Resumo: Sabe-se que desde o inicio dos processos libertários de independência, a América tem como objetivo buscar a identidade de Estado-Nação. Como podemos considerar alguém brasileiro, boliviano ou argentino? Quais símbolos servem de base pra dizer se o cidadão pertence a um ou outro país, região, cidade?Na Bolívia essa discussão se acentua e se agrava principalmente pelo fato da ascensão do Aymará Evo Morales ao governo do país, que acende o confronto de idéias socioeconômicas, políticas e étnicas. Então, como fazer um país tão diferente ter unidade nacional? A partir de um estudo de viés antropológico dos símbolos culturais e da sua política tentaremos entender as causas das atuais situações nesse país andino. Palavras-Chave: Identidade Nacional, Estado-Nação, Símbolos étnicos.

Contexto Político

O objetivo deste trabalho é entender o cenário atual da Bolívia contemporânea, e todos os seus percalços políticos, econômicos e sociais, a partir das problemáticas das relações étnicas e de identificação do boliviano consigo mesmo e com a sociedade global. Este trabalho propõe uma abordagem interdisciplinar, envolvendo a análise político-histórica, levando em conta as origens étnicas do povo boliviano e a questão do "ser boliviano" e sua cultura[1].

Símbolos que dão caráter ao boliviano serão aqui estudados, bem como o ponto de vista dos povos originários da Bolívia, levando em conta a sua significação na construção da identidade nacional.

Para isso foram realizadas revisões bibliográficas de autores que são especialistas nos estudos andinos (OSÓRIO,PRADO), simbologia étnica e antropológica (BOURDIEU,WHITE) e identidade nacional (CARUSO, OLIVEIRA). Como diz Roberto Cardoso de Oliveira sobre o debate sobre o estudo da identidade nas Américas:

 "O interesse sobre o tema da identidade tem tido ultimamente, entre nós, estudiosos de ciências sociais, uma freqüência extraordinária!" (OLIVEIRA, 2000, p. 1)

Para podermos entender como a Bolívia chegou a esse atual estágio político e social na Bolívia, devemos primeiramente nos remeter, de maneira resumida, ao seu passado histórico. Segundo o jornalista, escritor e historiador Raimundo Caruso (2008,294):

"(...)durante 500 anos a população originária boliviana, derrotada na guerra da conquista espanhola a partir de 1530, foi submetida a trabalhos forçados, sem direito a salário, e enquadrada num esquema de domínio racista que procurou, desde o princípio, diminuí-la, humilhá-la, e fazê-la parecer inferior. Assim, até a revolução popular de 1952, o indígena boliviano não votava e estava proibido de freqüentar escolas. E quando um latifundiário vendia uma fazenda, ele costumava relacionar como bens e como valores tantas cabeças de gado, tantas árvores e tantos indígenas, que eram a mão-de-obra desumanizada que botava a economia rural em movimento. Neste sentido, a presença e a visibilidade de Evo Morales como presidente da Bolívia, o cargo mais importante, mais complexo e mais difícil do País, está mostrando à população indígena, seja ela aymara, guarani ou quéchua, que ela não é inferior, que eles são iguais aos brancos."  

Podemos fazer um estudo da situação cultural anterior à chegada dos espanhóis. Nesta época, percebemos um conjunto de culturas e civilizações diferentes, como a de Tihuanaco[2] e Aymará[3], que, infelizmente, temos poucos relatos, apenas arqueológicos. Sabe-se que os Aymarás produziam plantas adaptadas ao clima seco, entre elas, batatas e quinua, além de serem pastores de lhamas e alpacas. No século XII, houve a junção de vários povos sob forma de subjugação do Império Incaico. Com a sucessão, os jovens Atahualpa e Huascar e a chegada dos espanhóis, acontece a queda e surge uma nova ordem cultural e política, ou seja, uma nova sociedade.

Esta nova sociedade, na verdade nada mais era que a adaptação dos moldes anteriores, o que havia mudado era os líderes. Como diz Ciro Flamarion Cardoso:

"Estas estruturas, contrapuseram-se, mas também se combinaram em intensidades diversas e com resultados diferentes conforme as regiões."(OSÓRIO apud CARDOSO,1985, P.8).

