Glicocorticoides na Prática Clínica Veterinária de Pequenos Animais
Publicado em 17 de março de 2010 por Sonia Maria Fontes do Espírito Santo
Glicocorticoides na Prática Clínica Veterinária de Pequenos Animais
(Resumo de Levantamento Bibliográfico)
Os principais hormônios sintetizados pelo córtex da suprarrenal a partir do colesterol são divididos em duas classes, os mineralocorticoides e os glicocorticoides.O primeiro grupo inclui a aldosterona, e exerce efeitos fisiológicos sobre o equilíbrio hídrico e eletrolítico.Os glicocorticoides afetam o metabolismo dos carboidratos, lipídeos e proteínas, a resposta imunológica e a reação ao estresse.Como os glicocorticoides possuem alguma atividade mineralocorticoide, eles também influenciam o equilíbrio eletrolítico.
Os glicocorticoides, geralmente, são usados como medicamentos anti-inflamatórios.O principal hormônio glicocorticoide é o cortisol (hidrocortisona), e o entendimento do anel estrutural básico e dos aspectos essenciais que são responsáveis pela sua ação levou à síntese de vários compostos com potência glicocorticoide maior e reduzida atividade mineralocorticoide.Os aspectos essenciais da estrutura para atividade glicocorticoide são: 1) a hidroxila no C-11; 2) um grupo cetona no C-20 e no C-3, e 3) uma dupla ligação entre os carbonos 4 e 5.Uma dupla ligação entre o C-1 e C-2, grupo metil no C-6 ou C-16 e flúor no C-19 são exemplos de adições que intensificam a vida média biológica dos glicocorticoides, diminuem sua atividade mineralocorticoide e elevam, substancialmente, sua ação anti-inflamatória.Os corticosteroides não são ativos, a menos que possuam grupos funcionais apropriados.Por exemplo, a ativação da prednisona e cortisona requer hidroxilação no C-11 por enzimas hepáticas reativas para formar prednisolona e cortisol, logo ineficazes para uso tópico.
A prednisona e prednisolona produzem menos transtornos no equilíbrio eletrolítico que o cortisol, e a metilprednisolona e triamcinolona são, aproximadamente, cinco vezes mais potentes que o cortisol como glicocorticoides e carecem de atividade mineralocorticoide.Os corticosteroides terapêuticos são classificados de acordo com suas potências glico e mineralocorticoides, assim como a duração de seu efeito biológico.De modo geral, aqueles compostos com atividade glicocorticoide mais potente também são potentes supressores do eixo hipotalâmico-pituitária-adrenal (HPA).
Mecanismo de Ação:
Os glicocorticoides suprimem os processos inflamatórios através de diversos mecanismos.Eles interagem com proteínas receptoras intracelulares específicas nos tecidos alvos para alterar a manifestação dos genes corticosteroides-responsívos. Receptores glicocorticoides-específicos no citoplasma da célula se ligam a conectores esteroides para formar complexos hormônios-receptores que, eventualmente, se deslocam para o núcleo da célula.Lá esses complexos se ligam à sequências de ADN específicos e alteram suas manifestações.Os complexos podem induzir a transcrição de ARN-m levando à síntese de novas proteínas.Tais proteínas incluem a lipocortina, uma proteína conhecida por inibir a fosfolipase A₂, e assim bloqueia a síntese de prostaglandinas, leucotrienos e PAF (fator de liberação de plaquetas).Os glicocorticoides também inibem a produção de outros mediadores, incluindo metabólitos do ácido araquidônico tais como COX (enzimas relacionadas com processo inflamatório), citoquinas, interleucina, adesão de moléculas, e enzimas como a colagenase.
Os glicocorticoides reduzem a migração de polimorfonucleares e o posterior extravasamento de monócitos e suprime a atividade fagocitária.Em etapas posteriores, inibem o crescimento capilar, proliferação de fibroblastos e deposição de colágeno, e retarda a cicatrização.
Uma via bioquímica importante bloqueada pelos glicocorticoides é a cascata do ácido araquidônico.O efeito cascata da prostaglandina-leucotrieno se inicia com um dano na membrana celular que dispara a atividade da fosfolipase A₂ nas membranas celulares para formar o ácido araquidônico.As enzimas cicloxigenase e lipoxigenase formam prostaciclina, tromboxano e leucotrieno do ácido araquidônico.A liberação do ácido araquidônico do componente fosfolipídio das membranas celulares depende da fosfolipase A₂. Os glicocorticoides inibem indiretamente esta enzima, induzindo a síntese do polipeptídio endógeno lipocortina, que possui atividade contra a fosfolipase.
