CARTA DO PADRE INÁCIO DE TOLOZA
Relatando a tentativa da conquista pacífica de Sergipe
Transcrevemos aqui a íntegra da carta do Padre Inácio de Toloza ao padre geral, na parte relativa às missões do Padre Gaspar Lourenço em Sergipe. Devemo-la à bondade do ilustrado Dr. Capistrano de Abreu. Acredito ser a primeira publicação deste preciosismo documento.
Agora vou cantar a V. P. o que até aqui há succedido na missão de Gaspar Lourenço?.
Viram do Rio Real, muitos índios principais das aldeias comareans que estão naquelas partes: quarentena, cinqüenta e sessentas léguas desta cidade, todos em grande desejo de levar padres que os ensinassem as cousas de sua salvação e como era gente que antes estava de guerra, sem ter commercio com os brancos, aguardou-se alguns mezes para ver se vinham bem movidos e constando claramente que Deus os trazia pareceu serviço de Deus aceitar esta empresa e assim no mês de fevereiro de 75 partiu o padre Gaspar Lourenço (que é grande língua entre eles muito afamado) com o irmão João Salonio, a ensinar-lhes as cousas de sua salvação. Enviou também o governador Luiz de Brito um capitão, com alguns homens brancos, com desejo de haver la alguma provocação. Deixo de contar o sentimento que houve em aldeia de S. Antonio, quando, se despediu dela o padre, porque todos os desta aldeia se puzeram em um pranto, sentindo muito apartar-se deles o padre, de suas almas, como diziam; e grandes e pequenos subiram com eles boa parte do caminho e se não se puzera numero na gente que havia de levar, quase todos queriam ir com ele, mas não foram mais de vinte. Pelo caminho a ocupação dele padre foi ensinar a doutrina aos Índios e brancos que iam em sua companhia.
Pela manhã, antes de começar a jornada, dizendo todos juntos as ladainhas, pedindo a Deus que os desse prospera viagem.
Já à noite no fim de sua jornada, faziam o mesmo. E como todo aquele caminho é despovoado, recolhiam-se em algumas choças que os índios faziam, onde com muita caridade repartiam com eles a pesca que tomavam e o padre provia também os necessitados. É sempre foram assim e muitas vezes descalços pelas águas que haviam de passar, mas todos foram com grande paz e alegria, até o Rio Real. Em meio do caminho pela nova a um principal, que ia com ele, porque o havia morto em sua aldeia um filho foi logo ao padre, dizendo já meu filho é morto, por ventura vai ao inferno? O padre respondeu que sim, porque não era batizado a ele com grande tristeza disse chorando: peso-me muito disto; me baptize para ser filho de Deus e não ir ao inferno.
Um principal conta a ele uma historia que eles têm por certa para explicar sua origem. Dizendo que em tempo passado, aconteceu que os seus por não
quererem ser bons, se levantou contra eles um principal e os fez guerra, e depois muito anciado tomou um dardo, e deu com eles em terra e fez que se abrissem as fontes e se apagassem todos e que elle fez uma casa de folhas muito bem tapada ahi se defendeu da água; e depois de todos mortos e a água passada, saiu e assim começaram as gerações, que a cousa é muito longa de contar. O que isto disse, acrescentando que por isto estão desunidos e não tem nada porque tudo perdeu com a água. Ouvindo o padre isto e entendendo que tinham alguma noticia do dilúvio, mas corrupta, lhe explicou a verdade, declarando lhe a historia do Gênesis, ate chegar como Noé fez sua maldição à cham, porque fez burla dele, dizendo que eles descendiam desde cham e por isto andavam todos apartados de Deus. Folgaram todos muito ouvindo isto e deram desejos de aprender as coisas de Deus.
