UM

A base lunar chinesa estava com trinta anos, o maior orgulho patriótico do gigante asiático. “Somos os primeiros a ter uma colônia permanente na Lua”, sempre repetia a imprensa de Pequim. Os americanos, russos, canadenses, europeus, japoneses e sul-coreanos optaram por uma base lunar conjunta – por razões orçamentárias óbvias – que foi inaugurada dez anos depois da chinesa. Mesmo assim, a microbase multinacional, como jocosamente a China a apelidou, comportava apenas 40 estudiosos, enquanto a chinesa acomodava confortavelmente 200 cientistas – todos homens. As bases distavam apenas 15 km entre si, ambas no pólo sul lunar.

Foi quando a China deu início a um projeto científico, de longo prazo, que deixou os psicólogos, psiquiatras, sociólogos, antropólogos, e outros estudiosos da mente, do comportamento e do caráter humanos, eufóricos.

Os cientistas chineses decidiram batizar a cobaia humana de A-Luno. Caso a experiência fosse bem sucedida, os próximos seriam B-Luno, C-Luno, etc...

Como reagiria um ser humano, que não conhecesse a Terra, e viesse a conhecer o planeta azul depois de adulto, já com 25 anos de idade?

Quando o projeto ultra-secreto chinês vazou para o restante do mundo, a opinião pública ocidental pressionou para que não se concretizasse. Os Direitos Humanos clamavam: “isso é de uma crueldade inominável”, vociferavam os meios de comunicação. Foi em vão. Nada iria parar a maior superpotência do mundo. Com medo de retaliações econômicas, talvez até militares, as nações se calaram.

Os cientistas chineses podiam trabalhar em paz.

Não havia como fazer A-Luno nascer na Lua, havia o temor de que o indivíduo simplesmente morresse quando enfrentasse a gravidade terrestre – seis vezes maior do que a lunar – por razões fisiológicas. Sua musculatura e constituição óssea não estariam desenvolvidas. Esse risco – de nascer na Lua – estaria reservado para B-Luno.

O espermatozóide e o óvulo que dariam início à experiência foram escolhidos pelos mais conceituados geneticistas chineses. A gestação foi acompanhada diariamente. Seria um experimento rigidamente controlado: até os quatro anos de idade, A-Luno viveria em um ambiente aqui na Terra, construído especialmente para esse fim. Uma espécie de laboratório. Grosso modo, podia-se dizer que era a primeira fase da experiência. Tudo seria idêntico à base lunar chinesa, inclusive as cores, a atmosfera da base lunar, e a presença exclusiva de homens. Isso evitaria que A-Luno tivesse qualquer lembrança da Terra. Nutricionistas decidiam qual deveria ser a dieta de A-Luno. Os cientistas chineses só não conseguiram reproduzir a fraca gravidade lunar.

Tão logo completou quatro anos, A-Luno foi posto para dormir, e levado para a Lua. Já acordaria na base chinesa. Começava a segunda fase da longa pesquisa.

DOIS

Muitos cientistas da base lunar chinesa estavam eufóricos, prontos para receber o ilustre “visitante”, na verdade uma cobaia. Uma enorme área da base lunar foi reservada para a experiência, o que deixou amuados os cientistas de outras áreas. “Temos estudos geológicos e astronômicos mais importantes do que essa bobagem psicológica”, resmungavam. É claro que a base chinesa não paralisou as outras atividades, mas o foco, a partir de então, era A-Luno.

No início, a criança de quatro anos se divertiu bastante com a gravidade baixa do satélite, dava pulos de alegria, brincava até se cansar, como qualquer criança normal. Com o passar dos meses, seu organismo se adaptou à baixa gravidade, como estava previsto. A-Luno fazia fisioterapia, ginástica e musculação duas vezes ao dia, pois os cientistas sabiam que seu corpo deveria estar pronto para tornar a enfrentar a forte gravidade terrestre, quando estivesse com 25 anos. Médicos receitavam suplementos vitamínicos e minerais, e exposição a uma luz especial, que substituía a luz solar.

