IDENTIDADE E DIFERENÇAS: para uma antropologia do eu e do outro

Neri de Paula Carneiro – [email protected]

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

 

Atualmente pode ser redundante a afirmação de que vivermos num mundo ultraconectado, principalmente para os que nasceram no mundo já dominado pelas tecnologias informacionais, no que podemos chamar de mundo tecnovirtual ou universo infovirtual. Entretanto o interessante disso não é a afirmação, mas o significado e as consequencias dessa realidade.

Talvez uma das primeiras e mais significativas implicações desse mundo seja o fato de, cada vez mais, termos a impressão de que as distancias e as fronteiras, antes tão grandes e rígidas, hoje quase que se apagaram. As fronteiras, de fato continuam a existir, mas passaram a ser quase que somente uma formalidade convencionada, pois com o avanço da virtualidade elas deixam de existir como podemos constatar nas transações econômicas; além disso, transita-se pelo mundo com o passaporte da virtualidade. Em virtude disso as distâncias se encurtam não só pela facilidade de acesso, mas porque todo que é distante pode ser acessado tornando-se uma presença virtual. O universo infovirtual cria e recria, aproxima extremos, escancara a privacidade. Nada mais é distante, tudo acontece dentro de nossos lares; nascimento, vida e morte ocorrem em nossa sala: na tela da TV ou do computador. Para usar as palavras de Fonseca (2010, p. 129) “O mundo está dentro de nossas casas, nas diferentes localidades. Nosso cotidiano é perpassado pelas coisas do mundo”

Outra conquencia das inovações que facilitam nossas vidas é o fato de que no mundo ultraconectado, infovirtual, já não há mais espaço para a privacidade. Câmaras e aparelhos de escuta perscrutam cada canto de nossas vidas, com tanta exatidão e minúcia, que temos a impressão de já não cabermos mais no mundo. Instituições públicas e privadas sabem mais de nossa vida do que nós mesmos. Frente a isso indagações antes apenas com tonalidade científica passam a ser, também, existenciais: ainda é possível falar em identidade cultural? Existem elementos diferenciadores entre as sociedade e culturas? Tem sentido a defesa dos elementos locais ou devemos mergulhar na “aldeia global”?

Neste ponto não só a filosofia, como a sociologia e, talvez principalmente, a antropologia, pode nos ajudar não só a explicar como também compreender e apontar rumos para o mundo que construímos e que parece estar fora de controle e numa encruzilhada; além de estar nos sufocando.

E, do ponto de vista individual, podemos dizer que nossa identidade nos diferencia, mas como falar a respeito das diferenças sociais, culturais...?  O que é aquilo que nos identifica e nos distingue não somente enquanto indivíduos, mas como sociedade? Em que consiste isso que chamamos de diferenciador cultural?

Por influência do darwinismo, no início da antropologia social, o projeto de dar conta da diversidade cultural levou naturalistas e historiadores a debruçarem-se sobre os relatos de viajantes; exploradores e administradores coloniais que falavam sobre “as exoticidades” das sociedades “inferiores”; incivilizadas; simples, em relação a uma visão industrial da técnica; e, finalmente, primitivas, por serem mais remanescentes de formas antigas, primeiras, da evolução das sociedades humanas. O relativo isolamento geográfico destas sociedades e povos contribuiu para esta visão. Assim, a Antropologia Social, partindo de questões evolucionistas importantes para os estudiosos do século XIX, ficou vista como “ciência das sociedades primitivas”. Mas com a persistência destas sociedades em resistirem até a atualidade de forma bastante diferente da tradição européia, colocou um problema crucial para esta visão evolucionista e etnocêntrica da diversidade humana. Este fato motivou variações ao longo da história da disciplina e de seus conceitos. Os antropólogos voltaram-se, a partir dos próprios resultados das pesquisas nestes povos com “culturas diferenciadas”, para subgrupos ou sub-culturas no interior das sociedades “complexas” (VERANI, 2011)

A antropologia, portanto se coloca a questão da identidade – o que é especifico de uma cultura – em busca dos elementos que a tornam diferente das demais sociedades com as quais se relaciona ou sobre a interferência e interação entre os grupos sociais. O ponto de partida é a constatação das diferenças. Entretanto, não se pode dizer que o ponto de chegada seja a identidade, pois o que identifica algo, ou um grupo social, pode não ser, exatamente, sua diferença, mas a constatação de que não existem sociedades puras, pois todas estão, de alguma forma, conectadas com outras sociedades. E nessa interconexão prevalecem os processos de interação.