Evidentemente, essas relações de trabalho refletem, e muito, em todos os países de colonização espanhola, mas principalmente no Peru/Bolívia. Atualmente, a situação política sofreu grandes mudanças, entre elas a redemocratização em 1980, e com ela a busca das minorias pelos espaços de poder do país. Em 1985, a situação da economia era catastrófica, assim como a do povo boliviano, segundo a revista Visão:

"A situação chegou a níveis tão dramáticos que há quem duvide possa ser o próximo presidente chamado de vencedor: para exercer o cargo precisará de coragem, criatividade, genialidade(...) sistema produtivo se encontra totalmente esfacelado, que está submetido a uma inflação de ritmo galopante, que apresenta um déficit fiscal superior à metade de seu produto interno bruto e uma situação de completo caos econômico e financeiro(...) o presidente Hernán Siles Suazo e os partidos políticos com representação no parlamento acertaram a antecipação das  eleições(...) A situação social é igualmente dramática na área social: pode-se dizer que a sobrevivência dos 6 milhões de habitantes do país é um milagre(...) Se, a cada hora, nascem entre 27 e 30 crianças, de acordo com os registros do Ministério da Saúde, cerca de metade morre na hora seguinte." (Visão, 1985 p. 20)

 Anos após, em 2003, o então atual presidente Gonzalo Sanchez de Louzada, que representava a camada social dos brancos (descendentes de europeus), que são apenas 15% da população boliviana, tinha instalada em seu governo uma enorme crise, que não se restringia a economia e as discussões sobre as concessões e o uso do gás natural, mas se espalhava por todos os assuntos mal resolvidos na Bolívia, sejam eles sociais, políticos ou étnicos. Com a crise, assume o vice presidente Carlos Mesa, que em uma citação de Vinícius Betsur Alvarenga Fernandez diz:

"Em seu discurso de posse, Mesa ressaltou a necessidade da busca da paz interna, bem como a importância da participação de todos os grupos e de todas as etnias (quéchuas, aymaras e todas outras). Mesa assumiu, ainda, o compromisso de levar a cabo um referendo vinculante sobre a questão do gás boliviano." (Alvarenga Fernandez, 2003, p.3)

O presidente Mesa percebeu claramente a necessidade da união para a "Nação boliviana", já que para defender as questões referentes aos interesses do país, necessita-se de um país uno. Em 1985, o presidente eleito Victor Paz Estenssoro, já falava em "união nacional".Também temos um passado de explorações que levaram os bolivianos ao temor de novas perdas. Para se ter uma idéia, Potosí na época do Peru/Bolívia, ou seja, à época da dominação espanhola na América explorava uma enorme quantidade de ouro e principalmente prata foi levada para a Europa, assim como o salitre entre outros produtos. Junte a isso guerras[4] perdidas no pós independência e perda de territórios. Está criado um cenário de crise, e se toda América é conhecida por "barril de pólvora", para a Bolívia explodir, falta apenas o "fósforo". Com a ascensão à presidência do país, o ex-deputado Evo Morales – presidente do movimento ao socialismo (MAS), o cenário mudou radicalmente. Agora vários grupos subjugados tinham voz ativa na política, tanto no campo social, como no econômico. Os cocaleiros, plantadores da folha de coca, tem apoio de Evo, que apoia esse movimento cocaleiro, sendo que nos governos anteriores os presidentes apoiavam os EUA no combate as plantações de coca. Os Aymarás e Quéchuas tentam ter maior acesso às riquezas do país. Mas, tanto agora na ascensão de Evo, que pode ser considerada uma "revolução", como na revolução de 1952, a elite branca reagiu com grande repulsa aos direitos a maioria indígena e promoveu sanções. Quem sabe venha daí a grande dificuldade de se saber qual é realmente a identidade, ou quem seria o boliviano?

Com a vitória de Evo Morales os grandes proprietários de Santa Cruz, ficaram temerosos com o novo paradigma, além de temer uma possível reforma agrária, o que simplesmente mudaria, e muito, a pirâmide social do país.

