Gilberto Freyre ? suas obras e seu legado: uma ênfase ao Manifesto Regionalista de 1926 e a Uma Cultura Ameaçada: a luso-brasileira

1. O Manifesto Regionalista de 1926: uma breve discussão

"Gilberto Freyre, hoje, é o cientista social mais lido, discutido e interpretado do Brasil (...)."(Andrade, 2002, p. 9)

Gilberto Freyre (1900-1987), pernambucano de Recife, filho de família tradicional, com sérios problemas de aprendizagem na infância, mas com a atenção pedagógica dos pais, conseguiu superar e aos 16 anos já se mostrou conferencista. Aprendeu vários idiomas (inglês, latim, francês, etc.), tanto que têm vários livros, ensaios e artigos publicados em idiomas estrangeiro. Freyre foi um dos mais importantes intelectuais das ciências sociais da primeira metade do século 20, não apenas em nosso país, mas no mundo. Estudou de 1908 a 1917 no Colégio Americano em Recife, colégio de missionários batistas americanos, onde seu pai lecionava. Em 1920 Gilberto se gradua em Letras e Ciências Humanas na Universidade Baylor, no Texas (instituição batista). Em 1922 Freyre vai para Nova Iorque, onde recebe o titulo de Mestre em Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais pela Universidade de Columbia, com sua tese intitulada, Vida Social no Brasil em meados do século 19.
Dentre tantas obras a mais conhecida foi lançada em 1933 ? Casa Grande & Senzala, onde o mesmo fazia questão de afirmar que o negro e o mulato não eram mais inteligentes nem menos importantes do que os brancos ditos como "raça pura". Foi a primeira vez que um estudioso da época colocava que o negro não era um problema, pelo contrario, que o negro também fazia parte do progresso da nossa nação.
Logo no inicio do século 20, nosso país era extremamente agrário e atrasado em relação à Europa, contratando com a vida cultural sofisticada de alguns centros urbanos da época. Nesta época Lima Barreto em - O Triste fim de Policarpo Quaresma ? e, Monteiro Lobato em ? Urupês -, descreviam as limitações do desenvolvimento sociocultural do Brasil daquele momento.
A década de 20 foi bastante fértil em debates e polêmicas literárias e sociopolíticas, tendo este confronto, na visão de Andrade (2002, p. 28), dado origem a duas correntes: a modernista também denominada de futurista, e a regionalista denominada de passadista ou tradicionalista. Gilberto identificou-se com a segunda corrente, e em 1941, reuniu vários artigos seus e publicou um livro intitulado Região e Tradição.
A Independência aconteceu em 1822 e, no seu Centenário (1922), o Brasil parecia estar movido por uma grande euforia, germinando varias idéias e realizações como, por exemplo, à realização da Semana de Arte Moderna em São Paulo (que em Pernambuco chegou através de Joaquim Inojosa, que não admirava nem um pouco as ideais de Freyre) e a comemoração dos 100 anos do Grito do Ipiranga no Rio de Janeiro e, o Radio como sendo a nova moda, com aceitação do Chorinho (gênero brasileiro), até então desvalorizado.
Partindo do pressuposto de que o ano de 1922 no Brasil foi um marco com muitos acontecimentos marcantes, Gilberto recebia seu titulo de mestre viajava para a Europa, onde conheceu a França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, Espanha e Portugal. Em 1923 Freyre retorna ao Brasil, mais precisamente a Recife e desejoso de escrever a sua historia de infância no Brasil.
Um fato marcante é que, quando Freyre retornou a Pernambuco, em 1923, a política vivia uma grande agitação, originada da crise econômica que atingia a região, com a tentativa de controlar a política estatal pelo presidente paraibano ? Epitácio Pessoa e, a repercussão, no Estado, da Revolução Russa de 1817. Segundo Andrade (2002, p. 26), "levara o Estado a se dividir em duas grandes facções: autonomistas (seguidores de Manuel Borba) e a pessoísta (dos seguidores de Epitácio Pessoa)." Gilberto estava do lado de Estácio Coimbra (vice-presidente), amigo do mesmo, de que Gilberto seria auxiliar direto de 1926 a 1930. E em 1927 lá estava Freyre, trabalhando como Secretário particular do então governador de Pernambuco. Mas estoura a Revolução de 1930 e o seu chefe é cassado e foge para Portugal ao lado de Freyre.