 

Eu e o outro

Quem sou eu? Essa indagação pode ser o ponto de partida para quem pretende responder à inscrição do Portal de Delfos, a qual teria impulsionado a filosofia socrática (“conhece-te a ti mesmo”). Para qualquer “eu” se conhecer deve partir da indagação sobre sua identidade. A questão pode ser posta da seguinte forma: O que me torna “eu”, diferenciando-me dos “outros”?

Não se trata de plagiar a bíblia, mas e primeira resposta a essa indagação pode ser a afirmação de que sou o que sou. Mas para “ser o que sou”, primeiro tenho que saber que não sou outro. Sendo o que sou posso acrescentar a afirmação de Ortega y Gasset: “eu sou eu e minhas circunstâncias”. Esse “Eu” é o indivíduo que tem consciência: sou porque tenho consciência do meu ser. Além disso, tenho consciência das circunstâncias que me envolvem e me levam ao “outro”, além do fato de que “minhas circunstâncias” também são exteriores a mim, e, portanto, são “outro”. Esse “outro” podem ser as pessoas com as quais me relaciono ou as realidades físicas, abstratas, imaginárias ou virtuais com as quais mantenho contato.

Isso nos leva a afirmar que o “eu”, consciente da individualidade se obriga a se reconhecer em contato e contraposição ao “outro”. O “eu” não é o “outro”, mas só se entende na relação com o “outro”, pois se não existisse outro não haveria sentido em afirmar a individualidade do “eu”.

Muito mais do que a constatação aristotélica (2009) da sociabilidade do ser humano – o estagirita buscava a essência do ser humano – a afirmação do “eu’ em relação ao “outro” é uma forma de autoconsciência. Portanto não me entendendo apenas como “eu”; não sou isolado, mas um ser de relação. Entretanto o meu “eu” se afirma ao negar que esse eu seja o outro ou um outro. Sou “eu” sem ser o “outro” – embora o outro, para si mesmo seja um “eu”, para quem eu sou o seu outro. O “outro” é parte das minhas circunstâncias, mas não sou “eu”. Importa lembrar, na afirmação Gasseniana, que  “ela mostra claramente que nem eu, nem aquilo que nos cerca - a circunstância - é tudo. O fundamental é o eu me encontrando com essa circunstância, isto é, a minha vida" (HORTA, 2011. grifo no original). Portanto, sou um ser de relação. E o mesmo autor continua: “Isso não significa que cada pessoa não possa trazer a sua própria perspectiva, mas que, certamente, ela se desenvolverá na medida de sua interação com os outros. A vida é sempre convivência.” (HORTA, 2011).

Na convivência definimos nossa identidade pessoal na medida em que nos diferenciamos do outro. Somos capazes de nos definirmos porque nos diferenciamos.

 

Uma antropologia do Eu e o Outro

Como vimos, do ponto de vista pessoal o “eu” e o “outro” podem ser compreendidos numa relação interativa em que “eu” não sou o “outro”.  Mas o que é o “eu” e o “outro”, para a reflexão antropológica? Aqui não se está falando do indivíduo, mas de uma coletividade. Também está presente a idéia da relação, entretanto não são indivíduos que estão relacionados, mas grupos sociais. E se falamos em grupos sociais, falamos, também de culturas. As manifestações culturais também estão em relação, pois elas são manifestações das pessoas que formam os grupos.

Do ponto de vista da antropologia, o Eu referido não é o indivíduo em si; nem tampouco o é o Outro. O eu é sempre um ser coletivo, transcendental, é a cultura que está embutida em cada indivíduo; o Outro é simplesmente uma outra cultura, uma cultura que se coloca como objeto de entendimento. (GOMES, 2009, p. 53).

