UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE

HOSPITAL UNIVERSITÁRIO ALCIDES CARNEIRO

PROGRAMA DE RESIDÊNCIA MÉDICA

Residência Médica em Cirurgia Geral

HEMOPERITÔNIO COMO CONSEQUÊNCIA DE ACIDENTE OFÍDICO EM IDOSO: RELATO DE CASO

Getúlio Kahlil Ambrósio Gomes

CAMPINA GRANDE – PARAÍBA

2009
UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE

HOSPITAL UNIVERSITÁRIO ALCIDES CARNEIRO

PROGRAMA DE RESIDÊNCIA MÉDICA,

GETÚLIO KAHLIL AMBRÓSIO GOMES

HEMOPERITÔNIO COMO CONSEQUÊNCIA DE ACIDENTE OFÍDICO EM IDOSO: RELATO DE CASO

Monografia apresentada ao Programa de Residência Médica da Universidade Federal de Campina Grande – Paraíba, como requisito parcial à conclusão de Residência em Cirurgia Geral.

Orientador: Valeriano Soares de Azevedo

CAMPINA GRANDE – PARAÍBA

2009
UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE

HOSPITAL UNIVERSITÁRIO ALCIDES CARNEIRO

PROGRAMA DE RESIDÊNCIA MÉDICA

HEMOPERITÔNIO COMO CONSEQUÊNCIA DE ACIDENTE OFÍDICO EM IDOSO: RELATO DE CASO

Aprovado em:____ / ____ / 2009

BANCA EXAMINADORA:


Dedico esta monografia a Luciana, minha esposa, pela presença constante e apoio que se fez fundamental a realização deste trabalho e a esta etapa de vida que agora encerro. Agradeço aos meus pais por tudo que sou, a Iara Maria, fonte do meu viver, ao Dr. Valeriano Soares, grande amigo e imprescindível à residência médica de cirurgia geral do HUAC, ao Dr. Renato Gadelha e ao Dr. Pedro Luiz pela amizade e disponibilidade em ensinar. Finalmente, agradeço aos meus colegas residentes e a todos os pacientes, sem os quais nada disso seria possível.


RESUMO

Relata-se um caso de acidente ofídico em paciente de 68 anos de idade, que procurou tardiamente assistência médica, evoluindo desfavoravelmente com choque hipovolêmico, sem história de trauma, mesmo após administração do soro polivalente, com exames evidenciando hemoglobina de 10,2g% e USG abdominal evidenciando líquido livre em cavidade. O paciente apresentava-se com dor e flogose em região do tornozelo direito, obnubilado, desidratado, hipocorado e com hipotensão. Foi submetido à laparotomia exploradora, onde se evidenciou volumoso hemoperitônio e área cruenta com avulsão local da cápsula de Glisson do fígado, por onde se observava sangramento de difícil controle. Procedeu-se o tamponamento da lesão hepática por compressas (Damage-Control), com sutura da parede abdominal por planos totais, sendo em seguida o paciente internado em UTI. Setenta e duas horas mais tarde, com melhora das provas de coagulação, o paciente submeteu-se a novo procedimento cirúrgico para retirada das compressas e correção definitiva do sangramento por hepatorrafia. O paciente teve alta hospitalar no 12º DIH. Médicos devem sempre está atento para evoluções graves de acidentes ofídicos em idosos.

Palavras-chave: Acidente ofídico; Hematoma Hepático; Hemoperitônio; Idoso


ABSTRACT

We report a case of snakebite in a patient 68 years old who sought medical care later, progressing unfavorably with hypovolemic shock, with no history of trauma, even after administration of the polyvalent antiserum, with surveys showing hemoglobin of 10.2 g% and USG abdomen showed free fluid in the cavity. The patient presented with pain and flogose region in the right ankle, obnubilated, dehydrated, pale and with hypotension. He underwent a laparotomy, which revealed massive hemoperitoneum and raw area with local avulsion Glisson's capsule of the liver, where watched bleeding difficult to control. There has been packing of liver injury by compresses (Damage-Control), with suture of the abdominal wall by planes total, and then the patient in the ICU. Seventy-two hours later, with improvement of coagulation, the patient undergoes a new surgical procedure for to remove the dressing and definitive correction of the bleeding hepatectomy. The patient was discharged on the 12th IHL. Doctors should always alert to developments of serious snakebites in the elderly.

