UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

 

 

 

 

 

GESTALT-TERAPIA E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA:

Relação e Cura

 

 

 

 

 

 

 

RECIFE

2014

 

OTAVIANO BEZERRA SANTANA FILHO

 

 

 

 

 

GESTALT-TERAPIA E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA:

Relação e Cura

Dissertação apresentado por Otaviano Bezerra Santana Filho ao programa de Pós-Graduação em Psicologia (Mestrado em Psicologia Clínica) da Universidade Católica de Pernambuco, sob orientação do profº Drº. Marcus Túlio Caldas.

 

 

 

RECIFE

2014

                                        

AGRADECIMENTO

 

Aos meus amigos e familiares, a Rúbia pelo grande apoio e incentivo; as sobrinhas Janaina Bezerra e Valéria Bezerra, aos meus professores e examinadores. Agradeço de forma particular ao meu orientador Dr. Marcus Túlio Caldas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No fundo da prática científica existe um discurso que diz: “nem tudo é verdade, mas em todo lugar e a todo o momento existe uma verdade talvez adormecida, mas que, no entanto, está à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós, cabe a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois, de qualquer maneira, ela está presente aqui e em todo lugar”                                                                                                                                                         Foucault Miguel (1992)


 

RESUMO

 

O presente trabalho teve por objetivo pesquisar sobre o fenômeno religioso e a fé como dimensão da alteridade, assim como pesquisar possíveis relações com a Gestalt-terapia do diálogo e cura. A pesquisa foi de natureza bibliográfica numa perspectiva fenomenológica e existencial que teve como fundamento as obras de Martin Buber da Filosofia do Diálogo e seu existencialismo religioso da eterna relação entre “Eu-Tu, o Eu-Isso e o Tu eterno”. Somado a este, também se problematizou a visão de Rudolf Otto do numinoso e outros autores como Mircea Eliade, teóricos da Gestalt-terapia, Heidegger, Viktor Frankl, entre outros. Nossos resultados e discussões foram apresentados a partir de três dimensões. A primeira foi focalizar o fenômeno religioso em íntima relação com a noção da experiência de alteridade. O segundo passo consistiu em pesquisar sobre uma possível aproximação entre o pensamento da Gestalt-terapia e a experiência religiosa. Por fim, se pretendeu compreender a Gestalt-terapia e a espiritualidade como espaço de encontro do diálogo e cura.

 

PALAVRAS-CHAVE: Gestalt-terapia. Alteridade. Religião.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ABSTRACT

 

The present study aimed to research the religious phenomenon and faith as a dimension of otherness , as well as investigate possible relations with Gestalt therapy dialogue and healing. The research was a phenomenological nature of literature and existential perspective that was founded the works of Martin Buber 's Philosophy of Dialogue and its religious existentialism of the eternal relationship between " I-Thou , I - It and the eternal Thou ." Added to this , also problematized the vision of Rudolf Otto 's numinous and other authors such as Mircea Eliade , Gestalt therapy theorists , Heidegger , Viktor Frankl , among others . Our results and discussions were presented from three dimensions . The first was to focus on the religious phenomenon intimately related to the notion of the experience of otherness . The second step was to search for a possible rapprochement between the thought of Gestalt Therapy and religious experience . Finally , we sought to understand Gestalt Therapy and Spirituality as a space for dialogue and healing.

 

KEYWORDS: Gestalt therapy. Otherness. Religion.

SUMÁRIO

INTRODUÇAO…………………………………………………………………………….... 8

1 A RELIGIOSIDADE ENQUANTO EXPERIÊNCIA DE ALTERIDADE................... 15

1.1  Sagrado em Rudolf Otto.................................................................................................... 17

1.2  A Imagem do Divino enquanto alteridade no Antigo Testamento.................................... 25

1.3  A Imagem do Divino enquanto alteridade no Novo Testamento....................................... 32

1.4  Experiência Religiosa de alteridade enquanto relação dialógica: Mito Bíblico da

hospitalidade como condição pré-ontológica do ser como abertura de encontro e     relação................................................................................................................................ 35

1.5  O Mito de Adão na perspectiva da alteridade como condição de uma relação genuína:

       uma compreensão pré-ontológica da relação Eu-Isso, Eu-Tu e Eu-Tu terno................... 40

1.6  Eu-Isso, Eu-Tu e Eu-Tu eterno enquanto relação de alteridades....................................... 43

 

2        GESTALTTERAPIA E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA: POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES.......................................................................................................... 47

2.1  Os Primeiros “Terapeutas” e sua Escuta............................................................................ 49

2.2  Gestalt e Religião: buscando proximidades....................................................................... 55

2.3  Diferenciando: crença ingênua e crença genuína............................................................... 66

 

3        GESTALTTERAPIA E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ENQUANTO RELAÇÃO E CURA................................................................................................................................ 86

3.1  Gestaltterapia, experiência religiosa e Fronteira de Contato: possibilitando cura............ 94

3.2  Fronteira de Contato na experiência religiosa.................................................................... 96

3.3  Fronteira de Contato no campo religioso - diferenciando campos: polaridades versus dicotomias na experiência com o Divino........................................................................... 99

3.4  Contato e cura no Novo Testamento................................................................................ 104

3.5  “Fantasia” e “alucinação” religiosa genuína versus patológica........................................108

3.6  Alucinação religiosa genuína............................................................................................113

3.7  Alucinações no Antigo Testamento:.................................................................................114

3.8  Experiência religiosa e Neurose: distúrbios na fronteira de contato................................ 120

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 125

REFERÊNCIAS................................................................................................................... 128

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

                                             

A indiferença quanto à relação e influência das crenças religiosas e o bem-estar do corpo e da mente parece não mais fazer parte do contexto social na atualidade. São muitas as pesquisas que constatam esta realidade. Muitos trabalhos acadêmicos vêm sendo desenvolvidos mostrando relações entre crença e saúde.

A religiosidade encontra-se presente não só nas instituições religiosas, mas em todos os outros espaços da vida social como as organizações e escolas. Presenciamos pessoas praticarem individualmente sua crença. Portanto, se pode observar um contexto favorável para se repensar o lugar da relação entre a religião e a psicoterapia na vida das pessoas e em seu bem estar geral. Mircea Eliade (2008) fala desse fenômeno, da crença como sendo algo do humano, faz parte da cultura e da história. Neste sentido não podemos mais ignorá-lo. Diz ele: “[...] Sendo a religião uma coisa humana, é também, de fato, uma coisa social, linguística e econômica” (p. 1).                                                                                               

Diante deste contexto, o objetivo desta pesquisa consiste em perceber a experiência religiosa enquanto um sentimento de alteridade. Para isso, procuramos entender como algumas das modalidades dessa experiência possibilitam essa relação com o outro. Utilizaremos a expressão “modalidade” da experiência religiosa nos referindo as várias práticas e formas que as instituições, as denominações, os grupos e pessoas vivem, expressam tanto em espaços públicos como no espaço privado a sua crença, sua fé. Modalidade se refere também ao corpo de doutrinas, ao código de orientações de cada denominação religiosa (igrejas). Portanto, para melhor compreensão podemos usar como analogia os jogos Olímpicos: são várias as modalidades esportivas, cada uma tem sua regra, orientação, objetivo e fim a ser atingido. Assim também para a religião, há as várias denominações, vários credos que buscam atingir um objetivo e um fim. 