Vale ressaltar que, quando retornou a Recife, Freyre presenciava a ruínas da historia antiga do Recife, onde em nome do progresso e da modernidade, os sobrados antigos e ruas estreitas, davam lugar a altos prédios e avenidas largas. Em meio à grande indignação e desolação Gilberto vê uma luz no fim do túnel e, foi contratado para organizar um livro de alusão ao marcante acontecimento ? o centenário em 1925 de - O Diário de Pernambuco. Surgiu ai o livro ? O Nordeste ? que reunia a mais celebre equipe de pesquisadores, estudiosos da época.
Em 1926 Gilberto Freyre ajuda a organizar o Congresso Regionalista do Recife. Esse congresso tem suas origens em anos de debates, reuniões e discussões de um grupo de estudiosos e profissionais liberais, e é a partir desse congresso que nasce o Movimento Regionalista de 1926, publicado em fragmentos inicialmente, mas na integra 25 anos depois, em suas "bodas de prata", em 1952. Esse manifesto lido por Freyre no evento por ele organizado repercutiu no Brasil e no mundo.
O Congresso teve apresentação de varias teses e comunicações, os participantes eram heterogêneos. Segundo Andrade (2002, p. 37), o congresso congregava homens ligados à análise de problemas urbanos, homens das letras, homens preocupados com a renovação do ensino, homens ligados ao meio rural e a preocupações folclóricas. Eram muitos os nordestinos preocupados com a perpetuação da cultura regional dentro do contexto nacional.
Segundo Andrade (2002, p. 38):
Gilberto salientava que a região nordestina se caracterizava tanto como uma realidade geográfica como, mais ainda, histórica e que era mais social do que política (...) e reforça este conceito ao afirmar que é de regiões "que o Brasil, sociologicamente, é feito desde os seus primeiros dias. Regiões naturais a que se sobrepuseram regiões sociais".
Assim Freyre alertava no que diz respeito aos valores regionais, para o perigo que havia na disputa entre os estadistas (que defendiam os interesses e as aspirações dos estados, esquecendo-se da região) e os defensores da unidade nacional (que se opunham a uma "poda" na federação.
No que tange as habitações populares, Freyre defendia a preservação dos mocambos, uma vez que estes eram construídos a partir da matéria prima local, porém, Josué de Castro (1945) alertou para a construção destes sobre os mangues, apesar da riqueza em crustáceos que servia de alimentação ao trabalhador pobre do recifense e dos litorâneos de forma geral.
Outra defesa de Freyre, era no que diz respeito à conservação da fisionomia antiga do lugar, não que ele fosse contrario a abertura de vias, mas ele entendia que o novo deveria conservar o velho, guardando assim as origens da historia do lugar. "Ele defendia uma urbanização moderna mas com respeito ao antigo, ao tradicional." (Andrade, 2002, p. 39).
Freyre demonstrou ainda grande preocupação com a questão da alimentação, tentando fazer ressurgir formas de alimentação ligadas ao tropico e à historia açucareira, "os famosos bolos e doces, muitas vezes preservados com um ciúme quase doentio pelas famílias importantes, como aconteceu, durante muito tempo com o bolo Souza Leão." (Andrade, 2002, p. 39).
Nas muitas paginas do Manifesto Regionalista desfilavam mostras de comidas regionais, como por exemplo, "carne de bode, sarapatéis, buchadas, fritadas de guaiamum, cozidos com o pirão de farinha de mandioca, pratos de peixes e de crustáceos (...), além destes tinham, os doces de coco, os pudins de coco, e tantos outros típicos da região nordeste." (Andrade, 2002, p. 40).
"A verdade é que não há região no Brasil que exceda o Nordeste em riqueza de tradições ilustres e em nitidez de caráter. Vários dos seus valores regionais tornaram-se nacionais depois de impostos aos outros brasileiros menos pela superioridade econômica que o açúcar deu ao nordeste durante mais de um século do que pela solução moral e pela fascinação estética dos mesmos valores." (Freyre, 1952).

