Iararana: mitologia e a releitura da representação colonial


Genilson Dias

 

No auge da lavoura cacaueira no sul da Bahia construiu-se um imaginário que representaria uma nação, a Nação Grapiúna. A literatura foi uma das forças na formação desse imaginário e dentre os autores destacam nomes como Jorge Amado, Adonias Filho, Sosígenes Costa, etc. É este último, autor de Iararana, que destacaremos aqui.

O poeta baiano Sosígenes Marinho da Costa nasceu no dia 14 de novembro de 1901 na cidade litorânea da zona cacaueira, Belmonte, onde realizou os seus primeiros estudos, mais tarde lecionou e viveu até seus 25 anos de idade. O nome Sosígenes é de origem grega, o mesmo nome de um astrônomo nascido em Alexandria que viveu no século I a.C e que contribuiu para a reforma do calendário romano, transformando-o no calendário Juliano. Chamado carinhosamente pela família e amigos de Nisinho, era um sujeito muito tímido e de espírito crítico, revelando muito cedo o seu grande talento, pois, assim que aprendeu a ler e a escrever passou a escrever em forma de poemas tudo que falava à sua imaginação.

            Insatisfeito com a baixa remuneração pelo seu trabalho como mestre-escola, ainda em Belmonte, Sosígenes vai morar em Ilhéus e passa a trabalhar como telegrafista dos Correios e Telégrafos e secretário da Associação Comercial de Ilhéus. Foi nesta cidade que ele viveu a maior parte de sua vida e onde dinamizou sua produção literária. Daí passou a ter contato com os intelectuais do meio literário, tanto em Ilhéus como em Salvador. Suas criações literárias saiam espessamente em jornais e revistas, porém não permitia a publicação de sua literatura, era contra a promoção pessoal, com isso, sua única obra publicada em vida foi Obra Poética, lançada pela Editora Leitura, com insistências dos amigos e quando já estava aposentado e morando no Rio de Janeiro, isso em 1959.

            Sosígenes Costa viajou pela Europa e a Ásia, ficando um bom tempo na China, e com motivação pela literatura moderna, passou a fazer parte do grupo modernista Academia dos Rebeldes, juntamente com pessoas do porte de Jorge Amado, Guilherme Dias Gomes, Walter da Silveira, Edison Carneiro, entre outros. Faleceu no dia 5 de novembro de 1968 quando pretendia lançar um novo livro, postumamente foram lançados os livros Obra Poética II e Iararana pela editora Cultrix.

            É a segunda obra mencionada que nos ateremos neste trabalho. Iararana foi lançado pela editora Cultrix de São Paulo em 1979, sob a coordenação do poeta José Paulo Paes, com ilustrações do artista plástico Aldemir Martins e apresentação de Jorge Amado. Iararana se filia à linha primitivista de Macunaíma, de Mário de Andrade e Cobra Norato, de Raul Bopp, representa, também, juntamente com Cacau, de Jorge Amado, as obras que inauguram o ciclo do cacau na literatura baiana.

            Por falar em Jorge Amado, é ele que faz a apresentação do poema Iararana, reconhecendo o potencial e a grande obra deixada por Sosígenes Costa. Jorge encerra a apresentação falando sobre o

poeta do mar, poeta do cacau, poeta social marcado por seu tempo, tão requintado e ao mesmo tempo tão popular, pois grande parte de sua obra se baseia na vida do povo e dela se alimenta – folclore, hábitos, expressões, humanismo – ele ficará nas nossas letras como uma dessas grandes árvores isoladas que se destacam na floresta (PAES, 2001, p. 397)

            Após as relevantes palavras do autor de Tenda dos Milagres, a obra em questão traz um roteiro de leitura escrito por José Paulo Paes em que este vem falar sobre a trajetória de Iararana e introduz a leitura do poema. Intitulado Iararana ou o Modernismo visto do quintal, fala do anacronismo da obra que foi lançada com quarenta e cinco anos de atraso, justificado por Paes pelo fato de Sosígenes viver longe dos centros irradiadores de cultura na revolução modernista e por não fazer tanta questão de ter suas obras publicadas. Obra anacrônica, porém diferenciada, uma vez que Sosígenes “não se contentava em imitar os corifeus do Modernismo paulista, mas procurava dar, a quanto fazia, um timbre pessoal” (PAES, 2001, p. 402).

            Iararana é um poema épico, dividido em quinze cantos, com longos poemas, estrofes irregulares, métrica variada e apresentando uma unidade narrativa em que reinventa miticamente a região cacaueira no sul da Bahia. A linguagem é recheada de coloquialismos, regionalismos, vocábulos tupi e vocábulos afro, permeado pela mitologia grega, indígena e africana. O título da obra significaria, grosso modo, “a falsa iara”, pois José Paulo Paes argumenta que “Iararana é a falsa iara, a iara branca, mestiça, nascida da violação da mãe-d’água do Jequitinhonha por Tupã-Cavalo, o centauro invasor” (PAES, 2001, p. 404). Esse citado invasor é a personagem principal da obra e representa o colonizador europeu e sua invasão às terras brasileiras.

