Edson Silva

O olhar frio fita a chama quente da última vela que teima em iluminar aquela casa. Na penumbra, os olhos parecem nem enxergar que a mesa está posta e farta. Só um teimoso vento quebra o silêncio ali. As cadeiras, exceto a em que está o homem dos olhos de gelo, estão vazias e misteriosamente parecem esperar, mas com incerteza, que chegue alguém. Os ponteiros do relógio avançam lentamente noite adentro, numa improvável corrida contra o tempo, como a acharem que podem detê-lo, pará-lo ou fazê-lo voltar.

Se o tempo voltasse naquele cenário, talvez alguma mudança imediatamente seria notada na mesa. Mais jovem e menos gelado, o olhar do homem talvez veria menos fartura, menos cadeiras à mesa, mas invariavelmente muito,mas muito mais alegria. Seriam ouvidos risos dos que se foram, risos dos que viriam, de novos e antigos conhecidos, de pessoas para se conhecer e saudar,além do tilintar de copos e talheres, o falar das bocas risonhas e cheias, o som da música que envolveria a todos.

Por alguns segundos, os olhos frios desviam para a penumbra da parede e mal dá para identificar a última folha do calendário com ilegível, pela pouca luz, mensagem de felicidades e esperanças de novo ano. E passam pelos olhos gélidos as lembranças das festas não comemoradas, dos vinhos não bebidos, dos sorrisos e beijos negados, dos encontros jamais concretizados. Uma lágrima escapa e para alguém desavisado a impressão é que houve apenas degelo do olhar iceberg. Exceto pelos movimentos dos olhos, o homem não se move ante a farta e solitária mesa.

Bruscamente, o homem recosta a face sobre a mesa. Isso ocorre no mesmo momento em que a vela queima os últimos restos da parafina colorida em vermelho e verde. Agora a escuridão na casa é total. A rua está iluminada e o céu também começa a se iluminar com fogos de artifício, o barulho parece se ouvir em toda parte. Já muito longe dali, os olhos de gelo se arregalam mornos e ternos. O lugar é lindo, transpira natureza, harmonia e felicidade. A paz parece tão intensa que provoca comoção e o leva a sorrir gratuitamente como criança ante ao mais desejado brinquedo novo.

E os olhos, agora quentes e risonhos, começam identificar os mais antigos e ilustres convidados que já o acompanharam em tantas mesas iluminadas. Mãe, pai, irmãos, tios, primos e amigos antigos em geral, todos ali e tão em paz. A hora é de abraços e mais do que tudo o momento já uma comemoração. E o homem dos olhos fervendo de alegria sente-se como se ele e todos aqueles a quem abraça e beija fossem brilhantes fogos de artifício riscando todo o céu. Ele nem nota na terra milhões e milhões de olhares admirados para o céu, todos sem entender o balé improvável dos fogos brincalhões, que fazem trajetórias inusitadas e não descritas em nenhum manual de instrução das embalagens.


Edson Silva, 48 anos, jornalista, nasceu em Campinas e trabalha como assessor de imprensa em Sumaré[email protected]