Querido amigo Antônio, peço sua permissão para contar nossa breve história.

Quando entrei na sala de convivência não havia ninguém sentado á mesa. Uma pessoa ocupava uma das cadeiras em frente á TV.

Os pacientes do hospital-dia haviam rareado. Somente eu permanecia.

Depois de tanto tempo, eu me sentia parte do ambiente, como o pé de comigo-ninguém-pode que ficava mais viçoso á cada dia, coisa estranha naquele ambiente insalubre. Periodicamente eu o examinava minuciosamente, em busca de alguma anomalia.

Era esperado que, com as drogas que recebia diariamente-descartadas por pacientes rebeldes- ocorreria alguma mutação á qualquer momento.

Talvez seus ramos começassem a crescer desordenadamente como aquele cajueiro lá do Norte. Ou, na melhor das hipóteses (Para meu deleite), se transformasse numa planta carnívora e passasse a olhar os estudantes de medicina com vigoroso apetite.

Olhei-a. A criatura sentada em frente a TV. Pernas esticadas, olhos fixos na tela enquanto passava um programa qualquer.

A indiferença dela me intimidou e eu não disse meu costumeiro bom dia.

Na verdade, acho que nem percebeu minha presença, tão absorta estava.

Sentei-me logo atrás e enquanto esperava a medicação passei a observá-la de soslaio, depois descaradamente.

Tentei perscrutar seu rosto, analisei seu corpo, seus cabelos. Sua voz seria crucial para resolver a charada.

Alta, muito magra, pele branca e ressequida, longas coxas e compridas canelas descarnadas.

Os cabelos ralos de um castanho desbotado iam até seus ombros.

O programa de tv não me interessava. Acendi um cigarro e analisei cada gesto que ela fazia. Era como se eu não estivesse ali.

Usando o avental do hospital que caía frouxo como sobre sacos de ossos, ficava quase impossível dizer se era homem ou mulher.

Aquela esquisitice toda me incomodava, dava urticária, aguçava minha curiosidade. Torcia para que ela desistisse da tv e me notasse. Fiquei sentada muito quieta, observando-a.

Foi quando entrou o enfermeiro e com um sorriso radiante disse: Bom dia Antônio!

Então era homem! Chamava-se Antônio! Fiquei mais radiante que o sorriso do enfermeiro, feliz por ver resolvido uma questão tão importante.

De volta recebeu um bom dia balbuciado numa voz muito próxima á feminina, mas resvalando fortemente na masculina.

Que droga! Todas as dúvidas voltaram e deram um nó na minha cabeça.

Peraí... Então já não conheci mulheres que assumiram nomes masculinos? E a voz? Que grande droga! Afinal Antônio era homem ou mulher?

Tanta ambiguidade me enervou.

As gotas do meu soro pingavam lentamente e por uma hora estive ali solitária na companhia de meu indiferente amigo andrógino.

Consegui sussurrar um bom dia e até logo quando saí. Posso jurar que não ouvi resposta.

Durante aquela semana sempre que eu chegava ele já estava lá, em frente a TV. Eu dizia bom dia, ele respondia sem tirar os olhos da tela.

Alguma coisa me atraia nele. A solidão me acompanhava desde que meus colegas de tratamento foram tendo alta e eu fui ficando, ficando e ficando.

Como dizia meu Médico: “Seu sistema é lerdo, recomeçou quase do zero, então evolui devagar. Temos que chegar lá.” Depois de mais de três anos meu sistema tartaruga nunca chegou lá, então eu me dei alta. Mas esta é outra história.

Acho que eu já estava me acostumando com a presença quieta do Antônio, e já não me sentia tão sozinha.  Afinal, ele estava ali!

De vez em quando até me interessava pelo que ele estava vendo e era reconfortante a ideia de que compartilhávamos alguma coisa.

Os dias passaram e gostaria de lembrar como foi que quebramos o gelo.

Talvez tenha sido num daqueles dias em que levei bolo e convidei todos a comê-lo. Talvez simplesmente eu ou ele tenhamos chegado ao outro e começado um papo.

Acontece que a partir daí nos falamos todos os dias e ele me fazia companhia á mesa, enquanto o soro pingava lentamente e queimava minhas veias.

Enquanto tive sua companhia nunca mais abri o controle de gotejamento para que o soro acabasse logo e eu pudesse fugir dali o mais rápido possível.

De que falávamos? Não me lembro! Acho que do tempo, de tudo um pouco. Menos das nossas vidas.

Nunca lhe perguntei nada pessoal, íntimo. Nem ele á mim. Não tínhamos essa necessidade. Éramos felizes assim.

Somente nos dissemos o que fazíamos ali. Eu com meu tratamento interminável que me obrigava a ir ao hospital de segunda a sexta, ele com seu tratamento que se arrastava por longos meses.

