HC 114.523 – CRÍTICA DO ACÓRDÃO

j. 21.5.2013, 2ª. T., STF, publ. DJE 5.6.2013

Santino Antônio Fernandes Borges

 

EMENTA:

Habeas corpus. 2. Direito Penal Militar. Estelionato praticado por militar contra militar do Exército, ambos da ativa. Delito praticado fora de situação de atividade e de local sujeito à administração militar e por motivos alheios às funções militares. 3. Crime militar descaracterizado. Competência da Justiça comum. 4. Ordem concedida.

Impetração destinada a obter ordem de habeas corpus para trancar a ação penal em trâmite na Justiça Militar e declarar a competência da Justiça comum por debaixo da alegação de que o crime militar estaria “descaracterizado”.

Cabe, por aqui, um parêntesis. Penso que a defesa seja completamente jejuna em Direito Penal Militar, embora tenha conseguido seu intento. E o parecer da Procuradoria-Geral da República, talvez, o móvel indutor-mor de erro do augusto Sodalício. Aqueles que labutam na produção de votos, despachos etc., por vezes, vão logo às peças do Ministério Público Federal para, não raro, dar com os burros n’água.

A ementa deve representar o resumo do julgado, sem ponderações de cunho subjetivo, sem contradições, sem perplexidade, em forma sucinta. Não foi o que se deu, porém.

Da simples leitura da sinopse do julgado, constato que há duas asserções mutuamente excludentes e que geram, no leitor, ainda que minimamente conhecedor das questões dessa Justiça especializada, perplexidade, sobremodo porque emanada do excelso Tribunal, o Tribunal dos tribunais, o guardião da Constituição. Passo a demonstrar.

Está lá na ementa: “Estelionato praticado por militar contra militar do Exército, ambos da ativa. Delito praticado fora de situação de atividade (...)”. (Destaco).

A ratio essendi das justiças especializadas é, precisamente, o fato de haver especialidades no universo jurídico às quais o legislador constituinte originário houve por bem priorizá-las, porque lidam com matérias que fogem ao regramento ordinário. Assim, a Justiça do Trabalho, a Justiça Eleitoral e, enfim, a Justiça Militar e, esta, frequentemente desautorada por absoluto desconhecimento de suas especificidades.

Em Direito Penal Militar, a locução “em situação de atividade” é, exatamente, idêntica a “na ativa”. Tanto faz dizer que fulano está em situação de atividade ou, puramente, na ativa. Ou seja, cogita-se de alguém que não esteja “reformado” (aposentado). Para aqueles que não se contentam com a explicação, aconselho a leitura da Lei Regente, a 6.880/1.980, art. 20 – o Estatuto dos Militares - EM:

São equivalentes as expressões “na ativa”, “da ativa”, “em serviço ativo”, “em serviço na ativa”, “em serviço”, “em atividade” ou “em atividade militar”, conferidas aos militares no desempenho de cargo, comissão, encargo, incumbência ou missão, serviço ou atividade militar ou considerada de natureza militar nas organizações militares das Forças Armadas.

 

Com isso, essa ementa contempla teratologia que há de vir, também, no voto.

O delito para o qual a laboriosa defesa luta por “descaracterizar” aloja-se bem tipificado lá no Código Penal Militar - CPM (Decreto-Lei 1.001 de 21 de outubro de 1969):

                                   Estelionato

Art. 251. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 7 (sete) anos.

Ora, dúvida não há de que essa ação criminosa subsume-se, às escâncaras, ao tipo penal militar. Logo, é crime militar. Contudo, não é só.

Falta, porém, determinar-lhe as balizas dentro das quais incide a norma incriminadora a atrair a competência da Justiça Militar, isto é, aquelas do CPM 9º:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

(..)