Desse ponto de vista podemos dizer que a cultura é um elemento definidor da identidade de um povo. Cada sociedade é o que é, porque construiu a sua cultura, ou as suas concepções de mundo. Ao longo de sua história cada povo construiu sua cultura: sua língua, seu folclore e costumes, sua religião e suas manifestações artísticas, sua forma específica de relações familiares, sua história e seu patrimônio histórico, entre outros elementos típicos e definidores do povo. Mesmo relacionando-se com outros povos e outras culturas, esse “eu cultural” se autodefine pelas suas diferenças em relação aos seus vizinhos, aos “outros” que também se constituem a partir de características específicas.

E assim, se nos perguntássemos o que define ou identifica cada povo, seriamos levados à seguinte resposta: sua cultura. A identidade do povo é sua cultura e a sua cultura é seu “eu”.

E o outro?

Em relação a esse eu cultural todas as demais culturas são “outros”. O “outro cultural” nada mais é do que uma cultura distinta daquela a partir da qual se fala. Por isso o Brasil, embora adote o português como língua oficial, não é Portugal nem Angola, onde também se fala português. Para nós o Brasil é o nosso “eu cultural” enquanto Portugal e Angola são “outros”: outros países, outras culturas, outras realidades, outros povos, outras necessidades, outras formas de solucionar problemas. Mas só podemos falar desse “outro” a partir da contextualização e um “eu” que caracterizamos como nossa “cultura brasileira”

Ao longo da história, cada sociedade se autodefiniu numa relação de contraposição em relação a outras sociedades. Podia ocorrer por vezes que em um amplo território como ocorria no império romano, por exemplo, existiam subculturas, em geral formadas pelos povos dominados. Entretanto o dominador impunha sua língua, seus costumes principais, seus deuses, sua crença, de forma oficial. Essa situação produzia constante insatisfação e constantes revoltas – caso típico dos judeus, sob domínio grego e romano – dos vencidos que pretendiam manter seus elementos culturais sem a intervenção dos estrangeiros. Tudo em nome da identidade, da preservação do “eu” nacional contra as intervenções do “outro” dominador.

Podemos observar que no transcurso da história, diferentes grupos humanos se organizaram definindo sua identidade nacional-cultural. Esse fenômeno pode ser observado, por exemplo, na África, onde as nações tradicionais se organizaram independentemente e antes da chegada do europeu colonizador que interferiu como um “outro”, alterando as relações das diversas nações, além de redefinir fronteiras de acordo com os interesses europeus. O mesmo fenômeno se deu na América onde os diferentes grupos indígenas já haviam definido sua identidade antes da chegada dos colonizadores. Entretanto o contato com o colonizador produziu profundas alterações, tanto que algumas nações descaracterizaram sua identidade – ou foram exterminadas – no contato com o colonizador.

Notamos, nestes dois exemplos, que a relação do “eu” (das várias nações africanas ou americanas) e o “outro” (colonizador europeu) produziu uma descaracterização do “eu” (africano/americano) em favor do “outro” (europeu). A África, que ao longo de milênios havia produzido um efervecente caldeirão multiracial/multicultural/multiétnico foi transformada em um emaranhado de nações com características européias ao ponto das guerras locais terem se transformado em um entreposto comercial para os interesses, as armas e guerras dos europeus (inicialmente no processo colonizador e depois no processo imperialista); da mesma forma na América: as inúmeras sociedades e nações altamente desenvolvidas foram transformadas numa estranha mistura de países em que prevalecem quatro línguas européias (inglês, português, espanhol e francês) se sobrepondo às inúmeras que existiam no período pré-colombiano e onde as diversificadas praticas religiosas foram como que unificadas num amalgama cristão. Sem contar o florescimento dos “cultos afro-brasileios” em que se misturam elementos indígenas, africanos e cristãos.

Com base nisso podemos dizer que o “eu” das nações africanas e americanas pela interferência do “outro” europeu se descaracterizou ao ponto de, nos dias atuais, a América ter se convertido em poucas expressões de culturas sincretizadas e a África ter se transformado em um continente de muitos conflitos. Ao lado dos atritos pré-coloniais foram acrescidos outros que se instalaram com a interferência colonizadora européia.