Para essa análise, buscamos dialogar com a literatura existente sobre a temática, assim como compreender a relação entre a Gestalt-terapia e a religião, através da nossa própria vivência religiosa e prática na clínica psicológica. Dessa forma se faz necessário questionar: a experiência religiosa enquanto portadora de sentimento de alteridade pode interferir na saúde? Que lugar a experiência religiosa pode ocupar para contribuir e não oferecer riscos e dificuldades? Como manter o equilíbrio e o diálogo entre a experiência religiosa e a psicoterapia para que se possa favorecer um melhor acolhimento daqueles que procuram ajuda? Usaremos a forma experiência religiosa para nos referirmos a relação com o Sagrado, o Divino.

Para o termo Religião, vamos seguir a definição que Haroldo G. Koenig (2012) apresenta: “Religião como um sistema de crenças e práticas observado por uma comunidade, apoiada por rituais que reconhecem, idolatram, comunicam-se com ou aproximam-se do Sagrado, do Divino, de Deus”. (p. 11).

Para o termo religiosidade utilizaremos a definição trazida por Paulo Dalgalarrondo (2008) dos autores Larson, Swyers e McCullough (1998) na qual:

A religiosidade incluiria as crenças pessoais, tais como crença em um Deus ou poder superior, assim como crenças e práticas institucionais, como pertença a denominações religiosas, a frequência a cultos e o compromisso com um sistema doutrinário de uma igreja ou de uma religião organizada. (2008, p. 24).

A fim de conseguirmos respostas satisfatórias para as nossas indagações, situamos a espiritualidade religiosa e a psicologia como fio norteador das nossas reflexões. Para isso, procuramos problematizar como a experiência religiosiosa enquanto um forte sentimento de alteridade interfere ou tem relação com a saúde. O foco da pesquisa consiste em refletir sobre uma possível integração entre o psicológico e o espiritual como ponto favorável à saúde, partindo-se do princípio que tanto a clínica psicoterápica, como a religião são a princípio espaços facilitadores desse acontecer humano.

Apesar de a psicologia e da religião terem métodos e fins divergentes, quanto à cura e angústias humanas, as mesmas não são antagônicas ou inimigas. Muito pelo contrário, a semelhança existe, na medida em que ambas procuram dar sentido e unidade ao sujeito. No entanto, o fato de reconhecermos as semelhanças entre ambas, não se nega à particularidade de cada uma. É assim no dizer de Viktor E. Frankl (1992): “A religião dá ao homem mais do que a psicoterapia, mas também dele exige mais. Deve ser evitado com todo rigor qualquer contaminação entre estes dois campos, que podem até coincidir quanto a seus efeitos, mas são diferentes quanto à sua intencionalidade” (p. 57).

O seu pensamento pode nos trazer grande contribuição para a prática clínica, ajudando a quebrar os preconceitos entre psicologia e religião; entre o terapeuta e o religioso, pois os dois podem ser muito beneficiados. Ainda para o mesmo autor: “O que nós, psiquiatras, podemos e devemos fazer é a continuidade do diálogo entre religião e psiquiatria, no sentido de uma tolerância recíproca tão indispensável numa era de pluralismo” (p. 89). Mesmo com seus fins específicos elas não são antagônicas: a busca da salvação pode ser terapêutica, ela dá unidade de sentido.

Assim, pode-se compreender que do contrário como foi visto em muitos momentos da história em que de ambas as partes aconteceram incompreensões e acusações tanto à psicologia que negava a religião a tratando como pura alienação ou neurose, bem como a religião que viu a psicologia como perigosa para a fé. Assim, elas podem muito contribuir para a saúde mental, para um sujeito integrado, e não um sujeito fragmentado.

Portanto, ao propormos uma reflexão que englobe a psicoterapia e a experiência religiosa, não pretendemos negar o campo específico de cada uma, mas esclarecer que elas, por terem muitos aspectos em comum, podem contribuir de forma positiva na compreensão do homem em sua plenitude.  A psicologia pode ser uma grande aliada da religião, já que a mesma busca encontrar unidade de sentido dos sujeitos.

Essa reflexão teve como fundamento o pensamento de Martin Buber (2001) no seu existencialismo religioso, do eterno diálogo entre “Eu-Tu e o Eu-Isso”. Em sua antropologia filosófica o homem é ser de relação; esta é sua condição ontológica. Para o autor, a relação com os entes pode acontecer de duas formas: Eu-Tu e o Eu-Isso. Aqui não há uma condição valorativa. A negação de uma das duas pode ser a não realização do ser do homem; dele viver sua plenitude. Dentro dessa linha de pensamento, o ser do homem é relação; esta lhe é constitutiva; e não tem como ser homem sem estar em contato, no diálogo, pois o mesmo só pode se reconhecer no encontro e na relação. O Eu será sempre fruto da relação – de um diálogo Eu-Isso e Eu-Tu; não há um eu si. “O Eu se realiza na relação com o Tu; é tornando Eu que digo Tu. Toda vida atual é encontro (p. 51).          

Em Rudolf Otto (2007), teólogo alemão, nascido em 25 de setembro de 1869; que publicou sua grande obra O Sagrado em 1917 a partir de imagens bíblicas apresentando o Divino como o “Totalmente Outro” em sua alteridade. No entanto, sua forma de ver o Divino como este “Totalmente Outro”, em nossa percepção não possibilita um diálogo, mas do contrário, inviabiliza quando esta dimensão de alteridade, de “Totalmente Outro” ganha certos contornos; isto é, uma ideia de “Outro” em uma alteridade absoluta e não relativa. Portanto, entendemos que certas formas modalidades da experiência religiosa criaram uma compreensão que não ajudam as pessoas a terem uma boa relação com o mundo e com o Divino. Que certas imagens e práticas do Sagrado em nada facilitam esse encontro permitindo que a alteridade favoreça o diálogo e a relação.                                               

Por outro lado, entendemos que a religião pode possibilitar uma imagem deste “Totalmente Outro”, do Divino, que permite fazermos, construirmos encontros dialógicos entre alteridades. Assim podemos encontrar em Martin Buber (2001) esta compreensão do Divino, que mesmo sendo por ele considerado o “totalmente outro”, quando nos diz: “Sem dúvida Deus é “totalmente outro”. Ele é, porém, o totalmente mesmo, o totalmente presente. Sem dúvida, Ele é “mysterium tremendum” cuja aparição nos subjuga, mas Ele é também o mistério da evidência que me é mais próximo do que meu próprio Eu”. (p. 102).