II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

            Na arquitetura constitucional que ora vige, a análise necessária à configuração do crime de competência da Justiça Militar, neste caso, está perfeitamente satisfeita: infração penal capitulada no Codex castrense (CPM 251) e as circunstâncias (CPM 9º., II, “a”) em que agente e vítima encontravam-se: militar x militar, ambos “em atividade” ou “em situação de atividade”, quer dizer, “na ativa”, não “reformados”. Eram, no tempo dos fatos narrados, militares aptos à convocação para a defesa da “Pátria”. Não é necessário, portanto, estar a serviço etc. Poderiam estar de férias, licenciados, no mato etc. A tropa não deve ter criminosos, desobedientes, desonrados, pessoas de duvidosa confiança, de reputação maculada. O crime militar ofende a DISCIPLINA, agride o moral da caserna. Eis, pois, o punctum pruriens da matéria que muitos desconhecem.

A Constituição de 1988 no caput do artigo 124 proclama:

À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

 

O preceito é mais que cristalino. Com o advento da Carta Política de 1988, subverte a norma constitucional qualquer decisão judicial que adote fundamentação dissonante da ordem jurídica positiva instaurada sob a égide do art. 124. Claríssimo. Somente a Justiça Militar pode processar e julgar crimes militares definidosem lei. Nãohá dúvida, ademais, de que a lei referida é o Código Penal Militar recepcionado pela Lei Fundamental.

A partir de então, o aplicador do direito castrense deve:

i) Verificar se o delito imputado está no rol da Parte Especial do CPM;

ii) Se estiver, partir para averiguação de enquadramento consoante os incisos do art. 9º. da Lei Regente.

iii) Atentar para o CPM 69 – critérios objetivos de aferição e aplicação da pena.

iii) Não há autorização legislativa para o MP ou para o Poder Judiciário buscar fundamentação extralegal, espúria, mediante o esmiuçar da “intenção” de o agente querer lesar alguma organização militar (“instituição”) ou bem da vida militar. Isso, repito, já de há muito superou-se por força da novel ordem constitucional. A propósito, tal argumentação - reiterada malgrado em inúmeros julgados - não colhe frutos hoje à luz da CF/88. Ela veio e continua a vir sub-reptícia e reiteradamente de duas fontes: a esdrúxula Súmula 298 editada em 13/12/1963, nos albores do regime ditatorial que fazia tabula rasa do estado democrático de direito, e comandava desbragadamente:

 

O legislador ordinário só pode sujeitar civis à Justiça Militar, em tempo de paz, nos crimes contra a segurança externa do país ou às instituições militares;

 

e do preceito da CF/67, art. 122, § 1º., in fine, adotado, agora, em sentido contrário, isto é, o que lá era exceção, hoje, transforma-se, indevidamente, em regra hermenêutica.

Assim, repiso, a CF/88 optou por instaurar a figura do crime militar como fundamento por sobre o qual erige toda a arquitetura e especialidade da Justiça Militar Federal e, por analogia, das estaduais e Distrital. Para mais além disso, a Carta Política investiu o legislador ordinário de competência para definir crime militar pelo critério ratione legis. Não mais há falar-se da perpetração de crime militar atendendo e atendo-se às peculiaridades funcionais do agente (ultrapassado critério ratione personae); ou, mais grave, à eventual análise subjetivo-intencional do acusado, naquilo em que seria necessário apurar-lhe a “intenção” de atingir – mediante dada conduta – alguma organização (“instituição”) militar ou policial militar. Hoje, a Justiça Militar não é para os militares, senão para aqueles que cometam crimes militares. Esta é, pois, a nova ordem constitucional e o novo patamar civilizatório.

Até o arremedo de Constituição de 1967 e 1969, esse pensamento era perfeitamente tolerável, já que todo o sistema estatal trilhava por via de absoluta anormalidade política e jurídico-constitucional, para bem pouco dizer (em república de bananas, de caudilhos e de coronéis, contra a força não há resistência, daí a prévia referência ao novo patamar civilizatório). Somente a título de lembrança, eis os dispositivos da Carta Ditatorial:

Art. 122 - À Justiça Militar compete processar e julgar, nos crimes militares definidos em lei, os militares e as pessoas que lhes são assemelhados. (Redação dada pelo Ato Institucional nº 6, de 1969).