Tal como nas treze colônias da América do Norte (atual Estados Unidos), mesmo independentes, o habitante se dizia virginiano, e não estadunidense. Na Bolívia, será mais fácil ver pessoas se identificando como quéchuas, aymarás, entre outros grupos, do que bolivianos. Em muitas vezes se confrontam por espaços vitais, financeiros, sociais e culturais. Como líder enérgico, Evo sabe se usar das desigualdades que a maioria indígena tem em relação a classe rica e lutar contra essas mesmas desigualdades socioeconômicas e as atitudes racistas, e assim está provocando mais conflitos no país, não que ele tenha esta intenção, mas devido às divergências múltiplas, até movimentos separatistas assombraram o país, sendo que quatro dos nove departamentos, Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija declararam autonomia econômica. Percebemos por meio deste trecho que fala sobre a nova constituição, como o país se divide:

 "A recepção popular à proposta da nova Carta Magna evidenciou uma profunda cisão nacional. O apoio a Morales foi claramente preponderante nas "terras altas andinas" da metade oeste do país, onde se encontra a sede do governo, La Paz, e onde vive a maioria indígena. Nas "terras baixas amazônicas" do leste, por outro lado, o projeto não contou com igual respaldo. A região, coberta por vegetação amazônica e inserida no espaço denominado "Meia-Lua", por seu formato no mapa, concentra quase a totalidade das reservas de hidrocarbonetos do país, além da maior parte das áreas de agricultura e pecuária. A principal cidade da "Meia-Lua", Santa Cruz de la Sierra, é o mais importante centro econômico da Bolívia e reduto dos principais opositores de Morales."

(RANDING,2008)

Questão Simbólica

Mas, se nessas questões é impossível imaginar um "povo boliviano", em que os comandantes do país podem se firmar? As respostas podem ser várias.  Teria que ser algo que identificasse o povo por completo. O que parece mais adequado de dizer é a cultura, a simbologia e tudo que há de comum na forma de o ser boliviano se enxergar, que é o que cria a identidade nacional. Para Leslie White, antropólogo norte-americano contemporâneo:

"Todo o comportamento humano se origina no uso de símbolos (...) Toda cultura depende dos símbolos. É o exercício da faculdade de simbolização que cria a cultura e o uso de símbolos que torna possível a sua perpetuação. Sem o símbolo não haveria cultura".(WHITE, 1955).

No caso da Bolívia podemos usar a citação de Pierre Bordieu, ao afimar que:

"O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade de aqueles que não querem saber que eles estão sujeitos ou mesmo que o exercem" (BOURDIEU, 2006)

Mas, na Bolívia não há a cumplicidade nessas relações de poder simbólico, e há "diferentes universos simbólicos" dentro do mesmo país ou ainda, segundo a sociologia simbólica, as classes dominantes constroem símbolos à sua maneira, a qual for melhor para seus interesses.

Alguns considerados símbolos da cultura boliviana são a escarapela, objeto que desde a Revolução Francesa serve de identificação da nacionalidade, sempre presa a cinta, a flor de Kantuta (que possui as cores da bandeira), o salar boliviano, a gastronomia (uma comida carregada de batata e cebola, e a famosa empada de batata e a gelatina de vinho tinto). A dança é uma mistura das culturas das sociedades espanhola, inca, amazônica e até africana, sendo a principal dança a "Cueca". Quem sabe até mesmo a folha de coca, sendo que assim os cocaleiros alegam que por ser uma prática de séculos, uma prática dos antepassados autóctenes, seria a verdadeira essência da Bolívia, ou seja, desses símbolos citados seria o único que teria ligação com o passado indigenista, e que não teria nenhuma influência dos colonizadores espanhóis. Mas, nesse caso, não é somente a cultura que influência, já que a plantação de folha de coca é uma questão de discussão ética e política mundial. Sabe-se muito bem que a cultura boliviana nada mais é que a junção de várias culturas, e que ela não surgiu de maneira fácil e pacífica.