Com o transcorrer dos últimos séculos algo semelhante ocorreu também na Europa, num complicado processo de redefinição da identidade cultural das nações européias.

No séc. XIX, o nacionalismo político e sua vertente romântico/folclorista, se uniram fazendo com que as tradições dos agrupamentos étnicos e socioculturais se ordenassem em invólucro jurídicos e territoriais a que chamam de nações. Estabeleceu-se que ter identidade equivaleria a ser parte de uma nação. Baseados neste ideário, as políticas culturais foram concebidas como espaço de conservação e administração do patrimônio histórico acumulado em territórios definidos (PINTO, 2004).

Observando esse processo notamos que o “eu cultural”, definidor de uma nação ou de uma sociedade, recebe interferências e se transforma. Não deixa o seu “eu” para ser o “outro” que lhe influencia, mas ao mesmo tempo, incorpora elementos novos. E assim o “eu’ se renova; e isso sempre ocorre na e a partir da relação com o “outro”. Mais do que apenas relação, desenvolve-se um processo de interação cultural, pois da mesma forma que os indivíduos, também as culturas não estão isentas de interferências: elas interagem e, mesmo mantendo sua identidade, incorporam elementos do “outro” aproximando-se cada vez mais, diminuindo cada vez mais as diferenças... num processo exatamente oposto ao etnocentrismo, pelo qual o grupo em questão, o “eu cultural” se fecha aos demais, ao novo ou ao “outro”

Mas isso implica dizer que haverá uma só cultura universal?

 

Identidade e diferenças no universo interconectado

Ao longo de sua história o ser humano desenvolveu a vida social, fazendo-se cada vez mais um ser de relação, não por ser naturalmente social/político, como propõe Aristóteles (2009), mas por que possui necessidades e, na medida em que cria soluções para essas necessidades, produz novas necessidades. Portanto, quanto mais se torna um ser de relação mais cria necessidades individuais e sociais.

Para melhor se inserir e ampliar as possibilidades nesse universo relacional os grupos humanos desenvolveram os diferentes processos de comunicação, armazenamento e transmissão de informações, chegando ao ponto de, nos dias atuais, criar o universo virtual como um dos alicerces e prolongamentos do universo humano. Nesse universo “tecnovirtual” as modernas tecnologias de produção, comunicação e informação acabam se sobrepondo ao homem. O ser humano e a sociedade humana, vem se tornando, progressivamente, dependente do universo infovirtual e tecnovirtual.

Nos anos 1980, Raul Seixas lançou uma música (As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor) na qual sintetizava e explicitava esse universo virtual (naquela época ainda em formação) ao mesmo tempo de dependência e de fragilidade ao lado das interferências sofridas e exercidas. “A civilização se tornou tão complicada / Que ficou tão frágil como um computador / Que se uma criança descobrir / O calcanhar de Aquiles / Com um só palito pára o motor”. Essa realidade é uma constante, não só nos gandes centros que vez por outra sucumbe em algum “blakout”, mas também nas pequenas vilas e cidades que dependem de sinais digitais, telefonicos, televisivos; nos caixas eletronicos e na emisssão de notas fiscais eletronicas. Qual de nós ainda não passou pela infeliz situação de chegar em um caixa eletrônico onde se lê a catastrófica mensagem de “fora de serviço”? reflexo das “crianças” com seus “palitos”, parando os motores do “monstro sist”, como diz a música.

Os processos de comunicação e interação vêm se desenvolvendo com o ser humano desde suas origens, entretanto com a chegada da era virtual agiganta-se uma nova perspectiva não só nas relações entre os povos e culturas, como também da relação do homem com as tecnologias. Além de aumentarem as dependências em relação a elas, constata-se um aumento das interferências das e nas culturas locais: as fronteiras entre o “eu’ e o “outro” estão diminuindo; existem atividades profissionais que podem ser desenvolvidas num país distante a partir da residência pessoal – Uma empresa, ou um indivíduo, pode prestar um serviço e receber por ele, sem ao menos conhecer ou fazer contato pessoal direto com o contratante – eliminando as fronteiras e todos os elementos diferenciadores das culturas bastando para isso o domínio de uma língua comum (neste caso a linguagem da informática), caracterizando a sociedade tecnovirtual ou o universo infovirtual.