Chegaram todos com boa disposição ao Rio Real a 28 de fevereiro e deixando o padre o capitão aposentado em lugar apto, passou a visitar uma aldeia de Índios, que estava seis léguas d?alli. Sabendo os da aldeia que vinham, saíram todos com grande alegria a recebê-los, com grandes choros, como costuma fazer, trazendo cada um algum presente ao padre, conforme sua pobreza, como farinha, batatas, e cousas semelhantes, e foi hospedado de um principal, com muitas caridades, assim ele, como todos os Índios que tinham em sua companhia, repartindo-os por todas as casas. Este principal pregava pela aldeia que havia sido causa que se perdesse a gente que em tempo passado fugiu das aldeias, e por isto fazia esta festa ao padre e o abraçando apenas o levou para sua casa. Outro dia pela manhã começou o padre a dar a razão aos principais da aldeia, de sua vinda, dizendo que vinha manifestar-lhe a lei de Deus e ensinar-lhe o caminho de sua salvação e livrá-los da cegueira em que estavam e começou logo a fazer uma maneira de Igreja para dizer missa e ensinar-lhes a doutrina, mas era tanta a gente que vinha a visitar o padre, assim daquela aldeia como das outras, que quase todo o dia gastava em trabalhos a consolá-los e assim o dia seguinte se acabou a Igreja, onde se disse missa, os ensinaram à doutrina com grande consolo de todos.
Chama-se a Igreja de S. Thomé, o apostolo, e fizeram juntos dela casa em que morassem e pudessem ter concerto religioso e de ali a poucos dias levantaram uma cruz de alguns oitenta palmos, muito formosa, e que ficou toda a gente espantada com ver a veneração, com que a haviam levantado. O principal daquela aldeia, quando se viu sem Igreja levantou as mãos para o céu, dizendo: Bendito Sr. Deus que vejo já em inteira gloria isto é o que desejava. Pesa-me do tempo passado. Logo começou o padre a ensinar-lhe a doutrina pela manhã, à tarde e a noite. Um índio de nossas aldeias ia tangendo a campainha por toda a aldeia e assim acudiam muitos diante da casa, donde o padre os ensinava as causas de nossa santa fé e o irmão tomou cargo da escola dos moços, que foram a principio cinqüenta e depois chegaram até cem e em breve tempo sabiam as orações e a um que principalmente residiu com os índios, por que para eles principalmente era enviados, acudia também com alguns brancos que estavam de ali a algumas seis léguas, consolando-os com
dizer-lhes missa e confessando-os e um dia volvendo para esta aldeia de S. Thomé os consolou Deus Nosso, porque estando em roda dela, ouviram grandes vozes diante da casa, onde moravam e era uma moça da escala de S. Sebastião que o padre havia deixado, para que vigiasse pelas casas e que estava ensinando a doutrina aos meninos das aldeias e depois os fazia persignar e santificar por si a cada um, e isto fez todo o tempo que esteve ausente, que foram nove dias.
Teve em estes dias muitas visitas dos principais do Rio de São Francisco e de outras partes; todos vinham pedir ao padre que os fosse visitar e fazer igrejas em aldeias e o principal de todos foi um índio chamado por estas partes Curubi, do qual todos se temiam, porque em os tempos passados tinha morto alguns brancos e nunca havia podido aceitar sua amizade; este em sabendo que o padre havia chegado àquela aldeia, logo o enviou a visitar por um irmão seu, pedindo-lhe com muita instancia que fosse a residir em sua aldeia, e dando conversa ao irmão para que o levasse em uma rede ao que ele não quis ir que não era bom estar com aquela ruim gente, isto dizia por que de mil almas que havia naquela aldeia de S. Thomé as quinhentas eram escravas, que em tempos passados foram de seus senhores, que estão acolhidos, dizendo que haviam sido soltos.
Despediu o padre a este índio dando-lhe esperança que o iria visitar, mas o Curubi não pode descansa, ate não trazer o padre com alguma gente de sua aldeia; foi de todos muito bem recebido e diante de todos deitou o padre uma pratica por grande espaço, com tanta eloqüência e fervor que deitou o índio espantado a não saber que responder... E assim se despediu sem fazer mais palavras. Daqui tomaram ocasião à gente entre si que não havia entrado em a aldeia com boa intenção, sim com desejos de quebrar a cabeça do padre adiante de todos, e havia alguns que estavam esperando; agora será, agora será; mas as obras mostraram que não foi esta sua intenção, sim que ficou tão confundido com a pratica do padre e tão atado de pés e mão, olhando-o e dizia que não podia mais falar e assim se tornou para sua aldeia.