Ele não nega a outra alteridade; ou seja, o Totalmente Outro, mas o Divino se deixa encontrar também nas relações humanas, no cotidiano. Fizemos assim uma discusão, um “confronto” destas duas visões do Divino; destes dois pensadores Rudolf Otto (2007) e Buber (2001) e sua forma de compreensão do Divino. O intuito foi podermos dialogar e entender que a experiência religiosa possibilita ao crente tornar-se distinto, singular; isto não significando o mesmo que separar-se, negar o outro, o mundo, mas se colocar como é; numa atitude de que apenas somos diferenciados. Portanto, alteridade é estar diante do outro e com outro, sendo si mesmo sem negar o outro, a alteridade que está diante de mim.

Compreender também que alteridade não se trata de questão valorativa, que me coloco numa situação de superioridade, de maior dignidade ou de merecimento: sou diferente de você; não no sentido de um valor moral. Este é um perigo para aqueles que têm uma crença; eles podem experienciar este sentimento de se diferenciar no sentido valorativo; se colocando frente ao outro com uma atitude em que: o diferenciar-se como pessoa, em sua singularidade tornou-se uma distinção moral; em julgamento de valor: os justos e os injustos; os certos e os errados, os bons e os maus; os santos e os pecadores.

Para nossa reflexão quando falamos que o Sagrado, o Divino é nossa alteridade, Ele é o outro, distinto de nós todos; o “Totalmente Outro”, que somos diferentes e não negação, distanciamento. Somos singulares. Esta tem sido, ao nosso ver, uma das grandes dificuldades diante da compreensão da relação entre Deus e os homens; tanto da parte das ciências como da parte dos religiosos e pessoas crentes. Logo, não podermos mais negar a importância da dimensão espiritual religiosa para as pessoas e de forma geral para o atual contexto social.

A nossa reflexão em torno da temática apresentada pretende ampliar as discussões da relação da experiência religiosa com a clínica psicológica da Gestaltterapia como diálogo e cura; e a utilidade da mesma na melhoria da assistência no campo da psicoterapia: vivemos numa sociedade em que se percebe uma crescente perda de sentido, indiferenças e negação do outro, do diferente; sociedade do isolamento, da falta de contato e relação que tem levado ao adoecimento. Por isso, muitos têm buscado na dimensão do espiritual um caminho de alternativa. Pesquisas revelam os efeitos positivos das experiências religiosas para a saúde geral e mental.

Harold G. Koenig (2012), nos fala da importância de comportamentos social e altruísta enquanto benefícios para a saúde mental e física através da pesquisa realizada por Hunter e Linn:

Comportamentos pró-sociais e altruístas parecem gerar benefícios para a saúde mental e física. Por exemplo, Hunter e Linn constataram que voluntários sentiam uma satisfação significativamente maior com a vida, um desejo mais intenso de viver e menos sintomas de depressão, ansiedade e somatização em comparação a não voluntários [...]. Assim, o altruísmo é um comportamento que parece ter benefícios psicológicos em termos de aumento do bem-estar, diminuição da depressão e melhora do suporte social. Pode-se esperar, então, que tais benefícios á saúde mental e social tenham conseqüências psicológicas. (p. 49-51).

 Outra pesquisa apresentada pelo mesmo autor Harold G. Koenig (2012) mostra o quanto a dimensão de contatos entre pessoas religiosas teve uma maior influência para as pessoas sentirem maior segurança na amizade e enquanto isso foi fator diferencial para o bem estar das mesmas:

Em uma pesquisa com 4.522 pessoas de uma amostra aleatória do norte do Estado do Alabama, entre todas as variáveis medidas, o contato interpessoal informal foi o mais forte indicador de satisfação com a vida. Porém, isso só era verdadeiro se as amizades fossem feitas na igreja. Além disso, para afro-americanos idosos nesse estudo, maior satisfação com a vida foi quase completamente devida ao maior contato com amigos da igreja. (p. 57).

Diante do exposto, a ciência da psicologia não pode ficar a margem desse fenômeno; ela tem algo a nos dizer, a fazer. A demanda do fenômeno religioso é grande, porém, parece não atender aos fins a que se propõe: ajudar as pessoas a viverem com sentido, poderem expressar e viver sua dimensão transcendental, o encontro com as pessoas, com o grande Outro. Esta temática da integração da Gestaltterapia e da experiência religiosa nos apresenta a contribuição que a psicoterapia é capaz também de oferecer para que as pessoas possam viver de forma mais completa a dimensão espiritual, transcendental da qual cada um é portador, que lhe é constitutivo, ou seja, viver o transcendental de forma “genuína”.

O pensamento de Martin Buber (2001) da eterna relação do Eu-Tu e Eu-Isso é provocativo no sentido de nos desafiar a quebrar as barreiras da indiferença, dos preconceitos e do nosso isolamento. Pretendemos com essa reflexão mostrar que é possível a contribuição da religião para saúde, desde que esta seja baseada numa compreensão do Sagrado como relação, dimensão que acontece na existência; e que não há dicotomia entre o mundo enquanto realidade objetiva e o Sagrado; entre a humanidade e Deus no pensamento de Buber (2001). Assim, cada uma, a psicologia e a espiritualidade religiosa, que apesar de terem objetivos e fins diferentes; indiretamente ambas favorecem o “dar sentido e unidade ao sujeito”, favorecem ou propiciam o encontro, a relação e o diálogo entre alteridades.

Buscou-se uma relação com a Gestaltterapia por essa ver a pessoa como um todo, ou seja, uma totalidade que procura integrar as partes. Segundo Serge Ginger (2007), a “Gestalt é um termo alemão [...] Esta palavra é às vezes traduzida por “forma ”(p. 15). Para o autor, “A Gestalt desenvolve uma perspectiva unificante do ser humano, integrando ao mesmo tempo suas dimensões sensoriais, afetivas, intelectuais, sociais e espirituais – permitindo uma experiência global”. (p. 22). Dentro desta concepção, a Gestalt concebe o humano dentro do conjunto, na sua totalidade: tudo incluído, e não excluir partes; ou seja, o todo enquanto união das partes. A Gestaltterapia é assim uma forma de psicoterapia que busca integrar as partes; isto é, não excluir ou rejeitar as mesmas.