Keywords: Snakebite; Liver Hematoma; Hemoperitoneum; Elderly


1.INTRODUÇÃO

As serpentes são as principais causadoras de acidentes por animais peçonhentos, no Brasil. No mundo, existem cerca de 3000 espécies de serpentes, sendo 410 consideradas venenosas. No Brasil estão catalogadas 256 espécies; 69 peçonhentas e 187 não venenosas. A distribuição das espécies peçonhentas encontradas no Brasil é a seguinte: trinta e duas do gênero bothrops, seis do gênero crotalus, duas do gênero lachesis e vinte e nove do gênero micrurus (VERONESI, 2005).

No Brasil, ocorrem entre 19 e 22 mil acidentes ofídicos por ano. Dentre os casos em que a serpente é informada, o gênero Bothrops é o responsável por 80,5% das notificações. Portanto, são registrados anualmente 17.000 acidentes botrópicos com letalidade em torno de 0,6% dos casos tratados (BRASIL, 1998).

Embora relativamente negligenciados, acidentes humanos provocados por picadas de serpentes são um sério problema médico-hospitalar e social pela freqüência com que ocorrem e pela morbi-mortalidade que ocasionam, uma vez que a maior parte das regiões onde há esse tipo de acidente corresponde às nações subdesenvolvidas e os acidentes ocorrem em sua maioria, em áreas rurais remotas onde os dados epidemiológicos são geralmente escassos e subestimam a verdadeira situação (CARDOSO, 1982, ALBUQUERQUE, 2003).


2.REVISÃO DA LITERATURA

2.1. Histórico

Desde os primórdios da colonização, os acidentes ofídicos são reconhecidos como problema de saúde, sendo responsável por número significativo de óbitos.

Em Lille, França, Louis Calmette desenvolveu o primeiro soro antiofídico, em 1894. No Brasil, a produção de soros antiofídicos só ocorreu em 1901, instituto soroterápico de São Paulo, atual instituto BUTANTAN, tendo importância indiscutível a pessoa de Vital Brazil (figura 1), que comprovou a especificidade dos soros para cada gênero de serpente agressora.

Vital Brazil estendeu ao público geral o conhecimento sobre o envenenamento ofídico, suas formas de prevenção e tratamento, permitindo a criação de um sistema de vigilância epidemiológica, a partir da consolidação de dados estatísticos, até então inexistentes, sobre a gravidade do agravo e os benefícios da soroterapia, com apreciável redução da mortalidade.

Mesmo com a prosperidade inicial da luta contra o ofidismo, as décadas de 1970 e 1980, no Brasil, marcaram-se pela desorganização dos sistemas de saúde e insuficiente produção de soros.

Posteriormente, a modernização dos laboratórios públicos – Instituto BUTANTAN, Fundação Ezequiel Dias e Instituto Vital Brazil – que adquiriram caráter de exclusividade, sendo seus quantitativos destinados em cotas mensais de cada tipo de soro, aos estados, por meio das secretarias estaduais de saúde. A partir de então, os acidentes ofídicos passaram a ter notificação compulsória, permitindo ao governo dimensionar a gravidade do problema e criar estratégias de prevenção e ações de controle.

O desenvolvimento desse trabalho possibilitou em breve espaço de tempo, resultados satisfatórios, com aumento da produção e descentralização dos pontos de atendimento, conduzindo a significativa redução da letalidade.

2.2. Epidemiologia

No Brasil, ocorrem por ano cerca de 20.000 casos de acidentes ofídicos, sendo 2000 deles no estado de São Paulo. A maioria dos acidentes ocorre no verão, entre janeiro e abril de cada ano; período que coincide com aumento das atividades agrícolas, nesta oportunidade, lavradores interagem com animais silvestres, aumentando a possibilidade de acidentes.

