontades, em que se pressupõe mútuo sacrifício para se chegar a uma conciliação de interesses. Evidencia-se, assim, a bilateralidade do ato, dependendo da manifestação de vontade de ambas as partes envolvidas, a solução de determinado conflito.

Importante observar que a transação penal ainda que prevista no art. 98, I, da Lex Major, é taxada de inconstitucional por parte da doutrina sob o argumento de afrontar o princípio do devido processo legal, ante a inobservância do contraditório e da ampla defesa, sendo que o mencionado instituto violaria ainda, o princípio do estado de inocência, já que, uma vez aceita a proposta, o autor do fato estaria assumindo sua culpa.

Sem adentrar na questão da constitucionalidade do referido instituto, fato é que a Lei nº. 9.099/95 possibilita ao Ministério Público, nas ações penais de sua titularidade, negociar com o autor de uma infração de menor potencial ofensivo a imposição imediata de pena não privativa de liberdade em troca do não oferecimento de denúncia.

Percebe-se que há de um lado o sacrifício por parte do órgão acusatório, deixando de ofertar denúncia, e de outro o do réu, que abre mão de determinadas garantias processuais constitucionais. E sendo assim, uma vez cumprida a proposta pelo acusado, este terá extinta a sua punibilidade, ficando a sentença homologatória registrada apenas para impedir nova concessão do benefício, não servindo para fins de reincidência, antecedentes criminais e comprovação de culpa.

Nas lições de Mirabete observamos que:

 

Tratando-se de proposta para transação, entretanto, é desaconselhável rigor excessivo que inviabilizaria a proposta, cumprindo ao membro do Ministério Público o papel de negociador [...]. Certamente, é inadmissível uma proposta de imposição de restrição de direito não elencada nos arts. 43 e 47 do Código Penal ou de aplicação de pena com duração superior aos limites máximos previstos abstratamente pela infração, por violação do princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal). (MIRABETE, Julio Fabrini, 2000, p. 132).

 

Podemos verificar que a transação penal, visa a solução rápida de um conflito de interesses, onde não houve uma ofensa significativa ao bem jurídico tutelado pelo direito penal, pois, é possível a transação penal somente em crimes de menor potencial ofensivo.

A respeito da transação penal e sua natureza, Sobrane afirma que:

 

A transação penal possui natureza dupla. Ao mesmo tempo em que é um instituto de Direito Processual Penal, uma vez que por meio dela se compõe a lide subjacente, é também um instituto de direito material, visto que os ajuste entre as partes, homologado pelo juiz, implica a extinção da punibilidade do fato típico e antijurídico, não se admitindo mais sua discussão. (SOBRANE, Sérgio Turra, 2001, p.134).

 

Estudado o instituto da transação penal, analisaremos agora a (im) possibilidade de haver transação penal nos crimes de iniciativa privada, e em seguida concluiremos o presente artigo.

 

4 A TRANSAÇÃO PENAL NA AÇÃO PENAL DE INICIATIVA PRIVADA

 

 

Prevê o art. 76, caput, da Lei nº. 9.099/95 que:

 

Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta. (Grifamos).

 

Como se vê na lei, esta expressamente determinado que o instituto da transação penal tem cabimento somente nos crimes perseguidos mediante ação penal pública, incondicionada ou condicionada à representação, sendo tal dispositivo normativo omisso no que diz respeito a incidência nas ações penais de exclusiva iniciativa do ofendido. Tal silêncio legislativo dividiu a doutrina em argumentos que agora passarão a ser analisados, à luz do que o presente artigo se propôs.

Parte da doutrina se posiciona no sentido de que não cabe a composição penal nas ações penais de iniciativa privada, pois, estes doutrinadores têm como fundamento principalmente a vontade do legislador, que expressa e propositadamente excluiu esta possibilidade no dispositivo que regulamenta o instituto da transação penal.