Gary M. Yontef (1998) diz que:

A psicoterapia bem-sucedida consegue integração. Integração exige identificação com todas as funções vitais – não apenas com algumas ideias, emoções e ações do paciente. Qualquer rejeição das próprias ideias, ações ou emoções resultam em alienação. Recuperar a aceitação permite a pessoa ser inteira (p. 39).

Fritz Perls (1988) conceituando a Gestalt nos diz: “[...] Gestalt é uma palavra alemã para a qual não há tradução equivalente em outra língua. Uma Gestalt é uma forma, uma configuração, o modo particular de organização das partes individuais que entram em sua composição. A premissa básica da psicologia da Gesalt é que a natureza humana é organizada em partes ou todos...” (p. 19).

Para uma melhor distribuição do tema apresentado, a pesquisa foi dividida em três Capítulos. No primeiro, intitulado “Religiosidade enquanto experiência de alteridade” apresentamos o fenômeno religioso a partir da noção de experiência de alteridade, isto é, o Divino é o “Totalmente Outro”, distinto, no entanto, Ele não é distante, totalmente estranho em que anula o outro, o humano. Buscamos apresentar um “confronto” entre um Divino que é o “Totalmente Outro” de Rudolf Otto (2007) na qual a relação entre Deus, o numinoso, é o totalmente estranho do humano; o homem é: “pó e cinza”; por outro lado Martin Buber (2001) que reconhece ser Deus o “totalmente outro”, mas que não anula o homem.

No segundo capítulo, refletimos sobre a possível aproximação entre o pensamento da Gestaltterapia em que as partes, a diferença, a alteridade são partes do Todo e a experiência religiosa que não concebe as diferenças como dicotomias, mas polaridades. Mostrou-se ser possível um diálogo e um acolhimento do espiritual uma vez que ambas lidam com a totalidade, com o todo do humano, buscando integrar as partes. No terceiro e último capítulo, intitulado “Gestaltterapia e experiência religiosa enquanto relação e cura”, destacamos a Gestaltterapia e a espiritualidade religiosa como espaços de encontro da relação e cura, mostrando que uma vez que ocorra o contato e a relação, é possível a saúde.

Para desenvolver o trabalho nos utilizamos do método qualitativo, ou seja, procuramos entender o fenômeno segundo a perspectiva dos participantes da situação, através da nossa vivência religiosa e prática clínica. A pesquisa foi de natureza bibliográfica numa dimensão fenomenológica existencial que teve como fundamento as obras de Martin Buber da Filosofia do Diálogo e seu existencialismo religioso da eterna relação entre “Eu-Tu, o Eu-Isso e o Tu eterno”. Somando a este, também buscamos problematizar a visão de outros autores como Rudolf Otto (2007), Mircea Eliade (2010), teóricos da Gestaltterapia, M. Heidegger, Viktor Frankl (1992), entre outros.

Nesse sentido é oportuno perceber a experiência religiosa enquanto dimensão da alteridade. Para isso é relevante compreender a sua relação com a perspectiva da Gestaltterapia da relação e cura.

CAPÍTULO I

A RELIGIOSIDADE ENQUANTO EXPERIÊNCIA DE ALTERIDADE

O capítulo que se segue, propomos a discorrer sobre a experiência religiosa ancorada numa relação de alteridade[1]. Pretendemos apresentar uma compreensão de uma experiência religiosa de alteridade que possibilite estabelecermos uma relação dialógica que acontece no encontro das diferenças, ou seja, dar-se entre alteridades. Dessa forma queremos trazer a nossa compreensão, o que entendemos como sendo este “Outro”, o Divino. Não se trata para nossa busca de um “Outro” que nos é estranho e distante, afastado. Ele é aquele singular; meu diferente. Nesse sentido a imagem do Divino, do sagrado como sendo este “Outro”, tem seus fundamentos em imagens bíblicas.

Alguns teóricos importantes entre eles Rudolf Otto (2007), construíram suas teorias a partir dessas imagens bíblicas apresentando o Divino em sua alteridade. No entanto, sua forma de ver o Divino como este “Totalmente Outro”, em nossa percepção não possibilita um diálogo, mas do contrário, inviabiliza quando esta dimensão de alteridade, de “Totalmente outro” ganha certos contornos; isto é, uma ideia de “Outro” em uma alteridade absoluta. Portanto, entendemos que certas formas de compreensão criaram modalidades que não ajudam as pessoas a terem uma boa relação com o mundo e com o divino. Que certas imagens do sagrado em nada facilitam esse encontro permitindo que a alteridade favoreça o diálogo e a relação.                                                                                                                                              Por outro lado, entendendo que a religião pode possibilitar uma imagem deste “Totalmente Outro”, do Divino que permite fazermos, construirmos encontros dialógicos entre alteridades. Assim podemos encontrar em Martin Buber (2001) esta compreensão do Divino, que mesmo sendo por ele considerado o “Totalmente outro”, quando nos diz: “Sem dúvida Deus é ‘totalmente outro’. Ele é, porém o totalmente mesmo, o totalmente presente. Sem dúvida, ele é ‘mysterium tremendum’ cuja aparição nos subjuga, mas Ele é também o mistério da evidência que me é mais próximo do que meu próprio Eu”. (p. 102). Ele não nega a outra alteridade; ou seja, o Totalmente outro, mas o Divino se deixa encontrar também nas relações humanas, no cotidiano. Faremos assim um “confronto”, entre estes dois pensadores Rudolf Otto (2007) e Buber (2001) e sua forma de compreensão do Divino; para assim podermos dialogar e entender que religião possibilita ao crente tornar-se distinto, singular; isto não significando o mesmo que separar-se, negar o outro, o mundo, mas se colocar como é; numa atitude de que apenas somos diferenciados. Portanto, alteridade é estar diante do outro e com outro, sendo si mesmo sem negar o outro, a alteridade que está diante de mim.

Para nossa reflexão, quando falamos que o sagrado, o Divino, é nossa alteridade, Ele é o outro, distinto de nós todos; o “Totalmente outro”, que somos diferentes e não negação, distanciamento. Somos singulares. Esta tem sido ao nosso ver uma das grandes dificuldades diante da compreensão da relação entre Deus e os homens; tanto da parte das ciências como da parte dos religiosos e pessoas crentes. Lembramos mais uma vez que não se trata de questão valorativa tipo: Deus é tudo o homem é nada, Deus é toda perfeição o homem toda imperfeição; Deus é toda bondade e o homem toda maldade.

