No ano de 1859 a Europa recebia estarrecida a asseveração feita por um cientista natural de que as espécies são mutáveis e filogenicamente relacionadas, inclusive a própria casta humana. O cientista era Charles Darwin, que, imbuído de dados lapidados durante mais de vinte anos de pesquisa esmerada, ousava blasfemar contra o dogma antropocêntrico da superioridade do homem em relação às demais espécies de seres vivos. As considerações feitas por Darwin no antológico livro A origem das espécies fatalmente abalaram convenções ortodoxas, vindo a alterar drasticamente a forma como os seres humanos passaram a conceber a si próprios, argüindo a roto sua inconsistente pseudo-superioridade. A origem das espécies fora duramente atacado por diversas vertentes religiosas, principalmente pelo segmento criacionista-religioso, suscitando questionamentos de ordem ontogênica do tipo: se o homem é só um macaco avançado, e não filho de Adão e Eva, então a Bíblia está errada!... não há pecado, nem céu e inferno... não há porque crer em Deus!.

Todavia, por volta do início do século XX, a evolução já era reconhecida como uma teoria eminentemente sólida, firmando-se definitivamente como paradigma no meio científico. Tanto que ainda em 1925 os adeptos do darwinismo reivindicaram o direito de ensinar a teoria da evolução nas escolas públicas, solicitação essa atendida primeiramente por países europeus e Estados Unidos e logo em seguida em diversas outras nações. A opção tomada pelas gestões educacionais descontentou grupos religiosos, que, por sua vez, reagiram imediatamente exigindo a anulação da medida tomada por algumas escolas, por considerarem aquele um gesto de verdadeira profanação. Desde então fora deflagrado um conflito que marcou os últimos oitenta anos pelo reacionarismo com que grupos criacionistas-religiosos encaram a teoria evolucionista.


Segundo Vogt (2005), ainda em 1925, John Scopes, professor de ciências no Tennesse/Estados Unidos (EUA), foi condenado à prisão, acusado de ensinar ilegalmente o evolucionismo. Em 1968, a União das Liberdades Civis dos EUA venceu uma batalha judicial contra alguns estados que queriam agregar o criacionismo-religioso no currículo escolar. Nos Estados Unidos, observa-se claramente uma coluna de políticos conservadores, decanos de faculdades cristãs e grupos religiosos, em marcha rumo ao enforcamento público de Charles Darwin. Segundo França (2004), em 1999, no estado do Kansas/EUA, fora decidido pelo Conselho de Educação que o itinerário da teoria evolucionista deveria ser suprimido no circuito escolar, entretanto, em 2001, pressionado pela opinião pública, o Conselho voltou atrás. Cerca de quarenta iniciativas já foram tomadas por Conselhos Escolares dos EUA no sentido de incluir ressalvas nos textos escolares, advertindo de que a teoria evolucionista não tem comprovação. Vogt (2004) salienta que, na Inglaterra, a política nacional de educação determina que os currículos escolares devem conter o evolucionismo, mas permite que o criacionismo também seja ensinado. Na Itália, em 2004, o evolucionismo só não foi extinto do currículo escolar porque houve uma grande mobilização de insatisfação por parte da comunidade cientifica italiana.

 

No Brasil, a governadora do Rio de Janeiro, Rosinha Matheus, presbiteriana, eleita com amplo apoio das igrejas evangélicas, instituiu, em 2004, aulas de religião em caráter catequético, em que os professores recebem a orientação para exporem seus pontos de vistas de acordo com as crenças que professam. Rosinha que, segundo França (2004), declara abertamente a sua descrença em relação à teoria da evolução das espécies autorizou, também em 2004, a realização de concurso público visando à contratação de professores para ensinar religião na perspectiva confessional. Manobras como essa deixa claro que há uma tentativa de suprimir o evolucionismo, notadamente por este tocar em pontos obscuros da trajetória humana. A despeito do avanço de concepção trazido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) que dispunha primordialmente que o ensino religioso deveria ter caráter fenomenológico e não confessional-doutrinário, mas que após alterações feitas sob a influência das chamadas bancadas religiosas teve seu princípio destorcido as gestões educacionais, no entanto, gozam de certa autonomia para decidir sobre os rumos dos ensinos da religião e da evolução.

