GESTÃO DAS ÁGUAS EM CENÁRIOS DE DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E COMBINADO

 

Paulo Henrique Kingma Orlando

Resumo

O presente texto visa estabelecer uma relação entre o desenvolvimento desigual e combinado, as escalas geográficas e as políticas de gestão de recursos hídricos em nosso país. A idéia de desenvolvimento desigual e combinado surge a partir da consideração de que existe um vai-e-vem do capital aplicado aos diferentes lugares do espaço com o objetivo de sempre escolher os locais que melhor o remunerem. Há com isso uma dança desse capital entre os diferentes lugares buscando sempre a melhor remuneração. Assim os lugares apresentam uma dinamicidade e estão sujeitos a transitarem entre desenvolvimento e estagnação. A discussão das escalas geográficas, por sua vez, remete a uma visão de que existem entidades espaciais de diferentes escalas como povoado, a cidade, a região etc. que possibilitam, uma vez articuladas, dar melhor explicação aos fenômenos que observamos no espaço geográfico objeto de estudo. Com esses dois conceitos compreendidos partimos para integrá-los à idéia de gestão dos recursos hídricos, pois essa gestão ocorre na escala espacial das bacias hidrográficas e por isso a explicação do que ocorre na bacia pode remetermo-nos a outras escalas geográficas de análise como a região ou mesmo o país. Essa discussão foi realizada visando clarear e dar densidade aos argumentos teóricos que mais adiante foram utilizados na pesquisa “Produção do Espaço e Gestão Hídrica na Bacia do Rio Paraibuna Mineiro”. Contudo, aqui apresentamos apenas o resultado dessa análise teórica.

 

Abstract

The present article aims to draw an existing relation between uneven and combined development concerning geographical scale and water resources management policy in Brazil.

The idea of uneven and combined development emerges out of the consideration that there is an ongoing process in which capital comes from and goes to everywhere choosing those places with best profitability.

By doing so capital dances (move) from place to place in pursuit of ever more profitability.

Thus, places present a dynamics constitution being subject to transition from development to stagnation.

The discussion upon the geographical scale, in its turn, entails a perspective in which there are many space entities with different scale such as, village, city, region etc. And this perspective, if articulated, leads to a better explanation of the phenomena observed in the space.

 After calling attention to the consciousness of this two concepts we move on to integrate them to the idea of water management resources for, management occur in the spatial scale of the water basin and due to this, the explanation of what happens in the basin may compel us to others geographical scale in our analyses such as a region o even the whole country.

This pathway to this discussion was made in order to clarify and provide density to the theoretical arguments which in the pages ahead were employed in the research “Production of Space and Water Management in the Paraibuna Mineiro river basin.

 

 

Introdução

Uma realidade observada nos estudos que tratam da gestão dos recursos hídricos é a falta de uma análise mais profunda sobre as razões da existência de determinada dinamicidade no uso das terras de uma bacia hidrográfica e sua relação com fatos que ocorrem em outras escalas espaciais. Partindo dessa colocação procuramos articular o conceito de desenvolvimento desigual e combinado e o de escalas geográficas e aplicá-los à análise da gestão dos recursos hídricos. Isso como fonte de recursos teóricos capazes de possibilitar uma melhor compreensão do processo de gestão em tela.

 

O Desenvolvimento

O desenvolvimento desigual e combinado é colocado para discussão, notadamente, na obra de Neil Smith (1988), onde se traça a teoria de que o sistema capitalista se desenvolveria através de "um vai e vem" do capital no espaço geográfico buscando sempre as melhores condições de realizar lucros e acumular capital.

Desse movimento resultaria uma particularidade do próprio sistema em produzir diferenciações espaciais num momento, onde haveria áreas de acumulação de capital (regiões desenvolvidas) e áreas de baixa aplicação de capitais (regiões subdesenvolvidas). Contudo, num momento seguinte, a acumulação excessiva de capitais nas áreas para onde os mesmos se dirigiram formariam condições de baixa realização de lucros pelo excesso de capitais em relação à capacidade de acumulação diante das áreas então com deficiência de capitais, mas com outras condições potencias de lucro e acumulação.