Não se quer negar que realmente se pode dar todos esses atributos a Deus, ou seja, que o mesmo seja toda bondade, paz e plena perfeição; que corresponda a todos estes conceitos. O que não se pode é dizer que o homem é nada, é só imperfeição; maldade. Seria até uma contradição fazer essa ralação, afinal se somos criação de Deus, Ele teria criado algo imperfeito? Logo quem é perfeito não poderia criar algo imperfeito; ou então não somos criação Dele. (O homem não é um Nada, mas é constitutivamente uma composição de mais e menos chamado a perfeição em Deus!).                       

Por outro lado, não seria possível estabelecer uma relação dialógica visto que se as partes estão colocadas em uma situação tão diferenciada, em polos extremos e tão opostos. Assim queremos refletir que ao nos apropriarmos de algumas imagens do Divino como é visto no Antigo e Novo Testamento, não nos ajudam para construir esse encontro. Neste sentido buscaremos apresentar, tanto no Novo como no Antigo Testamento, uma compreensão do Divino como o numinoso, diferente da perspectiva de Rudolf Otto (2007); pois para o mesmo o Divino se manifesta como o “Totalmente Outro”; uma alteridade que não permite a relação, o diálogo; mas uma alteridade que “nega” a outra alteridade: O Divino é distanciamento do humano.   

 

 

1.1 O Sagrado em Rudolf Otto

Para Rudolf Otto (2007), o Sagrado, o Divino, Deus que ele nomeia como o numinoso, desperta um sentimento de Tremendo (Tremendum) e Fascinante (fascinans): o numinoso é Aquele que fascina, atrai, e ao mesmo tempo amedronta, causa arrepio. O mesmo define o Sagrado, ou seja, o Numinoso como tendo estes dois aspectos que lhe são atribuídos: Mysterium Tremendum e Fascinans (Fascinante). O Mysterium Tremendum é arrepiante, avassalador.

Mas o que seria esse numinoso, qual a definição que ele faz? Para Otto (2007) é qualquer objeto; seja ele real ou imaginário. O que o torna numinoso é o sentimento que Ele desperta em mim; ou seja, um sentimento numinoso:

Para tal eu cunho o termo “o numinoso” (já que do latim omem se pode formar “ominoso”, de numen, então, numinoso), referindo-me a uma categoria numinosa de interpretação e valoração bem como a um estado psíquico numinoso que sempre ocorre quando aquela é aplicada, ou seja, onde se julga tratar-se de objeto numinoso. (p. 38)

E continua Otto (2007) apresentando sua definição e nos falando de qual sentimento temos diante do numinoso:

Este é justamente o objeto numinoso. Somente quando se vivencia a presença do numen, como no caso de Abraão, ou quando se sente algo que tenha caráter numinoso, ou seja, somente pela aplicação da categoria do numinoso a um objeto real ou imaginário é que o sentimento de criatura pode surgir como reflexo na psique. (p. 42). 

Podemos dizer que em Otto (2007) o numinoso é uma experiência e sentimento do indivíduo e acontece estritamente no campo individual; que na relação com o numinoso a nossa condição de criatura será central, ou seja, acontecerá uma relação de criador e criatura. Entendemos aqui gerar uma separação, uma dicotomia; polos extremos, criando distanciamentos; e assim gerando uma relação unilateral, unidimensional, ou seja, de um lado tem um sujeito que “nada é; do outro alguém que Tudo é: “Eu nada, Tu tudo”, é assim o objeto sagrado – que pode despertar em mim o numinoso. Portanto, dispensa-se de uma certa forma uma relação de equilíbrio entre as partes. Entendemos que as relações acontecem em um campo de forças, encontros e desencontros. Entendemos assim quando o mesmo diz que é pela “aplicação da categoria do numinoso a um objeto real ou imaginário” que temos o numinoso em nós.

Neste sentido podemos indagar que o numinoso estaria limitado a uma experiência individual? Que o numinoso é do tamanho da minha experiência? A minha forma de sentir o numinoso é o critério máximo? 

Em Otto (2007), pode-se dizer que há uma separação entre o sagrado, o Divino e tudo aquilo que se pode atribuir à religião como dimensão ética, moral; ou melhor, pode-se mesmo dizer que o numinoso é aético e amoral:

Acontece que nos habituamos a usar “sagrado” num sentido totalmente derivado, que não é o original. Geralmente o entendemos como atributo absolutamente moral, como perfeitamente bom. Kant, por exemplo, chama de vontade santa a vontade impelida pelo dever e que, sem titubear, obedece à moral. Só que isso seria a moral perfeita (...). Como para nós hoje santidade sempre tem também a conotação moral, será conveniente, ao tratarmos aquele componente especial e peculiar, inventar um termo especifico para o mesmo, pelo menos para o uso provisório em nossa investigação, termo esse que então designará o sagrado descontado do seu aspecto moral e – acrescentamos logo – descontado, sobretudo, do seu aspecto racional. (p. 37-38).

Portanto, Otto (2007) procura separar, distanciar a crença, a relação ou estado o numinoso para qualquer tentativa de uma ética ou racionalização. Ele busca mostrar que esse sentimento numinoso não é um sentir-se moralmente realizado; que fez o que é certo, ou uma boa ação. Otto (2007) lembra que o sentimento numinoso não pode ser comparado e nem se igualar a sentimento de dever cumprido como a moral nos fornece:

Convidamos então, ao examinar e analisar esses momentos e estados psíquicos de solene devoção e arrebatamento, a observar atentamente o que eles não têm em comum com estados de embevecimento moral ao contemplar uma boa ação, mas os sentimentos que os antecedem e que lhes são específicos. (p. 40).

Ainda para o mesmo esse sentimento numinoso é o que está presente na origem de todas as religiões, e que só depois ele ganha esquematizações éticas de seu aspecto original, foge ao que para ele é o cerne das religiões:

O elemento de que estamos falando e que tentaremos evocar no leitor está vivo em todas as religiões, constituindo seu mais intimo cerne, sem o qual nem seriam religião. Presença marcante ele tem nas religiões semitas, e de forma privilegiada na religião bíblica. Ali ele também apresenta uma designação própria, que é o hebraico qadôsh, ao qual corresponde o grego hágios e o latino sanctus, e com maior precisão ainda sacer. Não há duvidas de que em todos os três idiomas esses termos, no ápice do desenvolvimento e da maturidade da idéia, designam também o “bom”, o bem absoluto. Então, usamos o termo “heilig\ santo” para traduzi-los. Entretanto esse “santo” só paulatinamente recebe esquematização ética de um aspecto original. (2007, p. 38).