Os compostos derivados da cicloxigenase, tais como PGE₂ e PGI₂, são importantes mediadores de respostas inflamatórias agudas, e a lipoxigenase gera compostos leucotrienos.Um destes últimos, o LTB₄, é um potente agente quimiotáxico que pode estar implicado no estímulo da migração de leucócitos ao exsudato, assim como outros (LTC₄ e LTD₄) são liberados em enfermidades alérgicas das vias respiratórias.
Efeitos:
O cortisol e outros glicocorticoides são gliconeogênicos, o que facilita a liberação de aminoácidos da musculatura, pele e tecido conjuntivo, aumentando a conversão de aminoácidos em glicose.Causam hiperglicemia, especialmente em ruminantes, e aumentam o armazenamento de glicose no fígado sob a forma de glicogênio, reduzindo a captação e utilização da glicose em outros tecidos.Há um aumento compensatório na secreção de insulina para responder à hiperglicemia.A taxa de lipólise aumenta, liberando ácidos graxos e glicerol do tecido adiposo e o glicerol assim formado pode se converter em glicose.A degradação de proteína se reflete no esgotamento muscular, diminuição da atividade dos fibroblastos, osteoporose, pele e mucosa delgadas.
O metabolismo do cálcio é afetado de várias formas: diminui a absorção intestinal tanto quanto aumenta a excreção renal; aumenta a secreção de paratormônio, ocorrendo estímulo osteoclástico.Esses efeitos combinados estimulam a mobilização do cálcio dos ossos, consequentemente, reduzindo a resistência óssea.
No sangue, observamos leucofilia devido ao aumento do número de neutrófilos circulantes, e redução dos linfócitos e eosinófilos circulantes.Os glicocorticoides deprimem a atividade dos tecidos linfoides.A ação imunossupressora dos glicocorticoides se manifesta na redução da imunidade mediada por células e diminuição da produção de anticorpos.Embora a depressão do tecido linfoide seja indesejada, esta ação pode ser útil no tratamento de certas neoplasias como o Linfossarcoma.
A administração prolongada de glicocorticoides pode levar à supressão da adrenal.A recuperação da função da adrenal ocorre, relativamente, rápida em cães e gatos após administração crônica de esteroides.Testes da resposta da adrenocorticotropina (ACTH) retornam ao normal três meses após a terapia esteroide prolongada terminar (Scott, 1980).Os gatos são os mais resistentes das espécies domésticas no que concerne à supressão da adrenal por glicocorticoides.Eles se recuperam mais rapidamente que os cães e são mais resistentes ao hiperadrenocorticismo iatrogênico.
Os efeitos anti-inflamatórios e imunossupressores dos glicocorticoides são atribuídos à supressão parcial ou total de uma complexa interação de células e mediadores celulares.É claro que os potentes efeitos dos glicocorticoides nos leucócitos são responsáveis pela maioria da atividade anti-inflamatória.Esses efeitos também são imunossupressores, e respondem por sua eficácia em enfermidades imunomediadas.Contudo, os glicocorticoides podem levar ao aumento da susceptibilidade à infecção, sendo então indicado, se necessário, associar o uso de antibióticos bactericidas ou fungicidas, conforme o caso.
Uso Terapêutico:
Ao administrar glicocorticoides, os benefícios efetivos devem ser pesados em relação aos conhecidos riscos da terapia.Devemos considerar que:
1-A dose apropriada para uma determinada enfermidade num dado paciente está baseada em tentativa e erro.Quando a administração for prolongada, a adose da droga deve ser avaliada periodicamente;
2-Uma dose única de um corticosteroide, apenas uma única dose, não possui efeitos prejudiciais;
3-Havendo contra indicações específicas, é improvável que dois a três dias de tratamento com um corticosteroide de curta duração produza efeitos prejudiciais.A exceção é quando doses extremamente altas são empregadas;
4-A incidência de efeitos prejudiciais aumenta com a extensão da duração da terapia corticosteroide, particularmente, quando a dose administrada excede a dose necessária;
5-Exceto em casos de insuficiência adrenal, a terapia com corticosteroide traz um risco significativo de desenvolvimento de insuficiência adrenocortical.
Não é possível calcular a dose exata de corticosteroide que suprimirá a pituitária e o córtex da adrenal em um determinado paciente, já que existem consideráveis variações individuais.Em geral, quanto maior a dose e mais prolongada a terapia, maior a probabilidade de supressão.
Certos efeitos metabólicos indesejáveis podem ser evitados utilizando o regime de dias alternados em lugar de uma dose diária.Com intervalos maiores entre doses, o grau de supressão da pituitária e córtex da adrenal pode ser minimizado.Para o regime de dias alternados são indicados os corticosteroides de curta duração.