Indivíduos do sexo masculino, na faixa etária entre 15 e 49 anos são mais acometidos (ALBUQUERQUE, 2002), correspondendo a 74,84% dos casos. A região do corpo mais acometida são os membros inferiores (62,75%), seguida pelos membros superiores (12,15%), neste último caso, sendo ligeiramente mais freqüente em idosos (tabela 1).

A maioria dos acidentes é causada por serpentes do gênero Bothrops (87,33%), seguida pelo CROTALUS (7,43%), LACHESIS (1,37%), MICRURUS (0,41%) e por serpentes não peçonhentas (3,46%). De forma geral, pode-se dizer que de 80% a 90% dos acidentes ofídicos são bothrópicos e que 10% a 20% são crotálicos, com uma minoria de acidentes laquéticos e elapídicos.

Na Paraíba, os acidentes são mais frequentemente provocados por serpentes do gênero Bothrops (46%). Apesar desse percentual ser inferior ao percentual notificado no país (aproximadamente 80%) (BRASIL, 2001), está em conformidade com os dados obtidos em pesquisasregionalizadas (AQUINO, 1999; ALBUQUERQUE, 2002; CARVALHO E NOGUEIRA, 1998; DONATO, 1954; JORGE e RIBEIRO, 1992; MAGALHÃES et al, 1994).

Com relação à zona de ocorrência dos acidentes, 12,8% se dão na área rural, 1,5% em zona urbana e cerca de 85% dos prontuários não continham a informação relacionada a este dado (REVISTA DE BIOLOGIA E CIÊNCIAS DA TERRA, Volume 5- Número 1 - 1º Semestre 2004).

A análise dos prontuários revelou predominância de vítimas do sexo masculino (17,9 %) em contraposição aos 3,7% dos casos em que as vítimas pertenciam ao sexo feminino. Dados estes com pouca representatividade percentual devido ao elevado número de notificações (78,3%) cujo sexo foi ignorado (CEATOX).

A faixa etária mais acometida pelos acidentes encontra-se entre 10 a 39 anos, provavelmente pela grande inserção nos trabalhos laborais, contribuindo assim, para o aumento da renda familiar, conforme já descrito por Albuquerque (2002).

Há uma prevalência dos agravos no período diurno e vespertino, das 06 às 17 horas (4,5%). Foram poucos acidentes entre as 18 e 05 horas (2,0%) como ocorre com a serpente habitante no Japão, Trimeresurus flavoridis, que tem habito noturno, mas que causa acidentes, sobretudo no período diurno (RIBEIRO, 1991).

As regiões anatômicas mais freqüentemente atingidas, assim como no restante do país, são os membros inferiores (73,6%), seguidos pelos membros superiores (26,4%). Portanto o uso de calçados específicos, como perneiras e botas de cano alto, bem como o uso de luvas poderiam evitar cerca de 50 a 75% das picadas nesses locais (BARRAVIERA, 1994, BRASIL, 2001).

Os acidentes ofídicos ocorrem durante todos os meses, ainda que de forma irregular. No ano de 2005, observou-se um aumento no número de notificações, durante o período de maio a novembro e um declínio de casos de dezembro a abril. No entanto, a maior incidência de casos ocorreram nos meses de agosto e julho, seguidos por setembro e novembro (figura 2).

Os municípios com maior incidência de ocorrências são: Campina Grande (10,8%), Taperoá (6,8), Soledade (6,4%), Boa Vista (4,3%) e Barra de Santana (4,1%). Os demais municípios representam 4% dos casos (figura 3).

2.3. Fisiopatogenia

A fisiopatogenia do acidente ofídico depende do gênero da serpent envolvida em cada caso, assimde maneira simplificada, teriamos em ordem decrescente de gravidade, aciedente elapídico, laquético, crotálico e botrópico.

2.3.1. Bothrops

As serpentes do gênero Bothrops (figura 4) possuem veneno com ações coagulantes, proteolítica e vasculotóxica. Acidentes botrópicos saõ mais graves em idosos (tabela 2) do que em jovens (Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical,Vol 41,N1, Uberaba Jan/Feb 2008) e estudos demonstram que este grupo de pacientes geralmente procuram atendimento mais tardiamente, em média 12 horas após o acidente.