Outro principal enviou em busca do padre um índio; o padre respondeu que então não podia ir; pois envia o irmão de tua companhia. Deu-lhe o padre razão que não se podia fazer. Respondeu o índio; já que não vás, nem envias nada, dá-me uma carta tua para que leve comigo, e assim foi forçado o Padre dar-lhe carta para contentá-lo. Este índio pelas aldeias por onde passava ia pregando que ia a busca do padre, porque onde estava nem conhecia quem era, nem sabiam estimar e que alguns tocavam Deus o coração para recebê-lo de boa vontade. Outros também em sabendo que ia o padre, desampararam suas aldeias e se foram a morar pela terra dentro e a uns o Padre enviou muitos recados dizendo-lhes que não temessem, porque vinha para dar remédio a suas almas; mas com isto mais se endureciam, dizendo que não queriam Igreja, sem o que haviam de mostrar aos padres e aos brancos e não só não recebiam os padres, mas enviavam recados a outras aldeias que de nenhuma maneira os recebessem, dizendo que as Igrejas não eram para filho de
príncipas, sim para apoucados e baixos e que não era outra coisa senão homem que o Padre era, terror do homem, que ele haverá sido causa de todo seu mal, todavia alguns se separando do principal, se viveram a meter com os nossos, que devem ser os que Deus escolheu para bem-aventurança.
Alguns baptismos fizeram em pessoas, que estavam em extrema necessidade (porque as demais deram ordem que não batizassem, ate estar a terra pacifica e elas bem instruídas nas coisas de nossa santa fé) que ficaram disto tão consoladas que todo trabalho que levaram todo caminho lhes parecia nada, vendo já dar remédio a algumas almas que custaram sangue do filho de Deus, que parece, não a guardavam outra coisa senão a ida dos padres para ir a goar de um creador.
O primeiro batismo foi de uma vida que estava já para expirar e vendo-a um índio Tapuia que ia a companhia do padre que apenas sabia falar a língua, veio correndo pra onde estava o padre, varrendo a casa onde haviam de morar, dizendo-lhe: vem padre, que a vida de fundo está para morrer.
Deixando tudo que tinha entre as mãos, foi logo o padre e batisou-a com a salvação a costumada, e que tornou todos os gentios atônitos, vendo aquilo, pós lhe o nome de Maria, e de ali a pouco foi goza de seu criador.
O segundo batismo foi de uma velha, que toda vida havia andado entre brancos e nunca tinha sido baptizada; visitando o padre a aldeia a achou já a cabo e depois de bem instruída nas cousas de sua salvação a baptisou com muito conselho e d?ahí a poucos dias foi gozar de seu criador. O terceiro foi de outra índia muito enferma e estando o padre falando nas coisas de sua salvação, o marido tinha já preparado para o batismo e ela com grande desejo que tinha de batizar-se, se levantou da rede em que estava muito enferma; baptizou-a o padre e d? hai há poucos dias se foi a gozar de seu criador. Estas foram às premissas do Rio e estas me parecem não ser os patronos daquela cristandade. Depois batizou o padre outros quatorze innocentes, por estarem enfermos e temer que morressem sem baptismo.
Estando as cousas desta maneira, vendo o demônio tão bom princípios na conversão daquelles gentios e que já começavam tirar-lhes as almas da boca, nas quase tanto annos senhoreavam, começou a levantar as tempestades acostumadas para impedir está obra; usou de diversos meios. O primeiro foi logo a principio. Antes que o padre partisse para o Rio Real, foram seis índios com suas mulheres da Aldeia de Santo Antonio adiante delle, sem sua licença e alguns índios do Rio Real pouco afeiçoado a Igreja, mataram, comeram e tomaram suas mulheres por mancebas.
Isto urdia o demônio, para que se travasse guerra e desta maneira se impedisse a christandade; mas o padre não supôz nada disto até estar no Rio Real, onde vendo as mulheres que pouco antes havia casado perguntou: que é de vossos maridos? Responderam chorando estas índias: mataram. Estavam alli alguns principais e disse o padre: enfim que mataste seus filhos e os comestes e sabendo que eu vinha ensinar-lhes cousas da nossa salvação.
Os que não tinham culpa, escusavam-se, mas o padre dissimulou o melhor que poude, dizendo que nem aquilo havia de ser bastante para deixa-os, tomou as mulheres aos índios que os tinham e do cuidado dela a um índio de Santo Antonio e desta maneira ficou o demônio frustrado em que desejava. Outro meio foi pelos próprios índios escravos daquela aldeia, por um deles começou a pregar que os nossos tinham por costume ajuntar os índios, fazer-lhe alegria e depois os capitval-os e entregal-os aos brancos. Outro escravo que fugiu dos brancos, foi-lhes dar as mesma novas, dizendo que bem os haviam dito e que não se ficassem nos brancos e que havia já chegado um barco com artilharia para seu senhor, e o mandou que o ajudasse a atirar, mas eu quiz, disse ele, e assim breve vereis como dão em nós e serão todos presos e captivos.