§ 1º - Esse foro especial poderá estender-se aos civis, nos casos expressos em lei para repressão de crimes contra a segurança nacional, ou às instituições militares. (Redação dada pelo Ato Institucional nº 6, de 1969).

§ 2º - Compete, originariamente, ao Superior Tribunal Militar processar e julgar os Governadores de Estado e seus Secretários, nos crimes referidos no § 1º. (Redação dada pelo Ato Institucional nº 6, de 1969).

§ 3º - A lei regulará a aplicação das penas da legislação militar em tempo de guerra. (Redação dada pelo Ato Institucional nº 6, de 1969).

Ressalvadas as novas premissas, tenho que o Direito Penal Militar, o Direito Processual Penal Militar e o Direito Administrativo Militar são especiais na exata medida em que a tutela de bens da vida castrense que lhes atribui a Constituição e a legislação mavórcia por ela devidamente recepcionada velam por bens jurídicos estranhos ou, quando não tanto, muito mais especializados e sensíveis a princípios que não se verificam noutras áreas jurídicas – v. g., os princípios da hierarquia e da disciplina – do que aqueles compartes do Direito Penal comum e sua legislação ordinária extravagante.

A conduta criminosa de estelionato praticada por sargento contra sua colega de farda está tipificada no CPM, atende às circunstâncias do CPM 9º. e a Constituição reconhece a competência da Especializada para julgar CRIMES MILITARES PREVISTOS EM LEI. Descabe, portanto, ponderar a natureza jurídica da relação (privada ou particular) existente entre os sujeitos do delito, agente e vítima. O que importa, e isso já é imperativo constitucional, é o fato de haver crime militar definido em lei, praticado por militar contra militar, ambos da ativa o que - verba legis - atrai, sim, a competência da Justiça castrense. Por quê? Porque o fato tem relevância por ofender um bem tutelado pela Lei: a DISCIPLINA MILITAR cujo conceito não é meramente literal, nem leigo, senão legal. Ei-lo, bem delineado, no Estatuto dos Militares, art. 14, §§ 2º e 3º.:

§ 2º. Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo.

§ 3º. A disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida entre militares da ativa, da reserva remunerada e reformados.

A impetrante consignou (proh pudor!):

Não houve, de forma evidente, nenhuma lesão a quaisquer destes institutos ou aos valores da vida militar. Todos os fatos relatados, até a consumação do crime, ocorreram dentro das vidas particulares do acusado e da ofendida, pois estes se relacionavam fora de suas vidas militares, e devem ser julgados como tal.

                                              

Malgrado sustentar a inexistência de ofensa   a quaisquer valores, institutos etc. da vida militar, tenho que, deveras, houve. Elenco normas legais às quais se sujeitam militares, por arrimo.

Comanda o art. 28 do EM:

O sentimento do dever, o pundonor militar e o decoro da classe impõe, a cada um dos integrantes das Forças Armadas, conduta moral e profissional irrepreensíveis, com a observância dos seguintes preceitos de ética militar:

.....

 

IV – cumprir e fazer cumprir as leis, os regulamentos, as instruções e as ordens das autoridades competentes;

 

XII – cumprir seus deveres de cidadão;

 

XIII – proceder de maneira ilibada na vida pública e na particular;

 

XVI – conduzir-se, mesmo fora do serviço ou quando já na inatividade, de modo que não sejam prejudicados os princípios da disciplina, do respeito e do decoro militar; (destaquei)

 

XIX – zelar pelo bom nome das Forças Armadas e de cada um de seus integrantes, obedecendo e fazendo obedecer aos preceitos da ética militar.