Eu gostava de levar mimos aos pacientes, uma fruta, um doce, salgadinhos, bolo... Especialmente para ele, passei a levar cigarros.

Uma manhã, após se sentar ao meu lado disse:

-Vou ter que ir embora, vou receber alta.

Soou-me um tanto inseguro, um tanto resignado.

Não pude deixar de pensar como alguém poderia gostar de “morar” em um hospital.

 Esperava um pouco mais de alegria, na verdade uma alegria eufórica para quem estava de alta e ia voltar para casa, para o aconchego da família e tudo mais.

Fiquei um pouco triste. - Aquela tristeza egoísta de quando alguém recebe alta e você nada...

-E para onde você vai?

- A assistente social conseguiu permissão para que eu fique três meses no albergue até terminar meu tratamento, depois disso vai ver o que consegue para mim.

-Olha, vamos fazer assim, eu trabalho numa Ong alguns dias por semana e você pode ir me visitar, faço questão disso. Vou sentir muito a sua falta. Minha sala é a última do corredor, vai lá e diz que quer falar comigo. Fico sozinha, poderemos conversar a vontade.

-Quando vai receber alta?

-Amanhã á tarde.

Abri a bolsa e procurei algum dinheiro.

-Pegue isso, deve dar para o cigarro da semana. Vão te dar abrigo e comida, mas cigarros não! Ri-me sem graça.

Ele pegou o pouco dinheiro e guardou no bolso. Agradeceu.

Fiquei nas pontas dos pés e lhe abracei apertado. Só então percebi o quanto ele era alto.

-Mas prometa que irá me ver. ok? E lhe passei um papelzinho onde escrevi o endereço.

Deixei-o ali, parado feito uma estátua e me perguntei se realmente voltaria a vê-lo.

Naquela época as coisas não andavam muito bem para mim, tinha uma loja falida e cheia de dívidas, um processo de pedido de pensão que se arrastava á meses.

Felizmente alguns de meus familiares me ajudavam mandando algum dinheiro e alimentos.

Pegava uma cesta básica de alimentos na Ong e mais algum dinheiro por ajudar na costura.

Foram dias muito difíceis em que a possibilidade de viver de caridade me aterrorizava dia e noite.

Fiquei muito feliz com a visita do Antônio. Mal entrou fechei a porta e matamos a saudade num abraço apertado. Eu quis saber tudo, como eram as acomodações, se a comida era boa, se o tratavam bem...

-Sim, tudo esta bem, disse com um sorriso acanhado. O único problema é que não posso sair para trabalhar, me sinto muito mal com isso. Estou liso, sem dinheiro algum.

-Hum... Uma pessoa sem um tostão no bolso não é ninguém. É muito humilhante! Vamos fazer o seguinte, toda quinta você vem me ver e eu te arrumo um pouco, não é muito, dá para os cigarros e talvez um refrigerante, umas balas, sei lá... Mas te arrumo tá bom?

Só lhe peço que não conte á ninguém, fica entre eu e você, esta bem? Se alguém ficar sabendo podem pensar que não preciso do trabalho e podem dar o lugar pra outro, entendeu?

Um dia ele chegou meio estranho, inquieto. Pensei logo que algo o havia chateado. Fechei a porta e o abracei.

-Que bom que veio, eu estava me sentindo um pouco só hoje. Como estão as coisas?

-Está indo... Meu tratamento logo termina e vou ter que ir para outro lugar.

-Isso é muito bom, mas vou sentir muitas saudades.

-Tem uma coisa que preciso lhe perguntar.

Desliguei a máquina de costura e puxei a cadeira para meu lado.

-Senta aqui. O que foi?

-Não devem lhe pagar muito aqui! Você é aposentada?

-Verdade! Pagam-me cem reais e estou brigando por uma pensão. Porque pergunta isso agora?

Antônio levantou-se de um pulo e começou a sussurrar como se alguém pudesse nos ouvir:

-Não posso mais aceitar seu dinheiro!

-Por quê?

-Você precisa dele! O que me dá te faz falta!

-Por favor, aceite! Você também precisa. Vou me virando, tenho pessoas que me ajudam e á você não! Pegue, por favor, vou me sentir melhor assim.

Estendi-lhe as mirradas notas que ele pegou relutante, abraçou-me e saiu sem nada dizer.

Passou-se uma semana sem ele aparecer, mas quando na próxima também não veio fiquei cismada e montes de possibilidades passaram pela minha cabeça.

Será que ficou doente e estava internado? Será que foi embora sem se despedir? Ou está magoado comigo por alguma razão que desconheço?

Sem concentração para trabalhar, desliguei a maquina e fui até a sala da Assistente Social.

-Milene, você tem notícias do Antônio?