Nesse universo torna-se cada vez mais pertinente a indagação sobre a identidade e as diferenças. Isso pode ser observado no momento em que elementos e personagens distintos e distantes acabam se unindo por intermédio de uma língua comum que não é a língua praticada na sociedade de origem. Sendo a língua um dos elementos definidores da identidade, e sendo necessário o domínio de uma nova língua comum, que não é a própria de nenhum dos envolvidos no processo, acaba se manifestando as características de uma nova manifestação cultural, na qual um “eu social” se relaciona com um “outro social” e ambos interagem tornando-se um novo eu social que se desenvolve e produz uma nova cultura, uma nova identidade. Esse terceiro é tão distinto do eu como do outro, embora desenvolva-se pela interação entre ambos, em uma cultura de personagens que se relacionam à distância

Assim, o eu e o outro, cada um com sua identidade específica, interagem criando uma nova identidade, com linguagem e valores específicos, os quais só os identifica enquanto atores sociais daquele universo infovirtual.

Sabemos que no século XX, a noção clássica de identidade se dissolve e se reposiciona diante dos avanços dos meios de comunicação fazendo com que essas políticas enfrentem hoje a perda de sua eficácia. Embora grande parte da produção artística continue sendo feita como expressão de tradições nacionais (música, artes plásticas, literatura) permanecendo como fonte do imaginário nacional, existe um setor cada vez mais extenso de criação, difusão e percepção das artes que se realiza de modo desterritorializado, cosmopolita e virtual. (PINTO, 2004).

Estamos, portanto, num novo universo, que vários teóricos vem denominando de cibercultura, (LEVY, 1999): o universo virtual  que se desenvolve a partir da internet e do ciberespaço. Trata-se de uma nova realidade, a realidade virtual.

O ciberespaço pode ser, portanto, considerado como uma virtualização da realidade, uma migração do mundo real para um mundo de interações virtuais. A desterritorialização, saída do "agora" e do "isto" é uma das vias régias da virtualização, por transformar a coerção do tempo e do espaço em uma variável contingente. Esta migração em direção à uma nova espaço-temporalidade estabelece uma realidade social virtual, que, aparentemente, mantendo as mesmas estruturas da sociedade real, não possui, necessariamente, correspondência total com esta, possuindo seus próprios códigos e estruturas.

A emergência da cibercultura provoca uma mudança radical no imaginário humano, transformando a natureza das relações dos homens com a tecnologia e entre si. (GUIMARÃES JR, 1997)

O que se vem chamando de cibercultura, portanto, é um dos elementos pelos quais as diversidades e as diferenças culturais são minimizadas; é o elemento pelo qual os diferentes sujeitos se percebem como possuidores de traços comuns de identidade. Os diferentes se identificam no processo da geração de uma nova cultura, a cultura cibernética, a cultura do universo infovirtual.

Esse novo mundo que vem se formando e transofrmando a partir do advento da universo virtual e tecnológico, nas palavras do proprio Levy (1999, p. 14), gera esperanças e problemas: “o fino enredamento os humanos de todos os horizontes em um único e imenso tecido aberto e interativo gera uma situação absolutmente inédita e portadora de esperança, já que é uma resposta positiva ao crescimento demográfico, embora também crie problemas”. Estamos diante de um novo mundo pleno de perspectivas, mas também repleto de indagações e situações problemáticas.

 

A cultura local como elemento identificador

Estamos, novamente, diante do problema da identidade e das diferenças. E aqui, uma afirmação já pode ser feita: um elementos que identifica determinado grupo social é aquilo que o diferencia dos demais. A diferença é sua identidade. Mas em que consiste esse elemento diferenciador? No fato de que se ele não existisse não haveria diferença e, dessa forma, todas as sociedades seriam iguais. Estamos, pois, falado em cultura local. É na localidade que se manifesta a particularidade, a identidade e as diverisidades. Além disso a cultura local é uma expressão da história local.