Smith (1988) assim coloca a questão:

 

No embasamento do padrão de desenvolvimento desigual está a lógica e a tendência do capital em direção àquilo que chamaremos de movimento "em vai e vem" do capital. Se a acumulação do capital acarreta o desenvolvimento geográfico e se a direção desse desenvolvimento é guiada pela taxa de lucro, então podemos pensar no mundo como uma "superfície do lucro" produzida pelo próprio capital, (...). A mobilidade do capital acarreta o desenvolvimento de áreas com altas taxas de lucro e o subdesenvolvimento daquelas áreas onde se verifica baixa taxa de lucro. Mas o próprio processo de desenvolvimento leva à diminuição dessa taxa de lucro mais alta. (...), o desenvolvimento das forças produtivas num dado lugar leva a um menor desemprego, a um crescimento no nível salarial, ao desenvolvimento de sindicatos e assim por diante, todos ajudando a baixar a taxa de lucros e a afastar a verdadeira razão para o desenvolvimento. (...). No pólo oposto, o do subdesenvolvimento, a falta de capital ou o seu constante excesso leva a altas taxas de desemprego, baixos salários e reduzidos níveis de organização dos trabalhadores. Desse modo o subdesenvolvimento de áreas específicas eventualmente conduz precisamente àquelas condições que faz uma área altamente lucrativa e susceptível de rápido desenvolvimento. O subdesenvolvimento ocorre em todas as escalas espaciais e o capital tenta se movimentar geograficamente de tal maneira que continuamente explora oportunidades de desenvolvimento, sem sofrer os custos econômicos do subdesenvolvimento (SMITH, 1998, p. 35).

 

 

Como coloca o próprio autor tal fenômeno ocorre em diferentes escalas espaciais, ou seja, escalas geográficas. Dessa forma desde escalas como a cidade até regiões globais tal fenômeno estaria presente, sendo mediado em cada escala por elementos e condições específicas, como poderíamos citar as fronteiras dos Estados Nacionais (um nível de escala geográfica) que ofereceria resistências à mobilidade do capital e, sobretudo da mão de obra.

Posto a tese do desenvolvimento desigual e combinado, vamos ater-nos um pouco sobre as escalas espaciais ou geográficas em oposição às escalas cartográficas. Estas últimas embora amplamente utilizadas pelos geógrafos, nem sempre resultam em respostas adequadas ao estudo dos fenômenos geográficos.

Smith (2000) abordando a temática da escala geográfica coloca que esta é o primeiro passo através do qual ocorre a diferenciação espacial. Prosseguindo suas reflexões coloca que a construção e compreensão da escala geográfica podem proporcionar uma linguagem melhor da diferenciação espacial. Outro ponto ainda destacado é que a escala geográfica é construída a partir dos processos sociais, sendo produzida mediante da própria sociedade, que em última instância é produzida por estruturas geográficas de interação social. A escala geográfica, em sua produção, seria o local de conflitos e lutas políticas potencialmente intensas.

Assim a escala geográfica deixa de lado a escala cartográfica, uma relação entre dimensões de determinados objetos ou fenômenos da realidade e sua representação em cartas e mapas, passando a valorizar a dinâmica geográfica, que é na essência uma dinâmica social.

Dessa forma são propostas por Smith (2000), de maneira referencial, exploratória e aberta, as seguintes escalas geográficas sem uma hierarquização rígida: O corpo, a casa, a comunidade, o espaço urbano, a região, a nação e as fronteiras globais.

Antes de analisarmos um pouco cada categoria de escalas propostas, faz-se importante observar que é no salto de escalas que se estaria à força dos movimentos sociais, pois se saltando escalas estar-se-ia ganhando poder através da transposição de fronteiras escalares. Um exemplo de tal fato seria a mulher emancipada da cultura machista, ela não se deteria apenas na escala do corpo e sua posição na casa, deixa de ser submissa e passa a ser de interação e co-gestão da escala casa.

O corpo como identidade da espacialidade pessoal, seria uma escala inicial e socialmente construída. Essa escala marca a fronteira do lugar do eu com o lugar do outro, observando aí tanto uma dimensão física quanto social. O gênero aparece nessa escala com destaque, pois o sexo de um ser implica, em expectativas de comportamento dentro da casa e da comunidade por exemplo.

Transpor a escala do corpo pode significar avançar para além dessa escala e ganhar poder, como ocorreu com o movimento feminista das últimas décadas do século passado.

A casa como lugar da família representa uma construção, uma estrutura, permanente ou temporária. A reprodução pessoal ocorre essencialmente aí e o cotidiano (comer, dormir , fazer sexo, criar filhos, etc.) está baseados no lar e em torno deste. Identifica-se a casa como o reino feminino, mas pode ser visto de forma mais elaborada como uma espacialidade específica onde a forma , o tamanho, a funcionalidade interna, a relação (localização) no espaço urbano pode identificar suas possibilidades de conexão e transposição escalar.