-Ele esta bem, logo será transferido. O tempo dele no albergue esta terminando, agora temos que arrumar outro lugar para ele.

Aquela conversa me pareceu um tanto estranha, tinha algo ali que eu não entendia.

-Qual a cidade dele? Onde mora a família dele?

Milene acendeu um cigarro, tragou e soltou a fumaça lentamente.

-Contatei a família. Três vezes e não obtive êxito. Eles não o querem lá.

Sua voz soou cansada, talvez por tantas intermediações sem resultados ou por já conhecer a fundo a criatura humana e suas mazelas.

Entendi de imediato a falta de visitas; o nunca ter mencionado os pais, um cachorro, um melhor amigo, um irmão ou qualquer coisa que tenha a ver com família.

No último dia em que apareceu, fechou ele mesmo a porta, puxou a cadeira e sentou-se bem a minha frente.

-Porque faz isso por mim?

-Porque você precisa! Um homem sem um tostão no bolso anda de cabeça baixa!

-Já me disse isso. Mas eu não mereço sua bondade!

-Porque fala assim?

-Não sou a boa pessoa que você pensa que sou. Sou um assassino! Matei uma pessoa.

As palavras saíram rasgando a garganta, carregadas por anos de culpa e remorso.

Permaneci como estava. Nada se alterou em mim, nenhuma batida mais forte do coração, nem um piscar de olhos a mais.

Somente minha alma transbordou de compaixão e peguei suas mãos.

Estava ali, diante de mim, uma criatura sofrida, aquebrantada pelas mazelas da vida, punindo-se pelos atalhos que nem sempre escolheu, pelas duras pedras que a vida pôs em seu caminho.

-Meu pai me expulsou de casa quando descobriu que eu gostava de meninos. A cidade era pequena onde todos se conheciam.

Era escandaloso demais para aquela gente e extremamente vergonhoso para um pai, ter um filho veado.

Fui para a vida somente com algumas peças de roupas, sem dinheiro e sem destino.

Certeza somente a de que tinha que sair de lá. Não era meu lugar!

Passei a vagar pelas rodovias, pegando carona com caminhoneiros ou a quem interessasse. Qualquer direção me servia. Importava que eu tivesse teto, companhia, comida e algum dinheiro.

Nessa época deixei meus sonhos, algum resquício de talento e qualquer grande coisa que eu poderia vir a ser, para viver do meu corpo.

Veio o desejo súbito e imperioso de me travestir e pela primeira vez, dentro daquelas roupas femininas, me senti inteiro.

Passado um tempo, cansado daquela vida cigana, deu-me vontade de ter um cantinho, um lugar para onde voltar. O meu lugar!

Fui então para São Paulo, onde disseram ser um lugar de oportunidades.

Não foi tão fácil. Não havia oportunidades para mim. Não consegui arrumar trabalho.

Meu dinheiro estava no fim e já não daria para pagar a espelunca onde estava dormindo.

A possibilidade de dormir sob as marquises, embrulhado em papelão como vi inúmeras pessoas fazendo, me deprimia.

Eu havia perambulado pelas ruas á noite e sabia onde os travestis se reuniam.  Vi os carros parando. Tinham boa clientela.

Ansioso, esperei a noite chegar, então me produzi e deixei a espelunca determinado a não por os pés mais ali.

Era um pouco cedo, mas para cada canto que olhava havia uma bicha ocupando o lugar. Mais abaixo da rua tinha uma esquina vazia, ficava um pouco fora de mão e não deveria passar muitos carros por ali.

Naquela altura dos acontecimentos o ponto me pareceu ótimo e pensei: “Vamos lá Sheila, vamos arrasar!” 

Estava me sentindo poderosa montada nos meus saltos altos. Puxei a micro-saia um pouco mais para cima exibindo minhas longas e brancas pernas, embora um pouco arroxeadas pelo frio que fazia. 

-Muito bem menina! Vamos faturar bastante e comprar um casaco lindo amanhã.

Meus cabelos naturalmente longos e lisos me davam a confiança que eu precisava para pensar que ia me dar bem naquela noite.

Penteei-os com os dedos, jogando as mechas de um lado para o outro. Recostei-me ao poste e estava pronta, desesperada para um primeiro cliente.

Foi quando minha barriga roncou e lembrei que não tinha comido nada naquele dia que ouvi gritos do outro lado da rua.

Uma bicha louca gesticulava e gritava palavrões. Só me dei conta que o babado era comigo quando ela atravessou a rua e me atacou.

Pego de surpresa ela agarrou meus cabelos e me derrubou. Começou a socar meu rosto. Aturdido eu tentava me defender e a única coisa que entendi naquela gritaria toda, foi que o ponto era dela.

Aterrorizado vi o estilete.  Num flash lembrei as histórias de travestis com os rostos retalhados ou degolados. 