A cultura pode ser um excelente ponto de partida para o estudo da História Local. Deve-se evitar, entretanto, o equívoco de identificar cultura com as produções artísticas. Arte é cultura, mas cultura é mais que arte. Tanto para a antropologia como para a filosofia e a história a cultura pode ser vista como o resultado de um processo produtivo: a produção material da sobrevivência humana. Pelo trabalho – produção material da sobrevivência – os humanos interferem na natureza produzindo e reproduzindo as relações sociais ao mesmo tempo em que constroem as diferentes edificações, expressões artísticas, indumentárias, elementos do folclore e dos comportamentos. Todas essas e outras produções humanas são manifestações culturais.

A cultura interessa à história na medida em que manifesta a própria existência humana. Desde a pré-história até nossos dias uma das principais formas de compreender o processo evolutivo humano é pela análise das manifestações culturais. (CARNEIRO, 2011)

Não podemos nos esquecer, entretanto, que o local é resultante de aspectos mais amplos. Essa relação do local com o geral/global/universal produz a cultura local, elemento caracterizador da identidade de cada localidade ou grupo social que é único, mas em relação. A sociedade local – o eu social especifico – desenvolve-se, como que a partir de uma síntese de elementos culturais provindos de outras sociedades – novamente o “eu” e o “outro” se relacionando e interagindo.

uma realidade local não contém em si mesma, a chave de sua explicação, pois os problemas culturais, políticos, econômicos e sociais de uma localidade explicam-se pela sua relação com outras localidades, outros países e, até mesmo, por processos históricos mais amplos. (SCHIMIDT; CAINELLI, 2010, p. 138)

A diversidade nacional, por exemplo, é uma marca distintiva do Brasil, em relação a outras nações. Na França ou na Inglaterra não existem as manifestações culturais que por aqui encontramos. Mesmo a quadrilha, de origem francesa, não é, no Brasil, a mesma dança de salão que a originou. A Europa que colonizou o Brasil implantou aqui sua marca, suas características, mas não há possibilidade de confundirmos Europa e Brasil.

E no caso de Brasil, sabemos que aqui se juntaram europeus, africanos e diversos povos autóctones, cada um dos três grupos, com sua cultura. Dessa interação se desenvolveu o “povo brasileiro”, conforme análise de Darcy Ribeiro (1995). Ao mesmo tempo, cada região brasileira possui suas particularidades que as faz única. Para quem está na região Amazônia sabe que ela é distinta do sul. Da mesma forma que existem elementos típicos do sul do Brasil que o tornam inconfundível: o sotaque, os pratos regionais, as manifestações da cultura popular, danças típicas... são elementos distintivos. Da mesma forma que não encontraremos manifestação carnavalesca como aquela que existe no Rio de Janeiro, em nenhuma outra região, embora haja carnaval em todo o país; em várias localidades existem as festas de boi, mas aquela de Parintins é inconfundível.

Mesmo quando falamos em localidades geograficamente bem próximas e que possuam práticas culturais semelhantes, elas serão únicas. Exemplo disso ocorrem nas cidades de Pimenta Bueno como em Rolim de Moura (RO). Em ambas se realiza a “festas do milho” mas cada uma tem suas particularidades... e assim por diante, cada localidade pode ser identificada pelo quê e porque possui elementos que a diferenciam de outras. Por isso podemos dizer, com Fonseca (2010, p. 115), que “a realidade brasileira é diversa, plural e complexa, com diferenças regionais, geografias variadas e níveis sociais, econômicos e culturais distanciados.” Mas tudo isso é o Brasil, é a identidade nacional que caracteriza um “eu nacional”

Então como entender as particularidades, as características específicas de cada localidade ou de cada “eu cultural”? Tudo isso está presente nos elementos folclóricos, manifestações da cultura popular, na gastronomia, nos eventos realizados. Mas a sociedade ou a cultura não se resume a isso. Também formam o “eu cultural” as diferentes contradições sociais, os problemas e relações econômicas, os conflitos e alianças políticas...