A chegada e as características do invasor é descrita no canto II:
 
 
─ Esta anta com cabeça de gente não era anta, meu neto.
Aquilo era cavalo com cabeça de gente.
Era cavalo da Oropa com feição de mondrongo.
Veio da Oropa o danado descobrir este rio. (canto II, p. 437)
 

            Dessa forma, Tupã-Cavalo representa o anti-herói em Iararana, é um ser monstruoso que irá iniciar um processo civilizador nas terras brasileiras e implantar o cultivo do cacau na costa baiana. Fazendo referencia ao “achamento” do Brasil pela nau portuguesa em 1500, só que, diferente da versão dos colonizadores como Pero Vaz de Caminha e sua famosa carta, aqui é a visão de colonizado do que representou esse acontecimento. Em relação ao cultivo do cacau, Tupã-Cavalo, após prosperar o fruto pela terra grapiúna, vai passear na “Oropa” para se vingar dos responsáveis pela sua expulsão daquelas terras e levar o “manjar do cacau”, mostrando, assim como na história verídica do Brasil, o processo colonizador de levar as riquezas aqui existentes.

            Quando chegaram às terras brasileiras os europeus exploraram de todas as formas possíveis o potencial aqui existente, fazendo maldade como Tupã-Cavalo fez:

 

Esse bicho da Oropa foi o diabo neste rio,
foi pior do que o chupa arrasando o Papagaio.
Ele fez guerra com espingarda aos cabocos do mato
e venceu os cabocos e escorraçou o Pai-do-mato
e ficou no lugar dele e se chamou dono da gente. (canto II, p. 438)
 
 

            Esse monstro se tornou o dono de tudo, inclusive da Iara, que foi estuprada e desse estupro nasceu a Iararana. Com isso, ele despertou o ódio por parte dos verdadeiros donos da terra: “Mas caboco com ódio o chamou Tupã-Cavalo/ pois tinha corpo de cavalo e andava de quatro pés/ e só era gente, lá nele, até o imbigo, pode crer.”

            Essa descrição faz lembrar a figura mitológica do centauro que, na mitologia grega, é um ser metade homem, metade cavalo. Com relação ao nome Tupã, ele representa na mitologia indígena o Deus do trovão, assim, Tupã-Cavalo é a hibridização entre a mitologia grega com a mitologia nativa.

            Da mesma forma que este personagem, outros vêm representar os mitos, seja europeu, africano ou indígena, é assim com Oxum, Hebe, Caipora, entre outros. O primeiro citado é de origem africana, representa uma divindade da religião ioruba que é a deusa dos rios, filha de Iemanjá casada com seu irmão Xangô; o segundo vem da mitologia grega, trata-se da personificação da juventude e é filha de Zeus e Hera e o Caipora que é originário do tupi e significa “morador do mato”.

            Assim sendo, esses aspectos mitológicos e folclóricos são, como disse Jorge Amado, recorrentes na obra de Sosígenes Costa e contribui de forma híbrida para o enriquecimento cultural e histórico da literatura sosigeneana. Sosígenes Costa escreve Iararana para (re) contar a trajetória do cacau e da civilização grapiúna, fazendo uma releitura da história de colonização na Bahia e consequentemente do Brasil, possibilitando outras leituras da nossa história.

Referências

ATHAYDE, Eduardo. Belmonte e seus filhos ilustres. Disponível em: www.lemossilva.com.br/sosigenes_biografia.htm. Acesso: 17/07/2012.

BRAGA, Reinan (UESC). A representação em Iararana. In: Revista Fórum Identidades, Ano 3, volume 6/jul-dez de 2009. Disponível em: www.200.17.141.110/periodicos/...6/SESSAO_L_FORUM6_09.pdf. Acesso: 29/06/2012.

CALDAS, Aline de; SANTANA, Gisane Souza. Iararana e a Carta de Caminha: focos sobre a construção da nação brasileira. Disponível em: www.uesc.br/icer/artigos/iararana.pdf. Acesso: 15/07/2012.

COSTA, Sosígenes. Iararana.

GILFRANCISCO. O poeta Sosígenes Costa. Disponível em: www.arquivos.com/gilfrancisco6.htm. Acesso: 17/07/2012.

PINA, Patrícia Kátia da Costa. Iararana, de Sosígenes: a insólita invenção mítica da sociedade sul-baiana. In: GARCIA, Flávio et al (org.). Insólito Mitos Lendas Crenças – conferencias. Disponível em: www.dialogarts.uerj.br/arquivos/vii_painel_ii_enc_nac_confer.pdf. Acesso: 15/07/2012.

SANTANA, Gisane Souza. Mito fundador, narrativas e história: a representação identitária sul-baiana em Iararana. Disponível em: www.uesc.br/ebecult.pdf. Acesso: 16/07/2012.