Considerações finais

Quem sabe o "segredo" da identidade nacional não exista. A união do povo boliviano, para o tão sonhado "Estado-Nação", pode ser o respeito à individualidade e as várias Bolívias dentro da Nação. A idéia de identidade nacional deve ser analisada com cuidado

"a essência da identidade étnica: a saber quando, uma pessoa ou grupo se afimam como tais, o fazem como meio de diferenciação em relação a alguma outra pessoa ou grupo com que se defrontam; é uma identidade que surge por oposição, implicando a afirmação do nós diante do outros, jamais se afirmando isoladamente. Um indivíduo ou grupo indígena afirma sua etnia contrastando-se com uma etnia de referência, tenha ela caráter tribal (por exemplo, Terênea, Tükúna,etc.) ou nacional (por exemplo, brasileiro, paraguaio etc.) O certo é que um membro de um grupo indígena não invoca sua pertinência tribal, a não ser que quando posto em confronto com membros de uma outra etnia." (OLIVEIRA, 1976).

Assim, a união vem na oposição, a Bolívia tem várias Bolívias, a Bolívia Quéchua, a Bolívia Aymará, a Bolívia Branca, e todas elas sofrem confrontamentos. A identidade como forma de união nacional somente poderá se fortalecer realmente, se essas identidades étnicas se reconhecerem como tais e forem respeitadas suas diferenças. Como em todo lugar onde há ou supostamente existe esta tal identidade, ela está no respeito as várias identidades e regionalismos do próprio país.

REFERÊNCIAS:

ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Lendas e Tradições das Américas, arqueologia, etnologia e folclore dos povos latino-americanos: Ed Hermus

AMÉRICAS, 1978, n 3, pág 11-15, Santa Cruz De La Sierra

AMÉRICAS, 1979, n 54, pág 90-111 Habitantes dos Altiplanos da Bolívia

BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico: Ed Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2006.

CARUSO, Raimundo; CARUSO, Mariléia. Bolívia Jakaskiwa: Ed Inti editorial, 2008.

COLÓQUIO: Artes, 1984, n 61, pág 60-62, As artes na Bolívia

GEERTZ, Cifford. A intrepretação das culturas: Ed LTC, Rio de Janeiro, 2006.

KLEIN, Hebert S. A Bolívia da Guerra do Pacífico à Guerra do Chaco, 1880-1932 In: Bethell, Leslie (coord.). História da América Latina: Cinco Séculos. São Paulo: Ed da Universidade de São Paulo, 2006.

OLIVEIRA, Roberto Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo, ed Pioneira, 1976, cap I.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Os (des)caminhos da identidade. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 2000, v. 15, n. 42, pp. 07-21. ISSN 0102-6909. .

OSÓRIO, Helen. Estrutura socioeconômicas coloniais In: Wasserman, Claúdia (coord.). História da América Latina: Cinco Séculos. Porto Alegre: Ed da Universidade, UFRGS, 1996.

PRADO, Maria Lígia Coelho. América Latina no século XIX: Tramas, Telas, e Textos. Ed. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.

RANDING, Rodrigo Wiese, Crise Política na Bolívia: Reflexo de um país dividido ou de um Estado sem Nação? Boletim de Análise de Conjuntura em Relações Internacionais - ISSN 1518-1219, 2008.

VISÃO, 1985, n 8, pág 20-21, O Caos arrasa o país.

VISÃO, 1985, n 32, pág 26-27, Paz, de novo.

www.pucminas.com/conjutura consultado dia 22 de janeiro de 2009.



[1]  Usamos aqui neste artigo o conceito de Cultura defendido pelo antropólogo norte americano Cifford Geertz, segundo ele : "Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado." (2006, p. 15)

[2]  Tihuanaco ou Tiwanaco, é uma antiga cidade de pedra abandonada, que se localiza no altiplano boliviano, sendo importante como sítio arqueológico

[3] Uma das etnias da Bolívia contemporânea, assim como os Quéchuas.

[4] Em "guerras perdidas no pós independência", leia-se as guerras do Pacífico, perdida para os chilenos e ao do Chaco, perdida para os paraguaios, todas duas por volta do fim do século XIX.