 

A teoria de Darwin representa uma perturbação para a estrutura social conservadora. Aceitar que a evolução encerra todo o dinamismo da vida terrena notoriamente não consiste num gesto irracional, afinal, é presumível que fatos, evidências e comprovações tenham alguma relevância numa reflexão crítico-racional sobre qualquer tema. Contudo, quando o que está em questão é a contestação do arquétipo taciturno configurado pelas relações místicas, os adeptos do obscurantismo tendem a ignorar o que se mostra fato. A grande dificuldade para a aceitação definitiva do evolucionismo está na necessidade de despir-se de mitos e preconceitos para entendê-lo em toda a sua abrangência, em todo o seu desdobramento filosófico que decreta a ruína de pressupostos milenares, redimensionando o arranjo em que se relacionam homem e mundo.

 

Submetidas ao crivo do racionalismo, as teses que justificam a dinâmica da vida terráquea ruem-se efemeramente, sendo a evolução biológica a única conjectura que se mantém inabalada. É inquestionável que, do ponto de vista analítico, a tese de Darwin varre avassaladoramente o obscurantismo que encontra pelo caminho. Futuyama (2002), considera que os que se opõem ao evolucionismo ordinariamente defendem pontos de vista absolutamente desprovidos de lógica e razão, sustentados apenas por pressupostos emotivos e metafísicos. Stephen J. Gould (in ZIMMER, 2004, P.12), considera que a revolução detonada pela teoria evolucionista não tem precedentes históricos, no que diz respeito à perturbação de entendimentos milenarmente estabelecidos. Para Dawkins (1979), a inegável relevância da evolução biológica transcende o plano acadêmico, uma vez que alcança aspectos sociais significativos, abrangendo pontos obscuros do nosso comportamento social, como os nossos gestos generosos e gananciosos, amorosos e odiosos, fraternos ou eminentemente egoístas.

 

Não obstante, a trajetória de afirmações da teoria evolucionista não impede que a mesma padeça com a negligência perpetrada por tendências ideológicas ortodoxas. Com todos os contrapontos que enfrenta para se manter, o ensino acadêmico da teoria da evolução das espécies acaba ficando condicionado a ser intermitentemente desgastado, e, numa educação que se pretenda ser renovadora e não reprodutora de valores e saberes - que seja verdadeiramente um acréscimo de idéias e não meramente a reprodução das que já se encontram estabelecidas - omitir verdades e exaltar mentiras não condiz com uma prática educativa que seja eminentemente progressista. Não se pode mais esconder que, como observa Albert Camus (apud ALENCAR, 2003, p.106), o homem é o único ser vivente que se nega a ser o que é.

 


REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

 

ALENCAR, Chico; GENTILI, Pablo. Educar na esperança em tempos de desencanto. 4. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2003;        

 

DAWKINS, Richard. O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979;


FRANÇA, Valéria; MARTINS, Elisa. Rosinha contra Darwin: Governo do Rio de Janeiro institui aulas que questionam a evolução das espécies. Revista Época, 2004. Disponível em: <http://www.revistaepoca.globo.com/Epoca/....html>. Acesso em: 10 set. 2005;


FUTUYAMA, Douglas J. Biologia Evolutiva. 2. ed. Ribeirão Preto: FUNPEC-RP, 2002;

VOGT, Carlos. Criação versus Evolução: uma disputa pelo controle da política educacional. Com Ciência: Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, 2004. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2005;

ZIMMER, Carl. O livro de ouro da Evolução: o triunfo de uma idéia. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004;