HERMENÊUTICA E DIREITO PENAL – O DIREITO DE PUNIR DO ESTADO E À (IN)EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS[1]

 

 

 

Eldiane Rodrigues dos Santos[2]

Diego Soares Montelo[3]

 

 

1 DESCRIÇÃO DO CASO

Trata-se de ação penal pública incondicionada por meio da qual o Ministério Público Estadual denuncia o ora apelante como incurso no artigo 155, § 4º, inciso I, c/c 14, inciso II, todos do Código Penal brasileiro.

Em apertada síntese, segundo a narrativa ministerial, no dia 11 de novembro de 2009, por volta das 15h15min, na Rua João Goulart, 330, Bairro São Luiz, na cidade de Timon/MA, o acusado teria adentrado na residência da vítima Lauro Benedetto, de onde subtraíra alguns pertences.

Após a regular instrução do feito, em que foram apresentadas as alegações finais dos sujeitos do processo, o Juízo Criminal proferiu sentença condenatória em desfavor de José Vargas da Rosa, impondo-lhe a pena de 06 (seis) meses de reclusão, em regime semiaberto e 10 (dez) dias-multa.

À vista da sentença penal condenatório do juízo a quo, a Defensoria Pública, interpôs recurso de apelação, aduzindo, em linhas gerais, a absolvição do acusado com fundamento no princípio da insignificância ou pela insuficiência probatória, requerendo, ainda, a fixação de regime menos gravoso. Em sede de contrarrazões, o representante do Parquet, Dr. Lênio Luiz Streck, manifestou-se pelo parcial provimento do apelo para, mantida a condenação do réu, seja redimensionada a pena imposta.

Problematização: Relação entre a restrição da liberdade individual e a efetivação de direitos fundamentais; Princípio da Insignificância; Direito Penal como “ultima ratio” da ingerência de controle estatal; Direito Penal mínimo; Princípio da vulnerabilidade social; Co-culpabilidade da sociedade como atenuante genérica (art. 66/CP).

 

2 DECISÃO E FUNDAMENTAÇÃO

Ultimada a instrução do processo criminal em tela, resta evidenciado que José Vargas da Rosa está respondendo a uma ação penal pela prática de um delito de furto de alguns objetos de valor irrisório (somando a quantia de R$ 63,00, conforme auto de apreensão e avaliação de fls.), pertencentes à vítima Lauro Benedetto, as quais lhe foram prontamente restituídos, por força da flagrância do ato delitivo, o que inclusive, impediu a consumação do mesmo.

Diante disso, apesar de ter havido um furto na forma tentada, a conduta do agente, no aspecto material, isto é, não houve uma efetiva lesão ao patrimônio alheio, não constituindo crime a ser punido pelo Direito Penal, já que a questão pode ser perfeitamente resolvida na esfera cível, até mesmo no âmbito do Juizado Especial, competente para processar e julgar causas de pequena complexidade, como ocorre na situação em tela.

Quer-se afirmar, portanto, que, sendo o Direito Penal a ultima ratio do sistema de proteção a bens jurídicos, a subtração dos bens descritos nas fls., avaliado em R$ 63,00 (sessenta e três reais) e que depois foi devolvido à vítima, não constitui conduta a merecer uma resposta tão severa do Estado como é caso da imposição de uma pena.

O crime de bagatela ou princípio da insignificância afasta a tipicidade material da conduta, de modo que, para haver crime, é fundamental que, além do juízo de subsunção entre o fato praticado e a norma penal abstratamente considerada (tipicidade formal), haja a valoração em torno da relevância do bem jurídico protegido pela norma penal (tipicidade material).

Discorrendo sobre o tema, segue o ensinamento de Rogério Greco (2006, p. 168):

Para concluirmos pela tipicidade penal é preciso, ainda, verificar a chamada tipicidade material. Sabemos que a finalidade do Direito Penal é a proteção dos bens mais importantes existentes na sociedade. O princípio da intervenção mínima, que serve de norte para o legislador na escolha dos bens a serem protegidos pelo Direito Penal, assevera que nem todo e qualquer bem é passível de ser por ele protegido, mas somente aqueles que gozem de certa importância.  

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, em diversos julgados, têm assentado que são requisitos para o reconhecimento do princípio da insignificância em Direito Penal: a mínima ofensividade da conduta; a ausência de periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente e inexpressiva lesão jurídica (HC 98152 – MG, 2ª Turma, rel. Celso de Mello, 19/5/2009).

O princípio da insignificância exclui a tipicidade (aspecto material), logo é absolutamente irrelevante a circunstância da reincidência, ou qualquer outro elemento exterior à tipicidade. Se o fato é materialmente atípico, pouco importa a reincidência ou os maus antecedentes. Não se pode entortar a teoria do direito penal para satisfazer anseios sociais punitivos.

Diametralmente oposta a condenação do ora apelante em primeira instância, não é aceitável a construção de um sistema penal baseado no modelo de Direito Penal do Autor em detrimento do modelo de Direito Penal do Fato, como destaca Luís Roberto Barroso, fundamentando seu voto no HC 123.108; “além disso, o direito penal não se destina a punir meras condutas indesejáveis, ‘personalidades’, ‘meios’ ou ‘modos de vida’, e sim crimes, isto é, condutas significativamente perigosas ou lesivas a bens jurídicos, sob pena de se configurar um direito penal do autor, e não do fato” (2014, p. 27).