 

 

Ressalto: o militar não deixa de ser militar hora nenhuma de sua vida (v. art. 14, § 3º., EM).  Militar é militar jour après jour, nas vinte e quatro horas do dia, a semana toda, o mês todo, o ano todo. Enquanto detentor do vínculo de sujeição especial ao estado na qualidade jurídica de militar cuja construção dá-se na Lei Regente mediante os art. 3º., 5º., 7º., 27-I, 28-XVI, 31-I,  32 e 33. Por isso, deve cumprir, respeitar as normas e os regulamentos disciplinares, as leis, as ordens superiores, os costumes militares, a disciplina e a hierarquia, ainda que fora do expediente, ou fora de área sujeita à administração militar.

Aliás, esse vínculo de sujeição especial ao estado, da lavra de Otto Meyer (besonderes Gewaltverhältnis) surge no Direito Público alemão, na medida em que conferia autonomia a atos internos do estado no exercício de suas funções, sobremodo militares, e representava um poder geral em favor da autoridade pública. Havia, pois, certa Abständigkeit (afastamento, distanciamento) do princípio da reserva legal quanto a atos estatais. Dentre tais, o mais importante, penso, era o Dienstgewalt (poder disciplinar). Canotilho, para fugir dessa questão tormentosa e não-unânime, leciona  que se trata de servidores regidos por estatutos especiais.

            Ademais, o objeto jurídico tutelado não é o “patrimônio público” (segundo opinião da zelosa mas inepta defesa) pelo singelo fato de que o delito insere-se no Título V – DOS CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO, Capítulo IV – DO ESTELIONATO E OUTRAS FRAUDES – do CPM. Cuida-se, sim, de crime análogo àquele outro do Direito Penal comum, mas que, nesta sede, recebeu atenção do legislador devido à relevância da tutela disciplinar castrense como fator de higidez, regularidade e perpetuidade da instituição Forças Armadas. Daí, que a ação individual, em tempo de paz, na vida particular (ou privada), em local fora da administração militar, foi apreciada e aquinhoada com rígida carga axiológica que a espécie demandava sob o olhar do legislador.

Anoto, agora, preceitos positivados já na própria norma militar de estelionato (CPM 251):

§ 2º. Os crimes previstos nos incisos I a V do  parágrafo anterior são considerados militares somente nos casos do art.  9º.,  II, letras a e e.

 

Agravação da pena

 

§ 3º. A pena é agravada, se o crime é cometido em detrimento da administração militar.

           

            Vê-se, cristalinamente, que a competência é da Justiça Militar, ainda mais que a própria Lei Regente REAFIRMA isso no CPM 251, § 2º. Tivesse sido o injusto praticado, a mais, em detrimento da administração militar e haveria exasperação da pena cominada, a lume do CPM 251, § 3º.

            Que mais exara a jejuna defesa:

Ou seja, a conduta do paciente não causou dano, ainda que indireto, à credibilidade e à imagem das Forças Armadas (...).

            E, a propósito, estelionato é crime material, não de dano.

            Neste ponto, indago: desde quando há tutela jurídica, no Direito Penal Militar, para vagas categorias quais “credibilidade” e “imagem” das Forças Armadas? O que a Lei quer é que o comportamento, as ações, as atitudes, as condutas daqueles indivíduos militares sejam de molde a não descumprir normas legais, ordens, instruções etc. Afinal de contas, a função militar é o exercício da própria soberania nacional, sem a qual perime qualquer noção de estado. É, também, o fundamento pelo qual pode o comandante militar determinar o fuzilamento do acusado e, depois, comunicá-lo ao Presidente da República (CPM 57). E o agir do paciente fez, exata e precisamente, o que lhe era vedado. Aquele vínculo de sujeição especial ao estado de que comentei linhas atrás é o Leitmotiv, inclusive, da permissão constitucional de afastamento do uso do habeas corpus contra atos punitivos da disciplina militar. Está, pois, inscrito na própria Carta Cidadã.