O veneno botrópico temcapcidade de ativar o fator X e aprotrombina da cascata da coagulação sanguínea. Diferentemente da trombina fisiológica, a ação coagulante do veneno botrópico não é neutralizada pela heparina. Em última análise, ocorre consumo de fibrinogenio e de palquetas, além dos fatores V e VII, pela ativa ção do fator X, levando a um quadro de CIVD, com deposição de microtrombos na rede capilar, que pode contribuir para desencadear um quadro e IRA.

A ação necrosante, também denominada proteolítica, decorre da acão direta de fração do veneno botrópico. As lesões locais estão quase sempre presentes e caracteriram-se por flogose, edema e dor, podendo ocorrer áreas extensas de necrose e potencialização por infecções secundárias.

O acidente botrópico pode pode levar a hemorragias local ou sistêmica. A ação vasculotóxica sistêmica é causada por fatores hemorrágicos denominados de hemorraginas. A ação destas, explica muitos casos de hemorragias sistemicas, algumas vezes fatais, sistema nervoso central, mesmo na ausência de distúrbio de coagulação. Insuficiência renal pode se instalar por ação direta do veneno, por deposição de microtrombos ou como consequencia do choque.

2.3.2. Crotalus

O veneno crotálico possui ações miotóxica, neurotóxica, nefrotóxica, hepatotóxica e hematológica.

A ação miotóxicado veneno deve-se a crotoxina, proteína formado por duas sub-unidades; fosfolipase A2 e crotapotina. Quatro a seis horas após a inoculação da crotoxina a musculatura apresenta alterações sarcolêmicas e edema mitocondrial. Vinte e quatro a 48 horas depois as mitocôndrias apresentam depósitos densos de cálcio. A atividade miotóxica sistêmica é caracterizada pela liberação de mioglobina para sangue e urina, com o diagnóstico de rabdomiólise firmado pela elevação sistêmica de CK, DHL e AST.

As frações neurotóxicas do veneno do gênero Crotalus (figura 5) são aquelas que produzem efeitos tantos no sistema nervoso central, quanto no periférico. A principal fração neurotóxica é a crotoxina que causa paralisia em todas as espécies estudasdas. Isto deve-se ao bloqueio causado na placa motora, na junção neuromuscular, atuando na pré-sinapse, inibindo a secreção de acetilcolina. Ocorrem também epsódios de vômitos, salivação intensa, diarréia, albuminúria, além de convulsões.

As alterações renais foram verificadas no século passado por altores que necropsiaram doentes picados por cascavel, que evoluíram para o óbito e encontraram nefrose do néfron intermediário. A ação indireta sobre as células renais seria causada pela mioglobinúria decorrente da rabdomiólise, já bem comprovada no acidente crotálico. Outros fatores que também contribuem para lesão renal são a desidratação, hipotensão arterial, acidose metabólica e choque.

As ações hematológicas estão relacionadas aos eritrócitos, leucócitos, plaquetas e fatores da coagulação. A velocidade de hemossedimentação varia inversamente com o tempo de coagulação. Os leucócitos encontram-se aumentados, em geral, com valores acima de 15000/mm3e desvio para esquerda escalonado, com predomínio de segmentados. As plaquetas podem apresentar número normal ou diminuído, além de diminuição ou ausência da agregação plaquetária nos primeiros dias após o acidente crotálico.

Autores observaram também a ocorrencia de necrose hepática e aumento das dosagens séricas das transaminases. A análiseà microscópia eletrônica lesões mitocondriais com edema importante, rarefação da matriz e desaparecimento completo das cristas.

2.3.3. Micrurus

As serpentes do gênero micrurus (figura 6) possuem veneno com ação neurotóxica. As neurotoxinas elapídicas podem atuar na pré ou na pós-sinapse, podendo haver bloqueio pela ação de anticolinesterásicos. O desenvolvimento dos sintomas do bloqueio da junção neuromuscular, em geral é rápido, em decorrência do baixo peso molecular dessas neurotoxinas.