Acrescentou-se a isto que uma índia, estando os índios bebendo, que é o tempo em que ella consultou suas guerras, ouviu os dizer. Se os brancos não deram não derem guerras, mataremos nós outros primeiros e fez-se a um indo principal que morava com o padre, e disse-lhe; os índios estão em concerto de metal-os está noite, e o Curubi entra neste elleito.
Deo logo conta disto ao padre a ao que os índios com as más novas estavam não com medo dos brancos, quais todos promptos em armas, e alguns moços discutiram depois que tinham isto determinado entre si que se os brancos viessem sobre eles, que se haviam de metter todos em a Igreja e dizer-lhes: não nos captiveis, porque já somos filhos de Deus e temos igreja; mas não era menor o medo que tinham os nossos especialmente de outros brancos, que estavam na companhia do padre, porque diziam estar desapercebido ,porque não sabemos o que há de acontecer; um delles fugiu aquella noite ,com medo e foi dar rebate ao capitão que estava seis léguas dali dizendo que os indos estavam levantados e queriam matar os padres e como em estas novas comumente se acrescenta ,logo nos vem recado desta cidade que os padres dão já em corda para come-los e toda cidade estava alvoroçada com isto ,mas em breve tempo se soube a,verdade.
O Padre como viu os índios com aqueles medos e enganados com mentiras, chamou os principais e disse-lhes: esta fama ai, que nos quereis matar si isto é assim, seja esta noite, antes da manhã; isto é o que desejamos, para isso viemos, e elles então descobriam a verdade: que aqueles escravos lhes haviam dado aquelas más novas, mas que não tinham propósito de fazer mal a ninguém que bem sabiam que eram mentiras e com isto se despediam do padre. Mas aquela noite foi muito trabalhosa, assim para os índios, como para os brancos pelo medo que todos tinham da morte.
Quando o branco fugiu, acrescentavam também que o padre tinha fugido; algumas gentes suas devotas ajuntaram-se muito sentidas a consultar o que havia. Uns diziam: vamos a sua busca, não o deixemos ir.
O principal desta aldeia chamado pepita disse a sua mulher: si o padre fugiu tomemos nossas redes e vamos com elle. Outros vieram à noite ver si os padres estavam em as redes e quando os vieram muito alegres. Outros diziam: durmamos junto dos padres, si alguns os vierem matar morremos também com
eles. Também desta vez ficou o demônio burlado, porque os índios ficaram mais confirmados na paz, e entenderam que o que o Padre pregava era verdade e o que os escravos diziam era mentira.
O posterior meio que tomou o demônio para impedir esta obra, foi não menos efficaz que os passados, e nasceu dos próprios brancos que o Padre levou em a sua companhia e aqui já o tinha feito muito boas obras porque como estas commummente diziam, mas os gentios ver os escravos que ... e isto pretendem quando vem entre elles remediar sua pobresa ao em que perdem suas almas e como os padres, onde quer que estejam sempre os vão ... aos saltos que fazem ... fal-os resgates injustos, enganando os índios, fazendo-os vender sés filhos e parentes e como também os estorvam os pecados que entre eles fazem, como é tornar-lhes suas mulheres e filhas por mancebas, esta foi a ocasião para dirigir e escrever ao Governador muitas cousas contra os padres, que não cabiam nelles, e elles mesmos diziam : vóz outros sois causa, porque nós outros somos pobres. Deo-se a isto tanto crédito que não faltou quem dissesse que enviasse loco a chamar o Padre Gaspar Lourenso, porque havia cousas porcas que elle merecia ser cosido em uma caldeira. Eu entendo esta manha que o demônio não desejava outra cousa senão ver os padres fora.
