Hidroporto dos Tainheiros: esboço de proposta de outorga como patrimônio cultural material por um saber à deriva.

                                                Sérgio Ribeiro Bastos1

“[...] é fundamental que se formulem e se implementem políticas que tenham como finalidade enriquecer a relação da sociedade com seus bens culturais, sem que se perca de vista os valores que justificam a preservação”. (FONSECA, 2003, p. 75)

Este trabalho é uma exigência do componente “Patrimônio Cultural”, além de complementar do trabalho anterior.

Se no primeiro abordamos a memória que guarda o nome de um lugar, neste iremos tratar de um bem material defensável, indicando o seu tombamento como patrimônio cultural material, buscando com isso articula-lo à luz dos conceitos e ideias expressos nos referenciais teóricos dos textos indicados, como meio de embasamento para a finalidade última a que se propõe.

Aqui, nossa pesquisa volta-se para o Hidroporto dos Tainheiros, o primeiro e único ponto de pouso e decolagem de aviões na cidade do Salvador, a partir do final da década de trinta, do século XX.

Situa-se o Hidroporto à beira mar, região nordeste desta cidade, extremo da península de Itapagipe, no local denominado de avenida Porto dos Tainheiros. Tendo o mar como ambiência notável em seu entorno até os limites próximos das margens do subúrbio ferroviário, a edificação fica de costas para a enseada de Itapagipe, erguendo-se sobre potentes pilares de concreto armado fincados no mar e areia da praia, ombreando sua testada com a rua e o nível da balaustrada, correndo paralela a esta com a extensão construída de estimados sessenta metros de frente.

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1 Aluno em Bacharelado Interdisciplinar do curso de Humanidades, 5º semestre 2014.2, UFBA.

O período de construção data do século XX (1938), ano em que a obra foi concluída. Trata-se de edifício de baixo valor monumental, encontrando-se o seu estado de preservação em nível ruim no aspecto de suas fundações, médio e satisfatório em outros itens do imóvel. A fachada é em estilo moderno, alvenaria de tijolo, arquitetura de médio porte, duas portas de entrada na frente são encimadas por marquises, encontrando-se estas, laterais a uma coluna que as separa com o formato de degraus, até a altura aproximada de uns 12 a 13 metros.

Naquela artéria de localização o imóvel é único em construção sobre o mar. De sua fachada percebe-se do outro lado da rua a vizinhança próxima do Solar Amado Bahia, já com a outorga de tombamento dado pelo IPHAN, de casas simples e unidas umas as outras, também feitas de alvenaria de tijolo, em sua grande maioria de altura média, e período de construção remontando à década de trinta, a mesma de construção do nosso... desejado (!) patrimônio.

A porta principal é ocupada por uma ‘loja’. Em seu interior nota-se visível o conflito entre os vestígios de memórias das formas e do traçado arquitetônico, composto de linhas sinuosas, habitado pelas memórias silenciosas dos lugares ‘luxuosos’ que serviram de sala de espera, sala de bagagem, agências e companhias aéreas, estações de rádio, píer para embarque e desembarque de passageiros do Brasil e do mundo, ante o odor repugnante do lixo, a tristeza do abandono e a nostalgia do descaso. Lamentavelmente, o hidroporto é hoje uma ruína viva de memórias!

Em nossa presença, memórias históricas, memórias políticas, sociais, memórias visuais e orais, unem-se enriquecendo o nosso ‘bem cultural’, nos mostrando um mosaico rico de inúmeros fatos, relacionados à memória do lugar. Vejamos.

Inicio dos anos vinte, a enseada de Itapagipe foi referência e serviu de apoio a Gago Coutinho e Sacadura Cabral, em sua pioneira viagem sobre o atlântico sul, rumo à cidade do Rio de Janeiro. Queremos crer que informações dessa época motivaram os norte-americanos ao final da década de trinta, presentes em Salvador, para o fomento do hidroporto, como escala estratégica durante o período da segunda guerra mundial. O reabastecimento dos hidroaviões Catalina, fazendo a rota Santos-Belém, era feito ali. Por ocasião da sua inauguração, o presidente Getúlio Vargas e senhora Darcy Vargas fizeram amerissagem na enseada para visita oficial ao primeiro poço de petróleo do Brasil, no bairro do Lobato. Foi local de escala para a travessia Lisboa-Rio de Janeiro em dois ‘Fairway III D’, apelidados de Lusitânia e de Santa Cruz; este último exposto no Museu de Belém, em Lisboa. Para o período do seu funcionamento, há considerações registradas pela imprensa, que o destacam como o mais avançado e maior sistema de transporte aéreo do mundo. O piloto Ítalo Balbo fez amerissagem de sua esquadrilha composta por onze hidroaviões, naquela enseada. O mundo artístico, nacional e internacional, representado nas figuras emblemáticas de Carlos Galhardo, Silvio Caldas, Orlando Silva, Errol Flynn, Lew Ayres, John Bolles, também se valeram dele quando de suas permanências em Salvador.