Diante dessas características o “outro” vê essas e outras manifestações e sabe que essa cultura é diferente da sua. E, como mais um elemento da cultura nacional, as diferenças regionais acabam virando “piada”, como nos diz Fonseca (2010, p. 115): “viajando por este Brasil, aonde quer que vá, para além das fronteiras de sua região, um mineiro, um gaúcho, um nordestino, ou um baiano depara com algumas construções imaginárias que preconceituam sua identidade”. E a autora continua comentando as particularidades regionais como elemento formador de sua identidade: “Observo que essas ‘conversas’, disputas, casos, piadas, estão presentes em nosso cotidiano e fazem parte do processo de construção e reconstrução de nossa identidade”. (FONSECA, 2010, p. 116).

Podemos observar, portanto, que aqueles elementos que nos identificam ou que identificam a localidade onde nos encontramos, ou ainda, que caracterizam nossa identidade é aquilo que nos torna diferentes. Ninguém sai do Rio de Janeiro e se dirige a Parintins, pensando que lá encontrará uma grande manifestação carnavalesca. Da mesma forma que se um gaucho chegasse a qualquer de nossas cidades, no interior de Rondônia, e nos visse preparando carne assada saberia que essa não é a “forma gaúcha” de preparar um churrasco. Isso significa que mesmo recebendo influências externas ou em sua origem, a localidade em que vivemos é diferente, pois possui uma identidade própria. E essa identidade – a cultura local – foi produzida pela ação dos atores sociais que produziram essa localidade. A identidade local, portanto, forma-se no transcurso da história.

A identidade local, portanto, não é algo pronto, mas se forma e se transforma pela ação humana. O homem, como ser em transição e transformação age no mundo, fazendo do mundo algo dinâmico dinamizando as relações econômicas, sociais, políticas, artísticas, folclóricas... e tudo isso forma a cultura ou os elementos determinantes da cultura. Nesse processo o homem, ser trabalhador, cria cultura e as culturas identificam os grupos humanos, distinguindo as sociedades. O homem produz cultura onde vive e a cultura local o diferencia e o identifica. Por isso a ação humana, que é uma ação cultural, será sempre única e aquilo que nos identifica e nos diferencia. E assim a identidade de cada sociedade é a sua diferença em relação às demais e o que diferencia as sociedades sempre é aquilo que só aquele grupo social é capaz fazer, de produzir ou sua forma de se comportar.

Além da gastronomia, dos eventos locais, das festas, do folclore, a cultura popular, a identidade e as diferenças dependem de vários outros elementos. Porque determinada localidade se dedica prioritariamente à atividade agrária ou agropastoril e outra se desenvolve como zona industrial? Porque uma determinada cidade se destaca como centro de ensino superior e outras se dedicam prioritariamente ao comércio? Porque determinada iguaria é apreciada em uma localidade ou região e não em outras? No caso específico de Rondônia, porque algumas cidades atraíram maior número de colonos que outras? Quais os elementos culturais que esses colonos trouxeram de suas regiões de origem?  A resposta a essas indagações é o que caracteriza a identidade de cada grupo social, o “eu” que se diferencia dos “outros” eus.

 

Referências

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CARNEIRO, Neri P. A construção da História e História Local: Desafios ao Professor. In. <www.webartigosos.com>.  Publicado em 04 de junho de 2010 disponível em <http://www.webartigosos.com/artigos/a-construcao-da-historia-e-historia-local-desafios-ao-professor/39691/> Acesso em 15/12/2011

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GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: ciência do homem, filosofia da cultura. São Paulo: Contexto, 2009

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HORTA, Sylvio R. G. A Experiência da vida: Subsolo da Filosofia. Disponivel em: <http://www.hottopos.com.br/regeq5/expdvida.htm> Acesso em 3/9/2011

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PINTO, Mércia de Vasconcelos. Identidade Cultural, Palestra realizada durante o Encontro Nacional dos Estudantes de Arquitetura (ENEA) em 15 de julho de 2004, no Restaurante Estação 109, Comércio da 109 Sul, Brasília – DF. Disponível em: <http://www.arq.ufsc.br/urbanismo5/artigos/artigos_pm.pdf>. Acesso em 15 de junho de 2011

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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