Dissimulei o melhor que pude, dizendo que costumava sempre dar uma orelha aos padres, que eu havia de enviar prestes o Padre Luiz da Grãa para ajudar aquella chistandade e assim me informaria da verdade e assim foi, porque o Padre depois que foi visitar aquellas partes me escreveu estas palavras: todos certificam o contrario do que se escreveu do Padre Gaspar Lourenço e assim pela bondade de Nosso Senhor nada aproveitaram aos demônios as invenções que buscam para impedir a chistandade e em que nunca cessa de buscar ardis, como aconteceo agora.que escreveram os mesmos à camara desta cidade muitas cartas, dizendo que os padres eram impedimento, que os escravos não voltassem aos seus senhores e assim veio a camara com todos seus officiaes a dar-me quechas delles, dizendo-me que os padres impediam as cousas do serviço de Deus, que puzesse remédio a isto. E deram a entender que dariam guerra aquella terra, e que ia pôr os Padres em perigo de vida; mas claramente mostrei-lhes que o haviam escripto era falso. Mas com tudo isto como a obra é de Deus, confiança tínhamos que nos defendesse. E no tempo em que o Padre residio nesta aldeia, se fizeram algumas procissões solenes, enramando a Igreja e as casas, e algumas vezes tinham disciplina todos os cristãos, por bom espaço pela conservação dos gentios. Em uma procissão, vendo um gentio que iam os círios diante da cruz, foi correndo a sua casa e achou uma candeia, e ascendeo-a e poz-se também junto da cruz, em que mostrava sua simplicidade: outros índios estando na Igreja e vendo a imagem do crucifixo estiveram muito tempo de joelhos vendo-a e um índio desta aldeia os ensinava o que sabia e entendia.
Depois de haver o Padre convertido a aldeia de S. Thomé e a gente pacifica, passou a visitar as aldeias comarcans onde há tanto tempo havia que o desejava; passaram em estes caminhos grandes trabalhos, por ser por
montanhas em terras muito fragosas. Passaram por algumas partes que as hervas os cortavam as pernas, e não podiam andar calçados por haver muitas águas e atoleiros.
Acontecia-lhes ir mais de meia légua PR um Arroyo que dava a água, as vezes do joelho, accrescentava-se a isto a falta de mantimentos especialmente que a quaresma os obrigava a jejuara, a comida não era mais que bananas e farinha molhada em água, pimenta, e por fructa tinham alguns caranguejos que os índios trazia seis léguas d?alli.
Foi uma partida muito contra a vontade dos Índios desta aldeia, e com grande sentimento, todos a uma boca diziam e pregavam pela aldeia: vae o Padre morrer, preparemo-nos para vingar a morte; isto diziam pelo temor tinham de Surubi, mas o Padre confiando na graça de Deus começou seu caminho sem querer levar ninguém da aldeia, se não só seu companheiro, o que foi maior espanto.
A primeira aldeia onde entrou foi a do Surubi que está a dez ou doze léguas de S. Thomé, por mui ruim caminho: foram mui bem recebidos e apresentados em a casa de Surubi e os Padres estiveram um grande espaço em pé diante delle , que estava deitado em sua rede sem falar-lhes uma só palavra.
E até que depois mandou os dessem alguma cousa para comer e foram quatro espigas de milho; parece que aguardava que o padre começasse a prática, e os ajuntasse a todos que lhes desse razão de sua vinda, a que fez o padre: depois, começou pela manhã a pregar-lhes as cousas de sua salvação; e como vinha a dar remédio as suas almas e acabou depois do meio dia. Ficaram contentes e todos a uma vez, disseram que folgavam muito com sua vinda e que queriam igreja. E assim logo ao outro dia começaram a cortar madeira para Ella, e os mais honrados eram os primeiros a carregal-a a trazel-a às costas até o mesmo Surubi e assim em breve tempo a acabaram, porque a cobertura era de palha que há muito por aquellas partes e é a da invocação do glorioso S. Ignácio.
Tinha aquella aldeia mais de mil almas: enquanto não tinham a igreja, se os ensinavam a doutrina em a casa e acudiam a ela grandes e pequenos de muito grande vontade e como não tinham costume de ver brancos em suas aldeias estavam todos attonitos em vêl-os, se fora cousa vinda do céu e quando sahiam de casa, todos como sahiam as casas para vel-os grandes e alguns pequenos perguntavam se os padres era gente com quem se podia converssar e habitar.