Deste modo, o Manifesto Regionalista declarava que o movimento regionalista era composto por "um grupo apolítico", sendo que reunia pessoas que fazia parte da política de esquerda (Alfredo Coutinho) e pessoas militantes da extrema direita (Carlos Lyra Filho). (Freyre, 1996). Assim, é possível afirmar que não era intenção do enfoque regionalista, estimular nenhuma divergência política na época.
No entanto, estimulava a unidade nacional, em detrimento de iniciativas separatistas, como eram muitas vezes acusados e apontados. Os regionalistas procuravam instigar articulações entre as regiões brasileiras, ao invés, da relação entre Estados da Federação e União. Assim o regionalismo visava "a superação do estadualismo ou separatismo, lamentavelmente desenvolvido pela Republica."(Freyre, 1996, p. 49, 51).
Outra observação clara e consistente do manifesto é afirmar que o regionalismo é um movimento que defende as expressões culturais locais, as tradições populares e aristocráticas regionais e de resistências contra influencias externas ao Nordeste. O documento discorre ainda sobre a perspectiva inter-regional como sendo um recurso metodológico excepcional para o entendimento da sociedade brasileira. "A leitura do Nordeste, especialmente, deve ser feita a partir da comparação com outras regiões brasileiras (Freyre, 1996).
Em suma, a manifestação de Freyre no Congresso Regionalista em Recife, concede ao regionalismo uma função crucial na preservação da unidade nacional e na compreensão da sociedade brasileira, além de proteger os costumes culturais regionais das ações culturais externas.
Existem varias reflexões acerca das idéias de Freyre e do Manifesto Regionalista. A alguns que expõem que naquele momento surgiu o REGIONALISMO "do pitoresco, do sabor, do gosto, do apego a estilos e flagrantes vividos ou presenciados em dimensão local."(Saldanha, 1985). É outros miram a abordagem culturalista de Gilberto, como sendo uma das grandes visões que auxiliaram a organizar o conceito de Nordeste, atrelada com as idéias estadualistas do inicio do período republicano (em que dominava, a divisão político-administrativo da região) e, também o enfoque dualista (dois "brasis" ? um desenvolvido e outro subdesenvolvido), defendido por Celso Furtado na década de 1950. E por fim, Castro 1989, afirma que, no discurso de Freyre há a origem do regionalismo predatório do Nordeste, sendo uma "armação" da elite intelectual conservadora do Nordeste, tendo Pernambuco e Freyre adiante, na tentativa de "tirar" recursos públicos do governo federal para esta região.
Portanto, muitas foram e são as discussões acerca das obras e das ideais polemicas do sociólogo e escritor Gilberto Freyre. Porém, maiores são as contribuições, visto que muitas das suas preocupações daquela época, são ainda hoje tidas em nosso cotidiano, vivas como as ideais de Freyre.