            A disciplina militar, no conceito legal apresentado linhas atrás, não visa à credibilidade, à proteção da imagem das FA; visa, sim, à formação de uma tropa coesa, una, obediente, honrada e confiável, sem nódoas ou vícios sociais – o crime é um desses - , hábil e disponível à entrada em teatro de guerra a qualquer hora, do dia ou da noite.

Ainda que se hesite enxergar ofensa aos princípios da disciplina, de deveres e obrigações militares, deve-se, antes, volver os olhos para as normas seguintes, (EM 31):

Os deveres militares emanam de um conjunto de vínculos racionais, bem como morais, que ligam o militar à Pátria e ao seu serviço, e compreendem, essencialmente:

...

III – a probidade e a lealdade em todas as circunstâncias;

IV – a disciplina e o respeito à hierarquia;

V – o rigoroso cumprimento das obrigações e das ordens

...

            Realço: não são meras ilações. São normas legais postas que conformam o arcabouço jurídico da Justiça Militar, ramo do Poder Judiciário, e demandam obediência, acatamento, conformidade por todos quantos sejam militares, em qualquer momento – castrense ou privado - de suas vidas. Isto consubstancia mais um aspecto da idiossincrasia mavórcia, da especificidade do Direito Militar.

            Não fosse suficiente, há mais (EM 42):

A violação das obrigações ou dos deveres militares constituirá crime, contravenção ou transgressão disciplinar, conforme dispuser a legislação ou regulamentação específicas.

§ 1º. A violação dos preceitos da ética militar será tão mais grave quanto mais elevado for o grau hierárquico de quem a cometer.

            Inicia o voto:

(...) a defesa requer anulação da ação penal militar, porquanto a conduta praticada pelo paciente não ocorreu em lugar sujeito à administração militar, contra o patrimônio sob administração militar, em serviço ou, ainda, atuando em razão de sua função, não se enquadrando, por conseguinte, no previsto no art. 9º., II, alínea ‘b’, do CPM.

Imagino como pode prosperar tese defensiva tão contrária a todo o sistema jurídico, contra a inteligência.

 Um crime tipicamente militar, próprio e de mão própria, de mera conduta, é o de deserção (CPM 187). Pensando nele, proponho cotejar as assertivas da impetrante com as que ofereço. O crime de deserção não ocorre em lugar sujeito à administração militar, não é contra o patrimônio sob administração militar (a menos que o militar seja um semovente), não é “em serviço”, não ocorre por atuar em “razão de função” e, a despeito de tudo e por excelência, é crime de competência da Justiça Militar.

De fato, o CPM 9º., II, “b” não contempla quase nada daquilo que alega a tíbia defesa, salvo, é claro, por lugar sujeito à administração militar. Eis, pois, o artigo invocado, embora desvirtuado, o que é uma vergonha:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

(..)

II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

(...)

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

Que a defesa jejuna errasse, admito. Que o Tribunal erre, não. É só acompanhar o rol de circunstâncias apontadas (i) local sujeito à administração militar, (ii) contra o patrimônio sob administração militar, (iii) em serviço e, derradeiramente, (iv) em razão de sua função. Que lástima! Nada, ou quase nada, disso está na norma castrense suso-referida e colacionada pela defesa à guisa de fundamentar-lhe a injurídica tese. E não se há de dizer que “em serviço” seja sinônima locução de “em situação de atividade” – já assaz esclarecido no começo desta crítica.

Depois, traz o voto:

Fixadas essas premissas, observo que, na linha do entendimento firmado por esta Corte, a tão só condição de militar da ativa não é suficiente para atrair a excepcional competência da Justiça castrense.

A controvérsia discutida se refere à competência para julgamento de estelionato praticado por militar contra outro militar, ambos da ativa, cometido fora do exercício da função e por motivação completamente alheia às atividades militares.