O numinoso é uma experiência do indivíduo frente a um objeto exterior que lhe causa o sentimento numinoso de tremendum ou fascinante. Aqui se percebe que em Otto (2007) a experiência do numinoso está fora de qualquer ligação do individuo com um grupo, com uma instituição ou religião instituída (pessoas que aderem a um credo), mas vivem sua crença a partir de uma experiência pessoal; individual – o numinoso foge a qualquer espaço, ou melhor, não tem espaço, lugar definido: acontece em qualquer lugar, já que tudo vai depender do individuo. No entanto, entendemos que é muito difícil ou quase impossível desvincular a experiência com o numinoso sem um lugar físico ou vinculado a ele como este espaço de encontro.

Não queremos com isso dizer que só independentemente do tipo de espaço no sentido da instituição ou denominação religiosa, aí se encontrará um campo favorável de contato, de experiência com o numinoso; pois sabemos que existem muitos espaços que se tornam a negação dessa experiência. Parafraseando Buber (2001), seria dizer que nem todo contato é um encontro dialógico. Não se quer negar que a experiência com o numinoso não está plenamente limitada ou condicionada aos espaços já instituídos, criados, mas no mínimo estes lugares são criados. Vejamos como o próprio Abrão que é citado por Otto (2007) como sendo aquele que manifesta sua experiência do numinoso se vale de espaços e que depois permanecem lugares desse encontro.

Abrão partiu conforme lhe dissera Javé [...]. Partiram para terra de Canaã e aí chegaram. Abrão atravessou a terra até o lugar santo de Siquém, no Carvalho de Moré. Nesse tempo, os cananeus habitavam essa terra. Javé apareceu a Abrão e lhe disse: Eu darei esta terra à sua descendência”. Abrão construiu ai um altar a Javé, que lhe havia aparecido. Daí, passou para montanha, a oriente de Betel, e aí construiu um altar a Javé e invocou o nome de Javé. (Gn. 12: 5-8).

Chama-nos atenção primeiramente quando diz que Abrão “atravessou a terra até o lugar santo” e “Javé apareceu a Abrão”. Ou seja, não se pode sustentar nos textos bíblicos uma experiência do sagrado, do numinoso como quer Otto (2007), totalmente livre de espaço físico e de uma cultura. Um limite que podemos perceber nesta forma de conceber o sagrado, o “Totalmente outro”, é que para ele ser o “Totalmente outro” vai depender do meu olhar; o outro está condicionado ao lugar que eu o deixo entrar, que eu o coloquei. Não estaríamos assim caindo num subjetivismo? Ele será se eu o deixar, se eu o permitir.

Em Buber (2001) para acontecer a relação haverá a necessidade dos dois: um eu que vai ao encontro de um outro e o outro que se dá em abertura.  O “Totalmente outro” de Otto (2007) acontece no indivíduo; é algo sentido nele, no seu íntimo, ou seja, há o perigo de puro sentimentalismo; algo que não tem consequências, não traz responsabilidade e compromisso existencial; seria algo do meu íntimo; ele não estaria limitado ao meu superego? Buber (2001) observa em Jung que ele não desvincula Deus do humano, ou melhor, que o vinculou demais. Pensamos também que com a forma de compreensão de Otto (2007) corre-se esse perigo. Vejamos a crítica que Buber (2007) faz a Jung no seu livro Eclipse de Deus:

Mostrei que Jung designa como um “fato [...] a ação divina surgir do próprio intimo” e que ele opõe esse fato à “concepção ortodoxa” segundo a qual Deus “existe por si”; ele explica que Deus não existe desvinculado do sujeito humano. Dessa forma, a questão controvertida é: Deus é apenas um fenômeno psíquico, ou existe também independentemente do psiquismo humano? Jung responde: Deus não existe por si. A pergunta também pode ser formulada assim: Aquilo que o crente chama de ação divina surge somente de seu próprio íntimo, ou aí pode estar envolvida a ação de um ser suprapsíquico? Jung respondeu: Surge do próprio íntimo. (p. 131-132).

Em tudo que foi visto até aqui, pelos vários aspectos que Otto (2007) desenvolve e trabalha na dimensão do Tremendum, nos sugere que ele constrói sua imagem ou visão do numinoso a partir das categorias da religião natural e forte conteúdo do misticismo que inviabiliza uma relação dialógica com o divino, com numinoso, com as pessoas e na clínica psicoterapêutica, não possibilita um encontro dialógico. Buber (2001) faz ressalvas quanto ao misticismo; pois este traz a nulidade de uma parte: “O Eu e Tu desaparecem, a humanidade que, há pouco estava na presença da divindade, se submerge nela”. (p. 107). Portanto, não se sustenta essa compreensão do numinoso a partir do Novo Testamento.

Em Jesus não se pode mais separar a religião de relação com o outro com uma ética desvinculada da comunidade. Jesus mesmo forma essa comunidade para viver a relação com Deus, com o numinoso. Não queremos dizer com isso que a experiência do numinoso só se dá na comunidade, nos espaços a Ele dedicados, mas não se pode negar que nos Evangelhos a experiência do numinoso se dá na relação com a comunidade, na relação com os outros que encontramos; que a religião está vinculada a uma ética. Mesmo a minha experiência sendo pessoal, ela acontece na relação: seja no dizer de Buber (2001) com o Tu ou no Tu eterno.

A experiência que se dará com o numinoso para os cristãos, a partir da morte de Jesus, é na comunidade. Isto pode se ver em muitas passagens dos Evangelhos: toda dinâmica que acontece agora após a morte de Jesus é na comunidade: “Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mt. 20: 18).

Muitos teóricos que estudam a antropologia religiosa visualizam esses dois tipos de experiência: a pessoal e a comunitária. Isso é muito frequente nos novos movimentos religiosos.

Na ressurreição, o tremendum não é manifesto de forma individual: Ele aparece às mulheres: “Depois do sábado, ao amanhecer do primeiro dia da semana, Maria Madalena e a outra Maria foram ver a sepultura”. (Mt. 28: 1ss); aparece aos discípulos: “Os onze discípulos foram para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado. Quando viram Jesus, ajoelharam-se diante dele. Ainda assim alguns duvidaram” (Mt. 28: 16-17). Uma passagem que se pode dizer se tornou parâmetro para se fundamentar que Jesus se faz presente sempre na comunidade, que nas relações se dá a experiência do numinoso a partir de Jesus é a aparição de Jesus na comunidade na qual Tomé não estava:

Tomé, chamado Gêmeo, que era um dos Doze, não estava com eles quando Jesus veio. Os outros discípulos disseram para ele: Nós vimos o Senhor. Tomé disse: Se eu não vir a marca dos pregos nas mãos de Jesus, se eu não colocar o meu dedo na marca dos pregos, e se eu não colocar a minha mão no lado dele, eu não acreditarei. Uma semana depois, os discípulos estavam reunidos de novo. Dessa vez, Tome estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou. Ficou no meio deles e disse: A paz esteja com vocês. (Jo. 22: 24-26).