Quanto ao ensino, A-Luno aprendeu Chinês, Matemática, rudimentos de Física e Química. Na matéria de Astronomia, a mentira era necessária, caso contrário o experimento se tornaria inútil. Foi dito a A-Luno que “a Lua era o único corpo celeste habitado, mas os cientistas estavam se esforçando para alcançar a Terra”. A-Luno admirava a bola azul no céu, através de uma vidraça da base lunar chinesa, e sonhava com o dia em que, finalmente, a ciência se tornaria capaz de alcançar o astro. Nada mais foi ensinado a A-Luno sobre a Terra. Não lhe foi “permitido” conhecer o Sol – fazia parte da mórbida experiência chinesa.

Evidentemente, A-Luno não tinha acesso a todas as áreas da base. Não podia desconfiar que era a cobaia de “uma grandiosa experiência, que irá revolucionar as Ciências Humanas”, conforme as palavras dos governantes chineses. Na verdade, A-Luno era um prisioneiro da ciência, e nem sequer sabia de sua condição.

Por segurança, A-Luno implantou um marcapasso aos 22 anos, quando já se tinha a certeza de que não cresceria mais. Havia a remota possibilidade de que seu coração não resistisse à fortíssima gravidade, durante a reentrada na atmosfera terrestre. Não se podia desperdiçar dinheiro público dos cofres chineses, caso houvesse um fracasso.

Dois meses antes de completar 25 anos, A-Luno estava na academia, entediado, fazendo sua fisioterapia diária, quando foi interrompido.

– A-Luno, A-Luno, disse um cientista chinês. Temos ótimas notícias! Desenvolvemos um veículo capaz de nos levar à Terra. Você foi escolhido para ir conosco, a viagem será daqui a dois meses. Todos iremos dormir e já acordaremos no planeta azul.

Não era verdade, apenas A-Luno iria dormir.

Quando saiu do recinto, os outros cientistas, que observaram tudo através de câmeras, brincaram com o colega:

– Se algum dia a Agência Espacial Chinesa te demitir, você pode trabalhar como ator. Todos caíram na gargalhada.

Começaria a terceira e última fase da experiência, a mais importante.

A imprensa do mundo inteiro – não apenas a mídia chinesa – batizou a experiência de Homem da Lua.

Para a ciência, era apenas A-Luno.

TRÊS

– Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um. Ignição!

O potente foguete chinês decolava do pólo sul lunar, trazendo uma das mais importantes experiências científicas da História.

O coração de A-Luno não parou, e os médicos e fisioterapeutas puderam respirar aliviados.

A-Luno acordou na Grande Pequim, em um enorme quarto, ainda com as mesmas cores da base lunar chinesa, e a mesma atmosfera respirada pelos chineses na Lua.

– “Por que meus músculos estão tão fracos?”, sussurrou A-Luno, ainda sob efeito do poderoso sonífero.

– É a gravidade terrestre, respondeu um cientista.

Foram necessários apenas quatro meses de fisioterapia intensa para que o organismo de A-Luno estivesse perfeitamente adaptado à gravidade.

– “Quando vamos explorar o corpo celeste?”, perguntava A-Luno aos cientistas.

Era a hora de contar a verdade para A-Luno. Toda a verdade.

Foi levado a um auditório, onde ouviu uma palestra de três horas sobre a experiência, e sobre como ele, A-Luno, era a razão de ser de tudo aquilo. Confuso é uma palavra muito pequena para expressar o estado mental de A-Luno, após a preleção.

A terceira fase da pesquisa diferia em um ponto importante das primeiras duas fases: a ordem era para que a cobaia fosse deixada à vontade, para interagir com outros indivíduos, inclusive com o sexo oposto – até aquele ponto de sua vida, A-Luno só tinha visto homens.

Literalmente livre, poderia ir onde quisesse, e fazer o que bem entendesse. Suas reações seriam atentamente observadas – e registradas – por psicólogos, psiquiatras, pedagogos, cientistas sociais, antropólogos, filósofos e até poetas.

A-Luno foi levado para conhecer Pequim. Sua primeira reação foi um problema respiratório gravíssimo com o ar superpoluído da grande metrópole. Seus pulmões estavam acostumados com a atmosfera estéril da base lunar.