2.3.4. Lachesis

O veneno das serpentes Lachesis (figura 7) possuem ações coagulante,necrosante e vasculotóxica a semelhança do veneno botrópico. Admite-setambém uma atividade neurotóxica, capaz de ocasionar síndrome de excitação vagal que se manifesta por bradicardia, diarréia, hipotensãoarterial e choque.

2.4. Diagnóstico

O diagnóstico de certeza deve ser feito pela identificação da serpente. Se isto não for possivel, deve-se lançar mão do quadro clínico apresentado pelo doente.

2.4.1. Acidente Botrópico

No acidente botrópico, ocorrem alterações locais alteração do tempo de coagulação e hemorragias sitêmica ou por complicações local.

Nos primeiros 3º minutos após a picada, ocorrem dor edema eritema e calor local. A intalação de bolhas, equimoses e necroses, em geral, ocorrem após 12 horas do acidente, casos em que podem advir as complicações infecciosas.

As alterações no tempo de coagulação ocorrem com mais frequemcia em acidentes causados por filhotes de Botróps, cujo veneno possui atividade coagulante importante.

As hemorragias podem ocorrer no local de picada ou em pontos distantes, tais como gengivas, nariz, tubo digestivo alto e rins.

As complicações sistêmicas, embora raras, são a IRA e hemorragia sistêmica incontrolável. A IRA secondária a necrose tubular aguda, necrose cortical renal, e ocasionalmente, glomerulonefrite podem ocorrer no acidente botrópico.

2.4.2. Acidente Crotálico

No acidente crotálico, as alterações locais variam desde um simples arranhão até marca puntiforme única ou dupla. Não há reação local, embora um peuqeno edema possa estar presente.

A miotoxidade do veneno é evidenciada, do potode vista clínico, pela intensa mialgia generalizada.

A neurotoxicidade do veneno manifesta-se algumas horas depois, com a pacidente rteferindo dor no pescoço, diminuição e até perda da visão, ptose palpebral bilateral, sonolência e obnubilação. O fácies é característico (fácies de Rosenfeld – figura 8)

As alterações hematológicas, principalmente a incoagulabilidade sanguínea, ocorrem após algumas horas do acidente, já as alterações renais, costumam ocorrem 24 a 48 horas após o envenenamento.

Outras manifestações provocadas pelo veneno crotálico são cefaléia intensa, febre, hipertensão arterial acompanhada de taque ou bradicardia, lembrando síndrome de hiperreatividade simpática. Esses sintomas acompanham casos graves e, em geral, atendidos tardiamente, desaparecendo espontaneamente após a primeira semana.

2.4.3. Acidente Elapídico

Nos acidentes provocados por serpentes do gênero Micrurus, a sintomatologia predominante, decorre da neurotoxidade do veneno. O doente apresenta fácies miastênica, com ptose palpebral bilateral e paralisia flácida dos membros. O quadro é mais grave que o crotálico, devido a elevada incidência de paralisia respiratória de instalação súbita.

2.4.4. Acidente Laquético

No acidente laquético as manifestações clínicas são semelhantes as do acidente botrópico. Os doentes costumam apresentar intensa sintomatologia local e o tempo de coagulação pode alargar-se, contribuindo para hemorragias sistêmicas. Nestes casos é de fundamental importância a identificação da serpente para o diagnóstico diferencial com acidente borópico.

2.5. Tratamento

A precocidade do atendimento médico é fundamental na evolução e no prognóstico do doente.

O doente deve ser mantido em repouso e transportado o mais rápido possível para o hospital, onde deve receber tratamento específico. A imunoprofilaxia do tétano deve ser realizada de acordo com o histórico vacinal do doente.

O soro anti-ofídico deve ser específico para cada serpente e administrado o mais precoce possível, de preferência em dose única,por via endovenosa, com o objetivo de neutralizar a peçonha antes que ela cause dano. No Brasil, os soros anti-ofídicos são obtidos a partir de soro equino, podendo levar a reações de hipersensibilidade imediata, entre as quais; edema de glote, broncoespasmo e choque anafilático. Como essas manifestações podem ocorrer até 72 horas após a administração do soro, deve-se ter por conduta sempre internar o doente, para observar sua evolução clínica.