Luigi Ferrajoli classifica como modelos de ‘direito penal autoritário’ aqueles baseados no ‘substantivismo e ‘subjetivismo’ e que encontra no modelo tipo de autor a sua forma mais perversa; “trata-se, com efeito, de uma técnica punitiva que criminaliza imediatamente a interioridade ou, pior ainda, a identidade subjetiva do réu e que, por isso, tem um caráter explicitamente discriminatório, além de antiliberal” (2002, p. 80 – 81). Isto posto, uma vez afastada a tipicidade penal, uma análise da personalidade do infrator imediatamente resta afastada, pois “juízo de tipicidade é base e pré- requisito para a sistemática penal que, sem ele, desmoronaria” (ZAFFARONI, 2007, p. 172).

Faz mister, que em virtude das peculiaridades do caso em apreço não vislumbramos a teoria do Direito Penal do Inimigo, teoria esta do alemão Günther JAKOBS que em síntese sustentava que quem se comporta como inimigo deve ser tratado como tal. Nessa concepção de segurança absoluta elevada em grau máximo, impõe um tratamento diferenciado ao delinquente transformando o “controle social do intolerável em um modelo intolerável de controle social”, com a alteração de um direito penal de risco para um direito penal do inimigo (BUSATO, 2007, p.322).

O discurso do eficientismo penal encontra fundamento na supressão das garantias constitucionais e processuais em que esta supressão segundo BARATTA (1997, p. 63-64) ameaça converter o Estado Democrático de Direito em Estado Penal. Tal discurso é fomentado nos dias atuais pela política criminal da “lei e ordem”, massificado pelos meios de comunicação e pelo senso comum punitivista da sociedade. Contudo, segundo lição de Ferrajoli existe numa democracia constitucional o que denomina de “[...] ‘não decidível’, ou seja, daquilo que se convencionou subtrair da vontade das maiorias para garantir a igualdade dos cidadãos, seus direitos fundamentais à vida e à liberdade pessoal sejam eles desviantes ou não” (2002, p. 32)

Nesse diapasão e em face de possíveis supressões as garantias processuais e constitucionais da pessoa presa, com o discurso de neutralizar o inimigo a todo custo, surge uma incompatibilidade entre o conceito de inimigo e estado de direito, Zaffaroni (2007, p. 24/25) destaca que esse tratamento diferenciado conferido ao direito penal do inimigo (com a existência de inimigos da sociedade) é incompatível com o modelo atual, até pelo fato de que é característica de um Estado Absoluto.

Noutro giro, temos o garantismo penal que está intrinsicamente ligado às exigências de segurança social, de tutela constitucional das liberdades fundamentais, de proteção do indivíduo contra o poder punitivo do Estado, tendo como maior reflexão teórica os ensinamentos de Luigi Ferrajoli, segundo o renomado autor “requer do direito o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade, pressupondo uma separação entre direito e moral, validade e justiça, ser e dever-ser” (2002, p. 684/685).

Tendo em vista as concepções supracitas, faz mister, a contribuição de Ana Claudia Bastos de Pinho citando Winfried Hassemer (2009, ?):

como se vê, o paradigma centrado na idéia de Direito Penal Mínimo nutre-se de certeza e racionalidade, na medida em que o exercício do poder é limitado e condicionada a sua validade à obediência irrestrita das garantias fundamentais constitucionalizadas. Eficácia, portanto, é preciso, mas não às custas dos direitos fundamentais, historicamente consagrados. O perigo da retórica da eficácia é cair no chavão da impunidade e, sob o argumento imperioso de combatê-la, abrir-se mão das garantias.

Enfrentados tais questionamentos, tem-se que em virtude do princípio da legalidade deve-se verificar a tipicidade da conduta considerada delitiva, para posteriormente analisar os outros requisitos que a lei exige para qualificar uma conduta como criminosa. Nesse contexto o sistema jurídico penal como ultima ratio, e em consonância ao principio da fragmentariedade e da intervenção mínima preconizados em nosso ordenamento, deve atentar que a restrição de direitos, bem como a privação de liberdade do indivíduo somente se justificam quando realmente necessárias, verificando-se sempre a lesividade ao bem jurídico tutelado.

Por fim, absolvo o ora apelante pelas razões de direitos expostas.

REFERÊNCIAS

 

 

BARATTA, Alessandro. Defesa dos direitos humanos e política criminal. In: Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, n. 3, 1997

BUSATO, Paulo.  Quem é o inimigo, quem é você? Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 66, a. 15, p. 315-371, maio./jun. 2007

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula ZOMER et. al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002;

Greco, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral, volume I. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006;

HASSEMER, Winfried apud  PINHO, Ana Cláudia Bastos de. O mito da eficáciaDisponível em < http://jus.com.br/artigos/4087/o-mito-da-eficacia>, Acesso em 22 mar 2015;

HC 123.103 – MG, Plenário – Rel. Luís Roberto Barroso – 09.12.2014, Disponível em < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/hc_123108_mlrb.pdf> Acesso em 29 mar 2015;

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Trad. Jorge Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007



[1] Case apresentado à disciplina de Hermenêutica, lógica e argumentação em 01/04/2015.

[2] Alunos da disciplina, turno vespertino, do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UnDB.

[3] Professor Me. da disciplina.