Uma outra experiência do numinoso no espaço da relação com o outro, com o comunitário; é a experiência dos discípulos de Emaús:

Eles, porém, insistiram com Jesus, dizendo: “Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando. Então Jesus entrou para ficar com eles. Sentou-se à mesa com os dois, tomou o pão e abençoou, depois o partiu e deu a eles. Nisso os olhos dos discípulos se abriram, e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém desapareceu da frente deles. Então um disse ao outro: Não estava o nosso coração ardendo quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras? (Lc. 24: 29-32).

A grande manifestação do ressuscitado, ou seja, a experiência do numinoso se dará quando os discípulos estão juntos: toda a experiência do numinoso se dá quando eles estão reunidos. Portanto, pode-se dizer que corremos o perigo de reduzir à religião ou à experiência religiosa a pura emoção; a estados emocionais “simplesmente”; sem disso tirar decisões e responsabilidades.

Assim, podemos dizer que Otto (2007), ao falar do numinoso como aquilo que está em todas as religiões como seu cerne, está limitando a experiência religiosa ao que é de mais “primitivo”, no sentido de uma primeira forma de expressar a experiência. Poder-se-ia mesmo objetar, se não estamos aqui num estado de infância, um sentimento infantil diante do mundo, da natureza: diante do que nos fascina e daquilo que nos causa medo.

O mesmo Otto (2007) quando pouco fala de Jesus coloca-o ainda dentro dessa fundamentação do medo que o próprio Jesus teve do Tremendum; falando que seu medo não foi da morte, mas do Tremendum. Entendemos não ter espaço no Evangelho para essa afirmação. Jesus, compreendemos, teve medo da própria morte. O Filho não teria nenhum medo do Pai; daquele que ele mesmo chamava de Paizinho. Dessa forma se pode dizer que o Tremendum não se sustenta diante do Evangelho, do Novo rosto do Sagrado, de Deus – o Sagrado, no caso de Otto (2007), o numinoso.

Em Jesus, o numinoso não é mais o que está distante que causa medo, nos amedronta; mas é amigo, Deus do amor. “Não vim condenar o mundo, mas salvar”. Entendemos, assim que com Jesus o numinoso não mais comporta o aspecto de Tremendum, mas somente do Fascinante. Otto (2007) usa citações de S. Paulo poucas vezes para fundamentar sua posição, porém nos evangelhos toda a pregação de Jesus está carregada de amor, misericórdia, perdão, “Sois meus amigos e não servos”, ou seja, o que sobressai de forma absoluta é o aspecto fascinante (fascinans).

Otto (2007) busca de várias maneiras fazer com que no Novo Testamento o Tremendum permaneça, como que para sustentar sua ideia de qualquer forma. Diríamos mesmo que ele força o texto para falar o que ele quer. Quando o mesmo faz uma interpretação de quando Jesus usa a palavra Pai, diz que esse “Pai” é em primeiro lugar o rei santo e excelso, tenebroso e ameaçador; diz: “Trata-se, porém, de um mal-entendido do sentido bíblico, tanto do substantivo quanto do seu atributo. Esse “Pai” é em primeiro lugar o rei santo e excelso desse “reino”, que, tenebroso e ameaçador, se aproxima das profundezas do “céu” com toda emât Jahveh [terror de Deus]”. (p. 121). Não é essa a tônica, a ideia que se percebe nos Evangelhos; pelo contrário, Jesus busca através de suas atitudes, mostrar o quanto não devemos ter medo do Pai, de Deus.

Otto (2007) continua buscando fundamentar sua posição fazendo uma pergunta que não achamos que justifica sua busca de mostrar que em Jesus esse aspecto do Tremendum, do Sagrado permanece. Entendemos que sua própria pergunta e resposta o leva à própria negação do que pretende defender, ou seja, seu argumento é contra argumento. Diz ele:

Além disso, por que haveria ele de “ensinar” aquilo que para todo judeu e principalmente para todo aquele que cria no reino era primordial e óbvio por excelência: que Deus era “o Santo em Israel”? Ele precisa ensinar e proclamar aquilo que não era evidente, e sua propriíssima descoberta e revelação: que esse Santo era justamente um “Pai” celestial. (idem).

Ora, isso para nós é mais do que suficiente para se compreender que Jesus vem manifestar uma nova forma de relação com o Sagrado, uma nova forma de ser alteridade do divino; exatamente quebrar essa ideia de um Deus Tremendum, tenebroso e ameaçador. E mais que isso: o Divino em uma alteridade relativa – aquele que é “Totalmente Outro”, mas ao mesmo tempo o “totalmente próximo”. Essa ideia realmente já existia e Jesus vem mostrar o quanto ela não é Aquele que para ele é o aspecto central do Sagrado; que ele chama de Pai.

Em momento algum ele reforça essa ideia, pelo contrário, sua ênfase é em colocar-se contra essa forma de ver o numinoso em alteridade absoluta; e isso é feito muitas vezes de forma dura. Ele não fala como se fala no adágio popular: para chover no molhado, ou querendo que sua mensagem fosse nova; só para ser nova, ou atrair por atrair. Ele vem contestar exatamente esse Deus que amedronta, condena, ameaçador. É isso que compreendemos: que para Jesus e para os seus seguidores já não há mais espaço para uma compreensão do Divino como um Deus que amedronta. Esta ideia é ainda da religião “primitiva”, dos primeiros judeus, ainda uma religião do mito, animista, religião natural.          