No acidente botrópico, além da soroterapia específica, deve-se tratar, quando necessário, as manifestações locais com antibioticos e/ou debridamento cirúrgico.

No envenenamento por cascavel, o tratamento é feito com soro anticrotálico, além de medidas complementares, com hidratação vigorosa para evitar insuficiência renal, podendo-se usar também diuréticos e manitol que contribui sobremaneira para diminuir o edema cerebral e da musculatura esquelética.

Envenenamento por coral, deve ser tratado com soro anti-elapídico, em quantidade suficiente para neutralizar 150mg do veneno. O bloqueio neuromuscular do veneno elapídico pode ser desfeito com doses endovenosas de 2,5mg de neostigmina com intervalos inicialmente de 30 minutos e depois progressivamente maiores, de acordo com a resposta clínica do paciente, até que ocorra recuperação completa, em torno de 24 horas. Cada infusão de neostigmina deve ser precedida pela infusão endovenosa de sulfato de atropina (0,6mg), para se obter aumento da frequencia cardíaca.

Serpentes do gênero Lachesis geralmente inoculam grandes quantidades de veneno. Por isso preconiza-se 10 a 20 ampolas de esoro anti-laquético, por via endovenosa.


3. RELATO DE CASO

G.C.S., 68 anos, agricultor, com relato de ter sofrido picada de cobra (jararaca), no período vespertino, há cerca de 48 horas. Deu entrada no serviço de emergência médica com dor edema e flogose em tornozelo direito, além de dor abdominal difusa, apresentando-se hipotenso (pressão arterial: 90/60 mmhg), sudorético, hipocorado +/4+ e com pele fria, sendo tratado inicialmente com soro polivalente.

Exames admissionais (vide anexos) evidenciaram hemoglobina de 10,2g%, hematócrito de 32,3%, 6.800 leucócitos/mm3 sem desvio a esqueda e 157.000 plaquetas/mm3, tempo de sangria de 2minutos e tempo de coagulação 8minutos, ureia 60 mg/dl e creatinina 0,5 mg/dl. Realizou-se ultrassonografia abdominal, que demonstrou moderada quantidade de líquido livre em cavidade.

O paciente foi submetido à laparotomia exploradora, sendo evidenciado volumoso hemoparitônio, observando-se área cruenta em lobo direito do fígado, bem delimitada e com avulsão local da cápsula de Glisson, com sangramento ativo de difícil controle.

Realizou-se o tamponamento da área sangrante com compressas, para controle de danos (damage-control), seguido de drenagem cavitária esutura da parede abdominal por planos totais, sendo em seguida o paciente encaminhado à U.T.I. em assistência ventilatória e uso de ciprofloxaciana e metronidazol.

No primeiro D.P.O., o paciente apresentou deterioração do quadro clínico e laboratorial (vide anexos), com queda do hematócrito e da hemoglobina, diminuição das plaquetas, com I.R.A.,dependente de ventilação mecânica e com drenagem hemática de 280 ml por dreno tubular.

Em 48 horas, segundo D.P.O., o paciente encontrava-se grave, com importante distúrbio de coagulação, sendo realizada a administração de hemoderivados (concentrado de hemácias, plasma fresco e concentrado de plaquetas), além de vitamina K e ácido tranexâmico.

No dia seguinte, terceiro D.P.O., nova coleta sanguínea evidenciou melhora da hematimetria, da coagulação e da I.R.A., após a reposição de hemoderivados e hidroeletrolítica. O paciente foi então submetido à nova abordagem cirúrgica, para retirada das compressas e hepatorrafia definitiva, com hemostasia satisfatória, sendo deixado um dreno tubular em cavidade para fiscalizar possível ressangramento. O paciente foi novamente conduzido à U.T.I., onde permaneceu por mais 48 horas, quando então recebeu alta para enfermaria.

Na enfermaria, o paciente apresentou boa evolução, com melhora gradativa, recebendo alta hospitalar no 12º dia de internação.


4. CONCLUSÃO

Os acidentes ofídicos constituem importante problema de saúde em nosso meio, com elevada morbimortalidade.