Com efeito, na linha do entendimento firmado por esta Corte, ressalto que a condição de militar da ativa não é suficiente para atrair a excepcional competência da Justiça castrense. (...)

Ora, com tristeza, pergunto: qual é esse incongruente, senão inconspícuo, “entendimento firmado por esta Corte”? Aquela famigerada e diacrônica Súmula? Jurisprudência ultrapassada pelo novo momento constitucional? Falácia do argumentum ad antiquitatem? Ou a do Argumentum magister dixit? (Creio, deveras, seja esta última mais robusta, dado sua onipresença nos julgados).

Asseverar que “a tão só condição de militar da ativa não é suficiente para atrair a excepcional competência da Justiça castrense” denota imenso descaso para com o próprio ordenamento jurídico. Primeiro, porque o CPM 9º., II, “a” comanda, exatamente, isso! Vejam-se, pois, além do CPM 9º., II, “a”, o CPM 251:

§ 2º. Os crimes previstos nos incisos I a V do  parágrafo anterior são considerados militares somente nos casos do art.  9º.,  II, letras a e e. (Realcei).

 

            Diploma legal e dispositivos recepcionados pela Carta Política. É o quanto basta para o jurista.           

Por outro lado, a competência da Justiça Militar não é “excepcional”. É constitucional e legal. Não se cogita de nenhum tribunal de exceção, nem “ad hoc”; nem sequer de norma “ex post facto”. Daí, a absoluta irrelevância e inoportuna remissão ao princípio do juiz natural como fundamento para defenestrar a causa da competência da JM. Ad argumentandum tantum, o uso da locução latina ex post facto na espécie não é recomendável, sobretudo porque se trata de “caso concreto” hostilizado, não de norma infraconstitucional criada para, retroagindo, prejudicar conduta ocorrida antes de sua existência. Este, de rigor, o entendimento da locução latina muito usada no Direito Constitucional norte-americano, presente, inclusive, no art. 1º., § 9º. da Carta ianque (No Bill of Attainder or ex post facto Law shall be passed), na seção que regula o Poder Legislativo e suas limitações.

            Pois muito bem. Adiante, nos termos do voto.

Quando se decide que a controvérsia discutida se refere à competência para julgamento de estelionato praticado por militar contra outro militar, ambos da ativa, cometido fora do exercício da função e por motivação completamente alheia às atividades militares, merece um reparo: aqui usou a nomenclatura correta para a situação: “ambos da ativa”. Entretanto, essa fundamentação peca por abrigar argumentos da injurídica tese da defesa, descurando-se da norma penal militar regente – o CPM 9º., II, “a” – que, inclusive, é baliza para aferir a competência da JM. Peca, ainda, porque se referir ao delito “cometido fora do exercício da função e por motivação completamente alheia às atividades militares” não tem nenhum respaldo legal para determinação da competência. Além disso, estar-se-ia funcionando como corte de apelação, revendo matéria de fato e probatória – o dolo. Trata-se de velha cantilena que não tem domicílio em nenhum dispositivo legal ou constitucional, a não ser em entendimento emanado e reiterado de falácia e de Súmula dissonante do tempo constitucional ora vivido. Súmula, aliás, que já deveria ter sido revogada, cancelada, expurgada do repositório sumular do Supremo.

No que diz respeito aos precedentes alistados como arrimo da tese, apenas o voto-vencido da ministra Cármen Lúcia é lúcido, útil e conforme à boa exegese das normas penais militares. Vencida, o redator do acórdão – HC 103.812, ministro Luiz Fux fez ressoar a velha e anódina nota musical, que não merece vingar.

Há boas decisões no mais das vezes. Desta feita, não trilhou por consagrada via dos bons julgados o Tribunal e, pior, cria permissivo para que futuros julgados incorram na mesma falácia.