Para confirmar-se mais o Surubi nas pazes enviou um irmão seu com alguns índios a ver o governador e nossas Igrejas; foram bem recebidos e o governador os mandou dar de vestir e algumas ferramentas. Foram todos mui contentes, vendo o conceito que tinham os christãos de nossas aldeias. Depois de deixar o Padre quietos e animados os desta aldeia de S. Thomé de que na minha; mas o Padre consolou-os dizendo que também era necessário dar as voas novas do Evangelho as outras gentes. Ao segundo dia da jornada encontraram com uns principaes, que os vinham esperar ao caminho, abrindo-lhes os caminhos por onde haviam de passar, porque todos estavam cerrados com as arvores. Foi grande a alegria que tiveram em este encontro, assim os nossos, como os índios e logo repartiram com o Padre o que traziam, com
caridade e fizeram uma choça em que repouzaram esta noite e depois foram a sua aldeia onde foram recebidos de toda gente com tão grandes mostras de amor, como se fora muito tempo que os conversaram; e ahi esteve o Padre alguns dias ensinando-lhes as cousas de sua salvação. Dahi passou a outras aldeias; em algumas foi mui bem recebido, em outras não os faziam bom rosto, temendo que os iam ajuntar para seu mal e assim diziam porque estavam muito escandalizados dos tempos passados, em que os brancos os tinham feito grandes damnos.
Uns se queixavam que os haviam tomados suas mulheres, outros seus filhos; o Padre respondia que ao passado não sabiam dar remédio, que também elles tinham morto muitos brancos, mas que si elles queriam ser chistãos e amigos dos brancos que tivessem por certo que não seriam aggravados.
O primeiro que fazia em entrando em uma aldeia, era visitar se havia alguns enfermos em extrema necessidade, prepando-lhes o Padre a virtude do santo baptismo e as penas do inferno, que estão guardadas para os não baptisados, expurgando-os de seus feiticeiros; claramente respondiam, não queriam ser baptisados, que não temiam o fogo do inferno. Então tomou o Padre um tição e o poz juncto do enfermo, dizendo não temos arder como este fogo? Mas nem isto bastou!
Assim morreram, parece que já ao demônio estavam entregues aquellas almas, mas o Padre ficou com muita dor de ver sua perdição.
Em uma aldeia um principal estrangeiro começou a falar contra os Padres, dizendo que os havia de quebrar a cabeça, que não tinha que ver com os brancos. Alguns índios que iam com os Padres estavam atemorizados. O Padre fallou com o senhor da aldeia e perguntou-lhe se estavam alli seguros, respondeo-lhe: bem podeis dormir com o sono de pousado, que não haverá em minha aldeia quem se atreva a fazer-te mal e pois entrastes em minha casa; onde morreres tu eu morrerei com minha gente; folgo muito de ver-te, porque há muito tempo te conheço por fama e que não dizias senão muito bem.
Outro dia mandou Deus o coração ao outro principal e foi a visitar os padres e deu mostras que o presava do que tinha dito e pedio ao Padre que fosse também a sua aldeia, mas os índios os aconselharam que não se fiasse nelle.
Desejando o Padre ir visitar outra aldeia que é postera de todas, em busca de um principal, que tinha prometido de vir a igreja de S. Tomé, mas o demônio o tinha já outra vez pervertido e estava com mais desejo de comer o padre, do que se fazer christão;mas foi N. S. servido de dar aviso ao Padre disto e foi desta maneira: um índio daquella aldeia enviou um filho seu ao padre mui depressa. Já de noite, dizendo que de nenhuma maneira entrasse na aldeia, porque o principal estava determinado em quebar-lhe a cabeça, e dque para isso tinha já se reunido com elle, e o padre ainda que quizesse com tudo isto passar, os índios não só o consentiriam, mas antes de algumas aldeias comarcans veriam alguns para defender o Padre e tudo foi necessário porque haviam já enviado índios a tormar-lhes os caminhos, mas seguramente os passaram levrando-os Deus de todos os perigos e dando a volta para a aldeia de S. Ignácio trouxeram gente de duas ou três aldeias, para ajuntal-os em uma igreja juncto do mar, e assim o fizeram com muita alegria dos índios e logo levantaram uma cruz e fizeram uma igreja da invocação de S. Paulo, porque
chegaram véspera de S. Pedro e S. Paulo, e o dia disseram missa e ensinaram a doutrina e pregaram.