Os ésteres de glicocorticoides determinam as vias de administração e se eles são ou não armazenados.
Geralmente, a dose imunossupressora de um dado glicocorticoide é o dobro da dose anti-inflamatória.Doses anti-inflamatórias são, aproximadamente, dez vezes maiores que as doses fisiológicas.
O cortisol é o hormônio glicocorticoide primário secretado pelas glândulas adrenais de cães e gatos.Variações diurnas ou circadianas na secreção diária de cortisol não são evidentes em grande número de cães e gatos.Secreção periódica de ACTH e cortisol podem ocorrer por todo o período de vinte e quatro horas.Em cães, o pico da concentração plasmática de cortisol ocorre pela manhã; em gatos, o pico de secreção de cortisol se dá à noite.O índice estimado da secreção decortisol, tanto para cães quanto para gatos, é de cerca de 1mg/kg/dia.
Os efeitos nocivos e involuntários não são incomuns quando glicocorticoides são utilizados, principalmente agentes de longa duração e residuais.Ao prescrevermos um corticosteroide, devemos estar familiarizados com as doses apropriadas, potências relativas e duração de ação do medicamento.
Se uma terapia anti-inflamatória ou imunossupressora for necessária durante a gravidez, corticosteroides e outras drogas imunossupressoras podem ser administrados. Prednisolona e prednisona são as drogas de escolha, pois possuem mínimo efeito mineralocorticoide e são, relativamente, de curta duração.Corticosteroides de longa duração, como a dexametasona, devem ser evitados, pois a mesma está associada com morte fetal e aborto em cães.Embora a cortisona esteja associada com más formações congênitas em animais de laboratório (fenda palatina, em particular), esses efeitos não foram observados em cães e gatos ou humanos (Brendel et. al, 1985; Pratt e Salomon, 1981).Talvez a diferença possa ser explicada pelo fato que os grupos de animais laboratoriais utilizados tenham um alto grau de receptores esteroides em comparação com cães e gatos.
Tab.1 – Droga, Potência Anti-inflamatória, Duração de Ação, Atividade Mineralocorticoide, Atividade Imunossupressora do HPA, Adequação para Terapia em Dias Alternados (TDA), Dose equivalente em mg:
Droga |
Potência Anti-inflamatória |
Duração de Ação (hs) |
Atividade Mineralocorti- coide |
Atividade Imunossup. do HPA |
Usado em TDA |
Dose equivalente em mg |
Curta Duração: Hidrocortisona (Cortisol) |
1 |
8 - 12 |
2 |
+ |
não |
20 |
Duração Intermediária: Prednisona Prednisolona Metilprednisolona Triamcinolona |
4 4 5 5 |
12 – 36 12 – 36 12 – 36 12 - 36 |
1 1 0 0 |
+ + + ++ |
sim sim sim não |
5 5 4 4 |
Longa Duração Flumetasona Dexametasona Betametasona |
15 30 30 |
32 – 48 32 – 48 32 – 48 |
0 0 0 |
+++ +++ +++ |
não não não |
1,5 0,75 0,60 |
Tab.2 - Indicações para Uso de Glicocorticoides em Cães e Gatos:
Condições Alérgicas |
Hipersensibilidade Aguda Dermatites Alérgicas Complexo Granuloma Eosinofílico Felino Infiltrados Pulmonares com Eosinofilia (PIE) ·Asma Felina ·Doenças Pulmonares Parasitárias (vermes cardíacos ou pulmonares) ·Granuloma Eosinofílico Pulmonar ·PIE Idiopático |
Doenças Imunomediadas |
Anemia Hemolítica Trombocitopenia Lupus Eritematoso Sistêmico Artrite Reumática Dermatopatias Miopatias |
Desordens Metabólicas |
Hipoadrenocorticismo Espontâneo Hipoadrenocorticismo Iatrogênico Hipercalcemia ·Pseudohiperparatireoidismo ·Hiperparatireoidismo Primário |
Outras Indicações |
Inflamação do Sistema Nervoso Central Choque |
Tab.3 – Dermatoses Caninas e Felinas que respondem às doses de Glicocorticoides
Anti-inflamatória |
Imunossupressiva |