A gravidade do caso relatado, confeccionou-se por um somatório de fatores aluídos na revisão bibliográfica, os quais sejam: paciente idoso, demora em se procurar atendimento médico e o não uso do soro específico para serpente em questão ( no caso, Botrops).

A ultrassonografia foi decisiva para indicação da cirurgia. E no ato operatório,o tamponamento por compressas com intuito de controle de danos, teve indicação precisa, surgindo como ato heróico e única medida cabível para o caso.

Quando se realiza este tipo de cirurgia, o cirurgião tem um tempo médio de 48 horas, e no máximo de 72 horas, para retirar as compressas, sob o risco de desenvolver sépse abdominal, motivo pelo qual se administrou antibióticos.

O uso de hemoderivados foi de fundemental importância para otimização das condições clínicas do doente, principalmente no que diz respeito a coagulação, permitindo a retirada das compressas em tempo hábil.

Do exposto, médicos devem estar aptos a condução correta de doentes vítimas de acidentes ofídicos e atentos a evoluções desfavoráveis no paciente idoso.


5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.Albuquerque, H. N. Perfil clínico-epidemiológico dos acidentes ofídicos notificados no estado da Paraíba, 2002.

2.Aquino, E. K. Epidemiologia e clínica dos acidentes ofídicos no estado de Pernambuco 1999.

3.Barravieira B. Ofídicos – estudo clínico dos acidentes. Rio de Janeiro: EPUB; 1999.

4.Barravieira, B. Venenos Animais: uma visão integrada. Ed De pesquisas científicas, 1994.

5.Barraveieira B. Venenos – aspectos clínicos e terapêuticos dos acidentes por animais peçonhentos. Rio de Janeiro: EPUB; 1999.

6.Bielory L, Gascon p, lawley TJ ET AL. Human serum sickness: a prospective analisis of 35 patients treated with equine anti-thymocyte globulin for bone morrow failure. Medicine 1988; 67:40-47.

7.Brasil. Ministério da Saúde. Manual de diagnóstico e tratamento de acidentes por animais peçonhentos. Brasília fundação nacional de saúde; 1998.

8.Brasil, Ministério da Saúde, Fundação Nacional da Saúde, Manual de Diagnóstico e tratamento de Acidentes por Animais Peçonhentos, Brasília, 2001.

9.Brazil, V. O. A defesa contra o ofidismo. Pocai-Weiss e C, 1911.

10.Cardoso, J. C. L. Brando, R. B. Acidentes por animais peçonhentos. 1. ed. São Paulo: Santos, 1982.

11.Cardoso J. L. C. ET AL. Animais Peçonhentos do Brasil: biologia, clínica e terapêutica dos acidentes. São Paulo: Sarvier, 2003.

12.Donato, H. Achegas para História de Botucatu, 1954.

13.Jorge, M. T.; Ribeiro, L. A. Epidemiologia e quadro clínico do acidente por cascavel sul-americana (Crotalus durissus). Revista do Instituto de Medicina Tropical. São Paulo, n.4.

14.Magalhães, J.S., Nascimento J. F. C. G. júnior, L. A., Trajano S. D., Trocolli ,R. C. P. Ofidismo: Experiência no Hospital Lauro Wanderley durante 5 anos (Setembro 1986 – Setembro 1991).CCS.V.XIII 31-37.Jan/Mar. 1994.

15.Petroianu, A. Terapêutica Cirúrgica: Indicações, decisões, táticas e técnica. Ed Guanabara. Rio de Janeiro, 2001.

16.Poggetti, R. Fontes, B., Birolini, D. Cirurgia do Trauma. Ed Roca, São Paulo, 2006.

17.Resende, C. C., Araújo, F. A., Sallenave, R. N. V. Análise Epidemiológica dos acidentes ofídicos do Brasil – Junho 1986 a Dezembro 1987. Brasília: Ministério da Saúde, secretaria Nacional de ações Básicas de Saúde, 1989.

18.Ribeiro, L. A. Epidemiology of ophidic accidents. Memórias do Instituto Butantan, São Paulo, 1991.

19.Veronesi, Focaccia R. Tratado de infectologia 3ª Ed. São Paulo: Atheneu, 2005.