Ficaram os índios muito consolados e fazendo já as casas para sua habitação; mas como era necessário acudir o Padre as outra aldeias, estava pouco tempo com elles, que causou nelles não pouca tristeza; mas o Padre consolou-os, dizendo que procurava acudir a todas as partes e assim resolve a visitar as outras igrejas, e foi recebido de todos com grande caridade e alguns pediram o santo baptismo...
Na aldeia de S. Thomé baptisaram outra índia, estando já a morrer, e assim que quando o Padre lhe fallava, mostrava pouca vontade disto, parecendo-lhe que só se batisasse logo havia de morrer que lhes ensinava o demônio, porque como os padres agora não batisavam senão aos que estavam à morte, pareceu-lhe que em baptisando-se logo havia de morrer. Mas outro dia visitando-a elle padre e dizendo-lhe que se não queria o inferno era necessário batisar-se, ella disse que o desejava muito, que o dia antes quando soltou algumas palavras foi porque não estava em seu entendimento e assim depois de bem instruída, a baptisou o Padre e assim dahi a três dias foi gosar de seu creador e enterraram-na na porta da igreja com a solenidade que se costuma em nestas aldeias e ficaram todos admirados de vel-o. vieram alguns índios de outras aldeias a falar com o Padre e a pedir-lhe para fazer-lhes igrejas em suas terras, especialmente um, que antes havia ameaçado os padres, veio tão manso como um cordeiro, dizendo que só o Padre era seu irmão e o Padre perguntou-lhe que era sua determinação e elle respondeu-lhe que era cousa tão importante, que não era bom determinar-lhe de baixo de casa alheia, que fosse a sua aldeia que se lhe diria. Prometteu-lhe o Padre de ir a Ella e assim o fez dahi a poucos dias . estava três légua de S. Thomé, foram de todos recebidos com grande louvor e depois de haver o Padre fallado, responderam que faziam o que elle queizesse e que passariam a aldeias onde o senhor (?) mandasse e assim a passaram junto do mar para poder ser melhor visitada. Dahi foi o padre onde estava o capitão a confessar alguns homens brancos onde também se fez muito serviço a Deus apartando-os de muitos pecados e fazendo-os pedir perdão do escândalo que o haviam dado.
Vendo como o nosso senhor punha os olhos na gente de Marial pareceu necessário prover de mais obreiros e pelo Padre Luiz de Gran que tinha muita experiência na conversão destes índios e ser de todos muito conhecido e amado , pareceu serviço de Deus pôr-lhe nas mãos esta empreza, a qual aceitou com grande caridade e desejos de padecer muitos trabalhos por amor de Deus e assim foi este caminho obra de quarenta a cincoenta léguas, levando por companheiro o irmão Francisco Pinto, língua, e como ser já o padre velho de mais de cinqüenta annos, sempre foi a pé e muitas vezes descalço pelo caminho. Não sofrer outra cousa e senão que um homem honrado que ia em sua companhia lhe offerecia sua cavalgadura de muita boa vontade nunca quis aceitar. Escusava, dizendo que ia em peregrinação a S. Ignácio. Mas dava-lhe também esforço que no caminho passando pelos trabalhos, parecia um mancebo de vinte anos.
Sabendo que os índios da aldeia de S. Thomé, que ia o Padre visital-os sahiu muita gente ao caminho a recebel-o, levando algum refresco, conforma sua pobreza, para que os que iam em sua companhia tinham a casa onde haviam de passar, enramada e com alguns arcos, e a alegra que o padre Gaspar Lourenço e seu companheiro foi mui grande, porque viam já com seus
olhos o que desejavam. Em traram todos com o padre na igreja e animando-os a perserverar no bem no bem começado. Logo trouxeram alli todas suas...e a um que era cousa pouca, a caridade com que trazia era muito. Vieram também logo das outras aldeias comarcans a visitar o padre dizendo que se queriam ajuntar e ter igrejas, a todos consolou o padre, dando-lhes esperança que os iria visitar prestes e assim me escreveu, que todos daquela comarca se resolvem a fazer igrejas . Deus por sua infinita bondade os dê perseverança no bem começado e mande para tanta messe. Isto é o que aqui aconteceu no rio Real.
Neste collegiado da Bahia, 7 de setembro de 1575
Indigno filho de V.P.
Ignácio Toloza.