Atópica Hipersensibilidade às pulgas Hipersensibilidade às picadas de outros insetos Hipersensibilidade a alimentos Dermatite de contato (irritante ou alérgica) Urticária e Angioedema Dermatite Piotraumática Dermatite por lambedura Dermatite Seborreica Dermatite Solar Acanthosis nigricans Mucinose Idiopática do Sharpei |
Pemphigus Pemphigoide Lupus Eritematoso (discoide e sistêmico) Enfermidade da hemaglutinina fria Vasculite Erupções por drogas Dermatose linear IgA Síndrome Vogt-Koyanagi-Harada Dermatomiosite Pododermatite Policondrite Paniculite estéril Granuloma e Placa eosinofílicos Úlcera indolente Síndrome granuloma/piogranuloma estéril Granuloma por corpo estranho Pustulose eosinofílica estéril Celulite juvenil Dermatose liquenoide psoriasiforme do Spring Spaniel Histiocitoma fibroso benigno Linfossarcoma (epiteliotrópico e não epiteliotrópico) Mastocitoma |
Tab.3 – Efeitos Adversos Potenciais dos Glicocorticoides:
SNC Polifagia Euforia Sistema Musculoesquelético Osteoporose Miopatia Inibição Fibroblástica Diminuição da absorção intestinal de cálcio Sistema Gastrintestinal Ulceração GI Pancreatite Perfuração colônica Equilíbrio Hídrico Retenção hídrica e de sódio Poliúria e polidipsia |
Metabólico Hiperlipemia Lipólise Catabolismo proteico Infiltração gordurosa Hepatopatia esteroide Endócrino Supressão do eixo HPA Diabetogênico Síntese tiroidiana diminuída Elevação hormonal paratireoidiana Defesas do Hospedeiro Morte bacteriana diminuída Risco de septicemia Cistite séptica recorrente |
Tab. 4 – Efeito dos Glicocorticoides na Função Adrenocortical de Cães:
Droga |
Protocolo |
Via |
Duração da Supressão após suspensão do Tratamento |
Administração Parenteral Dexametasona Dexametasona fosfato de sódio Dexametasona álcool Dexametasona 21-isonicotinato Dexametasona 21-isonicotinato Metilprednisolona acetato Metilprednisolona acetato Metilprednisolona acetato Triamcinolona acetonida Triamcinolona acetonida |
0,1mg/kg/dia 0,1mg/kg/dia 1mg/kg/dia 0,1mg/kg/dia 1mg/kg/dia 2,5mg/kg/dia 4mg/kg/dia 0,56mg/kg/dia 0,22mg/kg/dia 0,22mg/kg/dia/8 dias |
EV EV IM IM IM IM IM SC IM PO |
32 hs < 24 hs 48 hs 10 dias 4 semanas 5 semanas 9 semanas 3 semanas 4 semanas 2 semanas |
Administração Tópica Betametasona valerato Dexametasona Dexametasona Fluocinonida Prednisolona acetato Triamcinolona acetonida Triamcinolona acetato |
1,36mg/kg/dia/5 dias 0,03mg/kg/dia/8 sem 0,31mg/kg/dia/3 sem 0,68mg/kg/dia/5 dias 0,75mg/kg/dia/4 sem 1,36mg/kg/dia/5 dias 0,31mg/kg/dia/3 sem |
unguento gts. oftálmicas gts. óticas unguento gts. oftálmicas unguento gts. óticas |
4 semanas 2 semanas 3 semanas 4 semanas 2 semanas 4 semanas 3 semanas |
Tab. 5 – Dose Recomendada:
Droga |
Cães |
Gatos |
Betametasona |
0,028 – 0,055ml/kg IM; dose única |
Não |
Dexametasona |
0,25-1,0mg EV, IM; dose dia 0,25-1,25mg/dia PO Choque: 5mg/kg EV 20ml/kg EV até o efeito |
0,125-0,5mg/dia PO, EV, IM Choque: a mesma a mesma |
Fludrocortisona |
0,2-0,8mg/dia PO |
0,1-0,2mg/dia PO |
Flumetasona |
0,06-0,25mg/dia PO, EV, IM, SC |
0,03-0,125mg/dia PO, EV, IM, SC |
Hidrocortisona |
4,4mg/kg a cada 12h PO Choque: 50mg/kg EV |
a mesma |
Metilprednisolona (Prednisolona) |
Alergia: 0,5mg/kg 2x/dia PO ou IM Imunossupressão: 2,0mg/kg 2x/dia PO ou IM Uso prolongado: 0,5 – 2,0mg/kg em dias alternados pela manhã PO |
1,0mg/kg 2x/dia PO ou IM 3,0mg/kg 2x/dia PO ou IM 2,0 – 4,0mg/kg em dias alternados, à noite PO |
Triamcinolona |
0,25 – 2mg/dia PO por 7 dias 0,11 – 0,22mg/kg IM, SC |
0,25 – 0,5mg/dia PO por 7 dias 0,11 – 0,22mg/kg IM, SC |
Bibliografia:
Kirk's Current Veterinary Therapy – Small Animal Pratice
Editado por John D. Bonagura
W.B.Saunders Company, Philadelphia, PA
JAVMA – Journal of the American Veterinary Medical Association