2. Uma Cultura Ameaçada: a luso-brasileira: uma breve analise

O sociólogo Gilberto Freyre sempre manifestou preocupar-se com as questões de território, com o homem, e conseqüentemente co a cultura. Em 1940, em uma conferencia realizada no Gabinete Português de Leitura, no Recife, Freyre lançou um brado em favor de Uma Cultura Ameaçada. Na visão do geógrafo Manoel Correia de Andrade, para compreendermos o sentido da mensagem desta conferencia é fundamental que nos reportemos aos anos 40, quando a Alemanha nazista conquistava os países europeus. Naquela época esperava-se forte resistência da frança aos alemães, mas isso não aconteceu, e Paris foi ocupada.
No Brasil, estes acontecimentos causavam temor e o medo do avanço nazista no país tomava conta da nação, até porque, "o governo demonstrava simpatias para com o fascismo italiano; outorgava uma Constituição corporativista e implantara uma legislação trabalhista baseada na Carta del Lavoro; com a desculpa de acabar com a ameaça comunista, impunha uma brutal repressão que atingia os liberais em geral e chegara até a entregar a mulher do líder comunista Luis Carlos Prestes, Olga Benário, que era judia, à Gestapo alemã." (Andrade, 2002, p. 51).
A situação não era das melhores nem para os brasileiros que temiam o avanço do nazismo e, em para os germanófilos que temiam o desmembramento de porções do território nacional onde viviam populações de origem alemã, italiana ou japonesa. A insegurança era maior ainda por perceber-se que o governo brasileiro sempre fora omisso em relação às áreas de colonização, onde "doava terra aos colonos mas deixava-os sem nenhuma assistência medica, escolar e cultural." Andrade, 2002, p. 51). Somava-se o útil ao agradável, a omissão do governo brasileiro e o desejo dos governos nazi-facistas, de contrabalançar a influência inglesa e americana na América Latina.
Durante a guerra, o Governo Vargas, temeroso de revolta na área das colônias, resolveu elaborar uma política de aculturação compulsória dos colonos, abrigando-os a aprender a língua portuguesa, chegando até a convocá-los para o serviço militar. Esse episódio revoltou, não só aos descentes de imigrantes, mas também a mitos intelectuais que viam na cultura uma forma de "salvar" a historia dos seus antepassados.
Segundo Freyre (2002, p. 51):
No Brasil, uma política de integração poderia ter duas opções: ou a interação com os países vizinhos da América do Sul, como a que foi feita pelo Tratado de Assunção (1995) com o Mercosul, ou com uma integração com os países de língua portuguesa, Portugal e as então colônias portugueses da África e da Ásia, chamadas de províncias ultramarinas, para formar uma comunidade à base da língua e da cultura." (Andrade, 2002, 52).
Segundo este autor, a primeira opção teria um sentimento eminentemente geográfico, da continuidade territorial, e a segunda um sentido antropológico, da continuidade lingüística e cultural.
Gilberto Freyre defendeu durante dezenas de anos a idéia da comunidade luso-brasileira, ao defender a colonização portuguesa face à holandesa e a cultura luso-brasileira frente à alemã. "Ele caminhou para pesquisas em Portugal e nas antigas colônias portuguesas da África, Angola e Moçambique, onde já se iniciavam movimentos em favor da independência, e estendeu as suas observações até Goa, na ainda existente Índia portuguesa." (Andrade, 2002, p. 53).
Em 1934, realizou-se em Recife, o Congresso Afro-Brasileiro, por iniciativa, segundo René Ribeiro, de Gilberto Freyre, que segundo este autor, foi um grande estímulo adicional para que se dedicasse aos estudos afro-brasileiros. E em mais de uma ocasião recordou que se "interesse pela antropologia" havia sido aguçado "pela convivência com Gilberto Freyre, que começou a emprestar-lhe The Mind of Primitive Man, de Franz Boas" ex-professor de Freyre e grande influenciador de estudos voltados para a cultura.
Portanto, Uma Cultura Ameaçada, não deve ser entendida como radical, pelo contrário, deve ser vista como uma atitude de precaução, proteção num momento histórico impreciso e crucial. Gilberto sempre demonstrou ser aberto a uma política internacional de interação entre países independentes, tanto é que sempre cogitou a criação da Comunidade de Povos de Língua Portuguesa, que poderia competir com outras comunidades em formação, na visão freyriana. Assim, Freyre sempre procurou comparar e complementar conceitos sociais e biológicos, como cultura e raça, cultura e povo, povo e civilização, para a preservação de uma cultura rica em detalhes, mas ameaçada de extinção.

Bibliografia

AZEVEDO, Neroaldo Pontes. Modernismo e Regionalismo: os anos 20 em Pernambuco. João Pessoa:
Secretaria de Educação e Cultura da Paraíba, 1984.
ANDRADE, Manoel Correia. Gilberto Freyre e os grandes desafios do século XX. Petrópolis, RJ: vozes, 2002.
CASTRO, Iná Elias de. O mito da necessidade - Discurso e prática do regionalismo nordestino. Tese de Doutorado em Ciência Política, Rio de Janeiro, IUPERJ, 1989.

FONSECA, Edson Nery da. Gilberto Freyre de A a Z: Referencias essenciais à sua vida e obra. Rio de Janeiro: Dptº Ncional do Livro e Fundação Biblioteca Nacional, 2002.
FREYRE, Gilberto. "Manifesto Regionalista". In: Quintas, Fátima (org.), Manifesto Regionalista. (7ª ed.). Recife, Editora Massangana, 1996.

FREYRE, Gilberto. Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira. Recife: Gabinete Português de Leitura, 1942.

FREYRE, Gilberto. Nordeste. Rio de Janeiro: Record, 1989.
FURTADO, Celso. A Operação Nordeste. Rio de Janeiro, ISEB/Ministério da Educação e Cultura, 1959.

René Ribeiro, "Discurso do Professor René Ribeiro", em René Ribeiro, Professor Emérito, Recife, Massangana, 1990, pp. 17-26. Citação da página 20.

SALDANHA, Nelson. Pensamento social nordestino. Recife, Editora Asa Pernambuco, 1985.