Os médicos já haviam previsto essa reação, mas nada que a avançada Medicina chinesa não pudesse resolver, por meio de medicamentos e da milenar acupuntura. Ou pelo menos, aliviar.

Um ano e meio depois...

– O Sr. Presidente da China irá recebê-los em quarenta minutos, senhores.

Os cientistas estavam apreensivos. Como explicar o desperdício de bilhões do erário chinês, com a morte de A-Luno?

Após quase uma hora de explicações, tentando acalmar o furioso chefe de Estado, o psicólogo-chefe da experiência tomou a palavra:

– Sr. Presidente, vamos encerrar lendo o bilhete de suicídio de A-Luno, escrito semana passada. Alertamos que é um texto caótico, para dizer o mínimo, provavelmente um reflexo do estado mental de nossa cobaia. Nossos especialistas em análise do discurso ainda não chegaram a um consenso.

“Aos cientistas que me trouxeram à Terra:

A Lua não era o único corpo celeste habitado? Como vejo centenas e centenas de pessoas, falando minha língua, aparentemente iguais a mim, cada vez que abro a janela? (não deu para entender a letra, Sr. Presidente)... água com gosto muito ruim, garganta ardendo, tosse... esse barulho infernal... parece um pesadelo, esse tal de automóvel... (não deu para entender a letra, Sr. Presidente)...

...como daquela vez em que subi uma colina, tentando alcançar a Lua, querendo voltar pra casa, pro meu amado lar... (não deu para entender a letra, Sr. Presidente)... tudo o que consegui foi ficar cansado... Por que a Lua, minha casa, muda de tamanho várias vezes por mês... isso me irrita demais... Já tentaram me explicar as tais fases da Lua, mas não entendi nada...

(uma página e meia do bilhete está ininteligível, sr. Presidente)

Essas pessoas me fazem perguntas, mas não entendo nada do que me cerca... Essa tal de televisão... morte... ainda não entendi direito o que é a morte... (não deu para entender a letra, Sr. Presidente)... essa bola brilhante, que vocês chamam de Sol... cega meus olhos...

...esse excesso de cores me irrita profundamente... ainda confundo os nomes das cores... sonho com o cinza e branco da Lua, minha verdadeira casa... acordo suando muito... (há uns rabiscos, Sr. Presidente)... a comida estranha da Terra... excesso de odores me enoja... sabores esquisitos... vomitar... urinei na cama várias vezes, durante o sono... humilhante... (mais rabiscos, Sr. Presidente)

O tal cachorro... um ser nojento, que defeca no chão... jardim zoológico, nunca pensei que houvesse lugar tão feio... essa água caindo do céu... chuva... não entendo bem a finalidade... a tal bicicleta lembra um exercício que sempre fazia na minha casa... (ele se refere a uma academia de ginástica que temos em nossa base lunar, Sr. Presidente)

O que são mulheres, estranhos seres com volumes na frente do peito, cabelos longos, e cheiro diferente? Por que provocam uma reação incômoda em meu pênis?”

(não deu para entender a letra, Sr. Presidente, mas nossa cobaia desenhou vários seios, pênis e vulvas nas duas páginas seguintes)...

– “Ensinamos noções de Arte e Desenho a A-Luno”, disse, orgulhoso, o psicólogo, que recebeu ordem de continuar lendo:

“Os senhores me ensinaram rudimentos de Química, assim posso fabricar um veneno... (não deu para entender a letra, Sr. Presidente)... poder acordar na Lua... minha casa... esse pesadelo horrível...”

– Ele não assinou, Sr. Presidente. “Que falta de educação, esquecemos de ensinar bons modos a A-Luno”, pensou o psicólogo chinês, mas não teve a ousadia de falar.

O presidente da nação mais poderosa do planeta dispensou a todos, tinha uma reunião urgente com o Ministro de Comércio Exterior.

Mesmo após o suicídio de A-Luno (com quase 27 anos de idade), havia farto material de pesquisa, principalmente para a Psicologia, Psiquiatria, Pedagogia e Sociologia, para deixar os cientistas ocupados – e empregados – pelos próximos anos.

Logicamente, não haveria B-Luno, para felicidade dos geólogos e astrônomos chineses, que agora poderiam jogar tênis, na espaçosa base lunar.