Muitos outros fatos são previsíveis de se encontrar registrados pela imprensa, se levamos em consideração a necessidade para a cidade do Salvador se comunicar, fazendo uso de um meio de transporte tão excêntrico quanto sofisticado para a época e o lugar.

O Hidroporto dos Tainheiros foi precursor do Aeroporto de Ipitanga; e certamente por esse fato novo justifica-se que tenha entrado em decadência.

Há registros de manifestações políticas e sociais entre grupos de moradores do bairro, com o objetivo de torna-lo um espaço cultural.

Bem, pensamos que um hipotético ‘museu/escola’, de modelo aeronáutico, restaurado em suas linhas funcionais, em seus espaços e arquitetura, com móveis de época dando ambiência ao lugar, ilustrado com fotografias, réplicas de hidroaviões do modelo Catalina, cartas de navegação aeroespacial, acervo bibliográfico somado a outros conjuntos de informações sobre esse meio de transporte, poderia contribuir por abrir um clarão na memória presente, fazendo nos deslocar em outras direções (...), além do parco conhecimento de uma história única. A de que o aeroporto de Ipitanga foi o primeiro, pode ser um exemplo, entre outros.

Tomando-o como referência, nossa exposição de motivos aponta, inicialmente, relações entre essa proposição e o disposto no artigo constitucional 216, no que tange a mais de um item. Como patrimônio cultural, ‘ele’ pode referenciar-se no item III, angariando atenção por uma criação tecnológica; sendo ‘obra’ ou ‘edificação’ estabelecido no item IV, ‘ele’ pode apresentar-se como modelo estratégico, além de possuir arquitetura moderna, píer em forma de Y para atracagem, embarque e desembarque; e com forte potencial ‘paisagístico’, por sua singular localização, elemento incluso no mesmo item.

A proposição de tornar esse ‘bem’, como patrimônio cultural material, pode também sustentar-se em seu caráter pedagógico, e no reconhecimento desse ‘bem’ como um valor. Valor de ‘saberes’ para difusão, compartilhados com outros.

Por caráter pedagógico, essa consideração criada por Dominique Poulot para o sedimento de uma base, em favor de uma noção de patrimônio, é possível entendê-lo como um núcleo de memória transmissora de um conhecimento específico, em nosso caso seria o tecnológico, que cria a ‘amerissagem’ para os hidro aviões, posto em prática, em uso como alternativa viável, capaz de atender a uma necessidade de locomoção. Outro interesse por toma-lo como um ‘bem’, pode também inscrevê-lo na categoria de Patrimônio Cultural Brasileiro, por relação com uma ‘ação’, ‘memória’ e ‘identidade’ de um grupo representativo de um extrato social, em determinado meio de sua história.

O enunciado acima acaba por nos remeter a outra consideração de ‘patrimônio’; esta consideração o fazemos, por reflexão do texto de Dominique Poulot “Um Ecossistema do Patrimônio”, onde o autor problematiza o conceito e sua pureza de aplicação, por emergência de uma ‘patrimonialização’ sempre crescente, mas dividida pelas especializações das disciplinas, criando um clima de contradições sempre postas quando a iniciativa de proteção ou restauro vêm à tona; seria a de um ‘bem-a-transmitir’, mas o transmitir de uma herança de conhecimento, de prática que nos mostrou aptos a empreende-la por aptidão de um grupo social, diante dos recursos naturais disponíveis. Seria assim, um transmitir próprio, intrínseco a um saber específico.

Ainda com Dominique Poulot, absorvemos o aprendizado que segue: “Os patrimônios devem ser compreendidos como conjuntos materiais e, indissociavelmente, como saberes, valores e regimes do sentido, elaborados ao longo dos processos de formação das identidades coletivas, das comunidades, particularmente as nacionais, mas sem dependerem exclusiva ou absolutamente, em seguida, dos “interesses” de quem os colocou em ação em primeiro lugar...” e concordamos, por vê-lo encaixar-se como uma luva, à proposição desse artigo.

A ideia proposta de um hipotético ‘museu/escola’, por outro modo rompe com o sentido de tombamento material associado à “conservação” e seu caráter férreo de “imutabilidade”, alheio à dinâmica social de mudança, transformação (Fonseca, 2003).

O sentido de valor cultural que neste artigo emprestamos ao Hidroporto dos Tainheiros, com o fito da outorga como patrimônio cultural material, é aquele que transpõe sua materialidade como conjunto arquitetônico em si mesmo, mas realça seu valor evocativo, marca sua referência detentora da lógica do poder simbólico, do poder econômico e do poder político intrínsecos à época, sombra dos prazeres de rico legado, herança cultural; mas que tenha em essência, um sentido de saber seguido e retroalimentado à prática, desse mesmo saber.

  

REFERÊNCIAS

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FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2003. 75 p.

FREITAS, Jolivaldo. As Tainhas do Enclave da Ribeira se Picaram. Salvador, 2010. Disponível em: <http://jeitobaiano.atarde.uol.com.br/?p=1980>. Acesso em: 29 nov. 2014.

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