Nem sei como consegui me levantar e fugir. Corri o mais que pude com meus saltos altos, mas alguns metros á frente senti um tranco nos cabelos e fui novamente jogado ao chão.

Um brilho de lâmina passou rente ao meu nariz no momento exato em que uma de minhas mãos tocou algo sólido, pesado.

Um sentimento instintivo explodiu dentro de mim e com uma fúria que nunca antes havia sentido, golpeei lhe com o paralelepípedo, uma única vez.

Levantei-me aturdido. Uma poça ia se formando no chão. Um lado da cabeça parecia afundado e dali borbulhava o sangue, tingindo o asfalto de um vermelho quente.

O alívio que senti logo se transformou em terror e corri como quem foge do próprio diabo. Entrei por ruas desconhecidas e só parei quando não mais podia respirar.

Sentei-me num banco de uma pracinha deserta àquela hora da noite. Levei as mãos ao rosto e uma lágrima furtiva rolou e se enfiou entre meus dedos.

Uma segunda lágrima abriu comportas até então protegidas, dando vazão a torrentes que trouxe todo entulho que encontrou no caminho.

Minhas mãos estavam molhadas de lágrimas e sangue.

Meus soluços se transformaram em gritos e os gritos em urros e gemidos guturais.

Fiquei ali sentado não sei por quanto tempo, até quando só o meu coração chorava. Até minha mente ficar em branco.

Levantei-me e fui ao banheiro da praça. Lavei meticulosamente o sangue já seco das mãos e a maquiagem borrada do rosto. Alisei o melhor que pude as roupas amassadas e sujas. Tentei me recompor.

Caminhei até a rodoviária e comprei uma passagem para qualquer lugar.

Em algum lugar deveria ter um lugar para mim.

Eu, que até então ouvia sem interromper, indaguei:

-Pode não tê-lo matado!

-Eu o matei!

-Como pode ter certeza disso?

-Havia muito sangue! E a pedra era pesada.

-Leu notícias nos jornais? Viu a notícia na TV?

-Não! Fugi da cidade. Nunca tive notícia alguma.

-Alguém te identificou á polícia? Passou a ser procurado?

-Não sei! Era novato ali e usava meu nome de guerra. Não tinha endereço fixo.

-Olha... Você pode não ser um assassino! Alguém pode tê-lo socorrido.

-Não! Eu o matei!

- Você só estava se defendendo! Falei pausadamente, esperançosa de que fosse mais indulgente com ele mesmo.

Um silêncio se fez.

Então meio sem jeito disse que iria embora ao dia seguinte. Passou para me ver pela última vez. Detestava despedidas.

-A assistente conseguiu uma vaga numa casa de acolhimento para travestis.

Abri a bolsa e peguei um maço de notas um pouco maior que das outras vezes.

-Guardei um pouquinho mais porque sabia que estava para ir. Não é muito. Dá para você se virar uns quinze dias acho. Depois é contigo!

Antônio meneou a cabeça.

-Eu não mereço!

-Por favor! Você merece! Nada mudou para mim!

-Não posso aceitar!

Então faça isso por mim. Se não aceitar vou me sentir muito mal.

-Por quê?

-Me sentirei miseravelmente pobre. E isso é muito humilhante! Não sei se posso aguentar.

Ele olhou demoradamente dentro dos meus olhos e sem dizer nada apanhou as notas e guardou no bolso.

-Sinto muito por não ter mais.

Abraçou-me delicadamente e sussurrou ao meu ouvido: Obrigado!

Acompanhei-o até á rua. Nada dissemos.

Fiquei plantada na calçada vendo-o ir embora. Um sentimento de impotência me invadiu. Meu coração queria ir com ele até saber que estaria bem. Que finalmente encontrara seu lugar.

Ao fim de alguns passou, virou-se. Talvez para se certificar de que eu ainda estava lá. Eu estava!

Nossos olhos se encontraram por alguns segundos.  Então Antônio retomou o passo. Agora mais rápido e resoluto. Foi-se para sempre, sem olhar para trás.

Não pude amá-lo menos. Sequer julgá-lo.

Ele já havia feito isso.

Réu de sua consciência foi seu próprio juiz. Sem clemência não se deu o direito de defesa.  E cumpria sua dolorosa e perpétua sentença.

Jamais o esqueci.

Nunca mais tive noticias dele, embora tenha tentado saber de seu paradeiro sem resultado.

Não sei se ainda caminha sobre a terra ou encontrou um lugar melhor para viver.

Ainda tenho saudades e com o passar dos anos minha gratidão por ele só aumenta.

 Sem a sua amizade, talvez eu não tivesse sobrevivido ao sentimento de miséria e solidão que me assolava.

Meu querido amigo, gostaria muito de saber que você esta bem.

Minha eterna gratidão!