Tal entendimento pode ser encontrado na doutrina de Mirabete que assim afirma:

 

Não prevê a lei a possibilidade de transação penal na ação penal de iniciativa privada. Isto porque, na espécie, o ofendido não é representante do titular do jus puniendi, mas somente do jus persequendi in juditio. Não se entendeu possível que propusesse, assim, a aplicação do instituto na hipótese de infração penal de menor potencial ofensivo, permitindo à vítima transacionar sobre uma sanção penal. (MIRABETE, Julio Fabrini, 2000, p. 129).

 

Neste raciocínio, não contemplando a lei hipótese de transação penal nos crimes de iniciativa privada, não é possível haver tal transação uma vez que a ação é de titularidade do ofendido e não do Ministério Publico e somente o parquet é legitimo para propor a transação penal.

Em linhas gerais, sustentam os doutrinadores defensores de tal posicionamento a impossibilidade de transação na ação penal de iniciativa privada, os quais usam uma interpretação literal do art. 76 da Lei nº. 9.099/95, que expressamente excluiu os crimes perseguidos por queixa crime, bem como argumentam que o Ministério Público não é o titular da ação penal de iniciativa privada, sendo o ofendido o titular e este não está autorizado a propor aplicação de pena, por lhe faltar o jus puniendi (pertencente com exclusividade ao Estado).

É inquestionável o silêncio legislativo quanto à possibilidade de transação penal nas ações de iniciativa exclusiva da vítima, até porque a vontade do legislador foi restringir a sua aplicação às ações penais públicas.

Contudo, em que pese os fortes argumentos apresentados pelos citados doutrinadores, vem crescendo na doutrina uma corrente apregoando a possibilidade do binômio transação penal/ação penal de iniciativa privada.

No mesmo caminho vem trilhando os nossos Tribunais que, em casos concretos, viram-se obrigados a se manifestarem sobre o tema, sendo oportuno já adiantar que os mais recentes julgados estão admitindo a barganha penal nas ações perseguidas mediante queixa.

É neste sentido, inclusive, que se posicionou a Comissão Nacional de Interpretação da Lei nº. 9.099, de 26 de setembro de 1995, conforme traz Mirabete (2000, p. 129) em sua obra: “Conclusão – Décima primeira – o disposto no art. 76 abrange os casos de ação penal privada”.

Cabe salientar que, malgrado a lei seja omissa quanto a aplicação da transação nas ações perseguidas por queixa crime, também não há nenhuma disposição em sentido contrário. Assim, a doutrina traz a baila o fato de que a proposta de composição penal ao réu lhe é mais benéfico do que ter que suportar os constrangimentos de um processo criminal, e o processo penal não pode ser usado pelo ofendido como um meio de vingança privada, pois, o processo é um instituto público e tem como objetivo, respeitando os seus princípios institutivos, quais sejam, ampla defesa, contraditório e isonomia, solucionar os conflitos de interesses.

Isto porque o ofendido dispõe de outros meios para deixar de exercer o seu direito de ação, face os princípios da oportunidade e disponibilidade que norteiam a ação de iniciativa exclusiva daquela.

Neste sentido, Fragoso assevera que:

 

[...] Embora a lei n.º 9.099/95 não preveja expressamente a possibilidade de transação em ação penal de exclusiva iniciativa privada, é perfeitamente possível aplicação analógica, por tratar de norma processual (cf. art. 3.º, CPP). Ainda que se tratasse de norma de direito material, a analogia seria possível, por ser in bonam partem. Se, em processos iniciados exclusivamente por queixa, é possível reconciliação entre as partes, perdão do ofendido e retratação, nada obsta a que se admita transação penal. Admitir transação penal em queixa constitui mera reafirmação do princípio da disponibilidade, vigente quanto a ações penais privadas. É evidente que a transação penal realizada entre as partes deverá ser homologada pelo Juiz, ao qual cabe aferir sua legalidade. (FRAGOSO, 2012).