Passando pela escala comunidade destaca-se o lugar da reprodução social, contudo a dinâmica presente na comunidade torna seus limites, fronteiras, difusas. Ela incorpora várias instituições sociais e culturais como : igrejas, colégios, a turma de rua, etc, todas intimamente inter- relacionadas entre si e com o Estado local. Inclui também o local de trabalho, de grande significação na dinâmica social que constrói a própria escala. Comunidades operárias são o exemplo dessa significação. A comunidade é uma escala rica de interações e possibilidades de transposição de fronteiras para outras escalas. Como exemplo de tal fato podemos citar comunidades de classe alta que transpõem escalas mantendo relações com áreas não contíguas, como outras cidades e países, ao contrário de comunidades de classe de baixa renda onde a transposição de escalas e extremamente reduzida.

A escala do espaço urbano representa o local do mercado de trabalho. Congrega os cidadãos e os grupos sociais que vão dar o seu dinamismo interno e propiciar suas conexões externas, como os capitais voltados para a produção, distribuição e consumo de bens e serviços, além de toda sorte de atividade de administração social.

O urbano é diferenciado internamente por uma diversidade de atividades e funções, que aí são espacializadas e dinamizadas socialmente. Um mosaico de apropriação e usos desse espaço atesta essa assertiva. O espaço urbano, pela aglomeração de pessoas e entidades, tem uma dinâmica muito elevada no sentido de saltar, transpor, sua atuação para outras escalas. Como exemplo disso podemos citar a cidade de Porto Alegre que se transformou na capital do Fórum Social Mundial, trazendo para si discussões e poder de outras escalas como a dos estados nacionais e fronteiras globais.

A região liga-se à economia nacional e mesmo global. Sua identidade e espacialidade são estabelecidas em torno de tipos de trabalhos ali presentes. Representa o espaço das conexões entre as cidades, as áreas rurais, etc. que a compõem, sendo o peso das atividades ali assentadas e desenvolvidas relevantes no seu estabelecimento como escala geográfica e de análise. A escala regional possui extrema plasticidade espacial, devido à complexidade de fatores e condições socioeconômicas que a definem. As regiões são, muitas vezes, carregadas de temporalidades distintas, várias das quais exercem função aglutinadora sob o ponto de vista sócio-cultural.

A nação como escala geográfica representa uma construção política, o lugar do poder do Estado. Suas fronteiras são bem definidas e suas conexões extremamente intensas e variadas, tanto como a escala das fronteiras regionais como com as demais escalas. É a escala do sistema capitalista por excelência, o que em outros tempos históricos não ocorria, vide as Cidades-Estados gregas. Atualmente, com o avanço das forças do mercado mundial o estado nacional é uma escala vulnerável a partir da necessidade de mercados "sem fronteiras". Contudo é nessa escala que se dá o controle de outras escalas como a urbana, a região, a comunidade e o próprio corpo. Para isso estão presentes.

Nessa escala tem-se observado, contudo uma possibilidade de resistência ao rompimento das fronteiras do estado nacional, fenômeno de extrema riqueza, considerando-se os desdobramentos políticos e sociais que esse movimento pode ensejar.

A circulação do capital tem levado a construção da escala das fronteiras globais dentro do modo de produção capitalista. "A dinâmica interna do desenvolvimento desigual, estruturado de acordo com as relações sociais e econômicas específicas da sociedade capitalista molda a escala global. [...] da mesma forma, o global é dividido não apenas segundo as divisões políticas dos estados nacionais, mas também conforme os níveis de desenvolvimento - subdesenvolvimento experimentados e alçados por esses estados no mercado mundial" (Smith, 2000). Essa escala uniu distintas ilhas de poder nacional numa empreitada ligada às burguesias nacionais, em favor de um projeto global de dominação de classe. Contudo lutas têm surgido principalmente de base nacional e regional antiglobalização, digam-se fronteiras globais.

Buscando relacionar os fundamentos da tese do desenvolvimento desigual e combinado e das escalas geográficas propostas com a pesquisa em desenvolvimento, julgamos encontrar conexões relevantes.

Situando a temática de nosso trabalho, "Políticas Nacionais e Estaduais de Gestão de Recursos Hídricos", salta aos olhos a situação de nosso país no contexto internacional, país economicamente emergente com suas especificidades, e as várias escalas a serem abordadas no estudo das políticas de gestão de recursos hídricos.

A especificidade do crescimento econômico do Brasil parece encontrar dentro da visão do desenvolvimento desigual e combinado fortes conexões.