 

Desta maneira, a transação, por sua própria natureza de negociação, isto é, de bilateralidade de vontades, cumprirá a sua função, permitindo-se às partes, e o Ministério Público como fiscal da lei, analisar sobre sua conveniência, satisfazendo-se e compondo-se os seus interesses, tantos os civis quanto os penais.

Temos que considerar ainda, que caso o ofendido exercitasse o seu direito de ação, eventual condenação imporia ao autor do ilícito as mesmas penas aplicadas na transação penal. Com efeito, a teor do que dispõe o art. 76 da Lei nº. 9.099/95, os requisitos para a concessão de transação penal e consequente aplicação de uma pena restritiva de direitos ou multa é mais exigente do que os dispostos nos arts. 43 e seguintes do Código Penal, que tratam das chamadas “penas alternativas”. Desta maneira, se o autor da infração penal de menor potencial ofensivo faz jus à proposta de transação penal, faz também à substituição da pena privativa de liberdade imposta, caso a vítima opte pela interposição de queixa, em eventual condenação, que poderá ou não ocorrer.

 

5 CONCLUSÃO

 

 

Podemos verificar no presente artigo que no tocante aos crimes abrangidos pela transação penal, a lei é expressa ao prever o seu cabimento somente àqueles perseguidos mediante ação penal pública, seja incondicionada ou condicionada à representação, uma vez preenchidos os requisitos legais constantes do art. 76, §2º, da Lei nº. 9.099/95, sendo omissa em relação às ações penais de exclusiva iniciativa do ofendido.

Destarte, emergiu na doutrina e na jurisprudência divergência no que toca ao cabimento de composição penal feita pelo Ministério Público com a vítima nas ações penais privadas.

Uma primeira corrente, fazendo uma interpretação literal do dispositivo normativo supracitado, sustenta incompatibilidade dos institutos. Argumentam que o Ministério Público não é o titular da ação penal de iniciativa privada, sendo que o titular é o ofendido, mas, este não detém o jus puniendi, pertencente com exclusividade ao Estado.

Apregoam também que vigem nas ações penais de iniciativa privada os princípios da disponibilidade e da oportunidade, os quais conferem outros meios para que a vítima possa abrir mão do seu direito de ação.

Por fim, asseveram que o interesse da vítima é o de ver reparados os seus danos oriundos do ilícito, não podendo o processo criminal ser usado como mero instrumento de vingança privada.

Contudo, segundo nosso entendimento, é perfeitamente possível a transação penal, pois, esta é mais benéfica ao autor do fato, circunstância esta que autoriza a analogia in bonam partem, já que o art. 76 da Lei nº. 9.099/95 se trata de norma prevalentemente penal.

Isto porque ainda que o Ministério Público não seja o titular da ação penal de iniciativa privada é ele o fiscal da lei e o processo penal não é instrumento de vingança privada.

Sendo assim, se considerarmos que determinado delito interesse mais ao particular que à coletividade, talvez não existisse razão para a criminalização de tais condutas, sobretudo e particularmente sob a perspectiva de um Estado Democrático de Direito.

Isto porque existem outros ramos do direito capaz de solucionar litígios de pouca importância (crimes de menor potencial ofensivo) e o direito penal deve sempre ser usado em ultimo caso nas soluções dos conflitos.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Código de Processo Penal. Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1943. Diário Oficial, Brasília, 03 nov. 1941. 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. – 12. ed. Ver. E atual. – São Paulo: Saraiva, 2001.  

FRAGOSO, Cristiano. Transação Penal na Ação Penal de Iniciativa Privada. Disponível em: <www.fragoso.com.br/cgi-bin/juris/arquivo19.pdf>. Acesso em: 15 mai 2012.  

MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais: Comentários, jurisprudência e legislação. 4ª. ed. São Paulo: Atlas, 2000.  

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: BookSeller, 1997. Vol. I. 

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 15 ed.Belo Horizonte: Lumen Juris, 2011. 

SOBRANE, Sérgio Turra. Transação Penal. São Paulo: Saraiva, 2001.