O Brasil ao mesmo tempo em que pode ser considerado, no seu conjunto, um país emergente, observa-se concentração de capitais internacionais em setores econômicos específicos e localizações distintas levando-nos a crer que aí se realiza a dinâmica dos capitais em busca das melhores taxas de lucro. Isso, contudo, não nos fornece segurança quanto à estabilidade desses capitais ficarem onde estão, pois basta haver uma aplicação mais lucrativa e lá se vão esses capitais. O movimento frenético das bolsas de valores, levando em alguns casos paises à falência, colabora com a tese do desenvolvimento desigual e combinado.

E se um projeto de pesquisa vai abordar questões que envolvem apropriação e uso de recursos naturais, terra e água, certamente a dinâmica do desenvolvimento desigual interferirá na apropriação e uso desses recursos, ora objeto de nossas atenções.

No tocante às escalas geográficas, desde um primeiro momento o entendimento da gestão dos recursos hídricos como um ato de gestão territorial, leva a crer que não se faz gestão de recursos hídricos isoladamente da gestão territorial, e isso levou-nos a pensar em abrir a discussão, na pesquisa, para a dinâmica social com toda a sua abrangência e contradições existentes.

Encarando a gestão dos recursos hídricos sobre esse enfoque e não meramente geomorfológico-ambiental ou dos elementos físicos da natureza, a proposição de se trabalhar com escalas geográficas para o estudo do fenômeno gestão de recursos hídricos vem de encontro a uma posição preliminarmente tomada de não considerar unidades espaciais geomorfológicas (escalas geomorfológicas - bacia hidrográfica), como centro único da problemática dos recursos hídricos.

Visualizando a necessidade de articular essa unidade geomorfológica (bacia hidrográfica), dentro de escalas compatíveis com uma melhor análise da gestão dos recursos hídricos, a tese apresentada por Neil Smith (1988 e 2000) nos encorajou a buscar uma articulação de escalas geográficas e não cartográficas ou geomorfológicas, visando absorver a dinâmica social que em síntese vai comandar a apropriação e uso do solo e dos recursos hídricos.

Nesse sentido, entender a importância da unidade bacia hidrográfica no estudo dos recursos hídricos, não pode e não deve reconhecer aí uma escala geográfica, mas sim uma unidade espacial que se insere e onde estão inseridas as verdadeiras escalas geográficas, ou seja, a comunidade, o espaço urbano, a região e até mesmo a nação.

O reconhecimento, nas pesquisas e trabalhos geográficos, da multiplicidade escalar e a inter-relação entre as escalas geográficas de análise dos fenômenos tornam-se uma questão chave. A negligência com as escalas geográficas nas pesquisas tem conduzido muitos trabalhos, não obstante a riqueza de dados e informações, a uma análise aparente dos fenômenos estudados não permitindo o alcance da essência dos mesmos. Com isso existe uma riqueza nos trabalhos geográficos onde o reconhecimento da multiplicidade escalar e da articulação entre essas escalas esteja presente.

 

Conclusões

A compreensão da existência das escalas geográficas e o perfeito entendimento da diferenciação dessas escalas das escalas cartográficas colocam para o pesquisador a possibilidade de estudar o fenômeno através de uma visão mais abrangente que possibilita, através das escalas geográficas, contextualizá-lo dentro de uma dinâmica socioespacial mais abrangente e totalizadora.

Assim evitam-se explicações parciais dos fenômenos geográficos, que comprometem as pesquisas, e alçam tais pesquisas a um novo patamar, muito maior, de significância científica e social.

Existe algo mais a ser explorado, mas julgamos os argumentos apresentados bem ilustrativos da questão.

Enfim escalas geográficas respondem a análises geográficas, e é nessa direção que devemos caminhar.

 

Referências

 

MARX, Karl. O Capital em Geral (A mercadoria). In: O Capital - Crítica da Economia Política. São Paulo: Nova Cultural, 1988, v.1. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe.

 

ORLANDO, P. H. K. Produção do Espaço e Gestão Hídrica na Bacia do Rio Paraibuna (MG-RJ): uma análise crítica. 2006. 279 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente - SP, 2006.

 

SMITH, Neil. Desenvolvimento Desigual. Rio de Janeiro: Bertrand-Brasil, 1988.

 

SMITH, Neil. Contornos de uma Política Espacializada: Veículos dos Sem-Teto e Produção de Escalas Geográficas. In: ARANTES, Antonio (Org.). O Espaço da Diferença. Campinas: Papirus, 2000. p. 133-157.