Otto (2007) continua insistindo na tentativa de fundamentar sua visão de que no Novo Testamento também se dá essa dimensão do tremendum, do numinoso. Diz ele:

À luz e sobre o pano de fundo desse numinoso com seu mistério e seu tremendum é preciso enxergar finalmente também a agonia de Jesus na noite do Getsêmani, para entender e sentir o que ali estava acontecendo. O que provoca esse tremor e medo até o fundo da alma, essa tristeza mortal e esse suor que escorre feito gotas de sangue? Medo ordinário da morte? Em alguém que fazia semanas estava encarando a morte de frente e que de plena consciência acabara de celebrar a ceia da morte com seus discípulos? Não, isso é mais que medo da morte. Trata-se do arrepio da criatura diante do tremendum mysterium, diante do enigma assombrador (p. 122-123)

           

Mas uma vez temos que discordar e entender que Otto (2007) procura justificar o aspecto do tremendum no numinoso que ele tanto quer mostrar ou acredita. A interpretação que o mesmo faz não compreendemos desta forma e que muitos teólogos interpretam de outra forma e que entendemos ser mais aceitável. Primeiro que se Jesus que tanto se mostrou sendo o filho amado; que sempre mostrou absoluta confiança no Pai, que tinha grande amizade com Ele, não poderia ter nenhum medo, terror e insegurança diante do Pai: o filho não tem medo do pai, pelo contrário, se joga em seus braços diante do perigo. No evangelho, Jesus se denomina filho de Deus, “aquele que desceu de junto do Pai”, que conhece o Pai, que “quem vê o filho vê o Pai”, “quem conhece o Pai senão aquele que desceu de junto dele”? Logo ele não teria medo daquilo que ele conhecia e que ele mesmo se denominava. O que para nós é mais plausível, sensato, se podemos falar de medo de Jesus diante da morte, foi mesmo da sua morte física, a agonia da morte; a angústia do humano diante de sua finitude. Mesmo na morte ele grita por Deus, Aquele que para ele não o amedronta. Do contrário, o que amedrontou Jesus foi o sentimento de abandono do mesmo: “Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste”. (Mt. 27: 46). Num momento de tamanha agonia só chamamos por aqueles que temos muita confiança, que nos podem dar socorro e não que me causa medo e aumente mais ainda a minha angústia.

            Poderíamos também interpretar que a intenção do evangelista tenha buscado mostrar o quanto o Divino se aproxima do humano – como Ele assumiu essa dor, condição da humanidade: a morte.

            Ainda se poderia entender que a intenção do evangelista seria mostrar o que muitos profissionais hoje percebem diante de alguns pacientes em estado terminal, que estão diante da morte: a angústia da solidão – eles passam por este momento em que se sente só - ele e sua angústia; ele e a morte. Em seguida vem outro momento em que aceita a morte com mais tranqüilidade. Talvez aqui também se pode humanamente falando nos referir a outra expressão do evangelista: “Pai, seja feita a tua vontade”. Ele aceita a morte. Em Jesus, na condição de pessoa, ele vive igualmente as angustias humanas diante da morte.   

 

1.2 A Imagem do Divino enquanto alteridade no Antigo Testamento

 

As imagens apresentadas do divino, de Deus, no Antigo Testamento (A.T), são do Outro, “Totalmente Outro” no dizer de Rudolf Otto (2007). O Divino é aquele totalmente diferente do humano como um sentimento de poder, perfeição, de realeza; pura justiça, senhor todo poderoso, senhor dos exércitos; justiceiro e vingador. O divino é totalmente o transcendente. O homem fica em situação de total submissão, vive num estado de ameaça constante. No entanto, não se pode negar ou esquecer que são vários “rostos” e “nomes” com os quais o numinoso se apresenta no dizer de Buber: “ Os homens tem invocado o seu Tu eterno sob vários nomes [...] Os nomes entraram, então, na linguagem do Isso; um impulso cada vez mais poderoso levou os homens a pensarem no seu Tu eterno e falar dele como de um Isso”. (p. 99).

Para nossa reflexão é muito emblemática e importante a manifestação do numinoso a Moisés na Sarça ardente. Esta manifestação do numinoso é central para a formação do povo de Deus e se tornará um referencial que identificará um povo e um Deus. É a partir da experiência que este povo faz do numinoso que se torna o critério para se saber se este numinoso é verdadeiro ou falso. Muitos textos da Bíblia terão como fundamento esta referência da saída do Egito, a libertação do povo. É um Deus que se fará presente na história, é o numinoso que age dentro de um campo de relações sociais, econômica e política.

O numinoso é o Todo poderoso, um “Totalmente Outro”, enquanto diferente, não no sentido de negação, nulidade do outro. Ele se faz aliado, se junta aos seus para a libertação. Pode-se ainda dizer que as manifestações entram num campo ético, que estabelece um tipo de relação e responsabilidade. Não queremos aqui discutir ou entrar em outros méritos da questão quanto à figura de Moisés, mas a manifestação do numinoso que se tornou referência para os cristãos no Novo Testamento. A passagem da Sarça mostra um diálogo entre o numinoso e Moisés:

E do meio da sarça Deus o chamou: “Moisés, Moisés!” Ele respondeu: “aqui estou”. Deus disse: “Não se aproxime. Tire as sandálias dos pés, porque é um lugar sagrado”. E continuou: “Eu sou o Deus de seus antepassados, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó”. Então Moisés cobriu o rosto, pois tinha medo de olhar para Deus. Javé: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel. (Ex. 3: 4-8).

Neste diálogo como vimos Javé se torna aliado do povo, é um Deus encarnado na história. Moisés não se coloca numa situação de plena inferioridade, de um nada, mas apenas reconhece ser limitado, com algumas limitações que está dentro de sua condição mesmo física; mas que Javé desconsidera, mostrando que tais limites não se justificam. Não é um encontro de um “místico” como coloca Otto (2007) num estado de nulidade, de depreciação de si mesmo; “ser pó e cinza” quando diz: “Nessas formas da mística encontramos como um dos seus principais traços, por um lado, uma típica depreciação de si mesmo, muito semelhante à de Abraão, que é a depreciação de si mesmo, do eu e da criatura”. (p. 52). Ou seja, o numinoso aqui não é uma presença aniquiladora da alteridade do outro; mas pelo contrário, é pura relação na qual se estabelece um diálogo. O numinoso vem fazer um convite se colocando até mesmo em uma condição de súplica – aqui o numinoso “suplica”, se em muitas outras passagens há uma insistência da parte da criatura, aqui se manifesta uma inversão: é o numinoso que “implora” à criatura; é o numinoso que pede, solicita ajuda. Moisés está numa situação de autonomia – a criatura é assediada pelo criador para aceitar o seu pedido. Podemos perceber isso na insistência de Deus para Moisés diante de suas negativas:

Por isso, vá. Eu envio você ao Faraó, para tirar do Egito o meu povo, os filhos de Israel. Então Moisés disse a Deus: “Quem sou eu para ir até Faraó e tirar os filhos de Israel lá do Egito?”. Deus respondeu: “Eu estou com você. (...). Moisés replicou a Deus: “quando eu me dirigir aos filhos de Israel, eu direi: O Deus dos antepassados de vocês me enviou até vocês, e se eles me perguntarem: “Qual o nome dele?. O que é que eu vou responder?” Deus disse a Moises: “Eu sou aquele que sou”. E continuou: Você falará assim aos filhos de Israel: Eu sou me enviou ate vocês”. (...). Moisés replicou: “E se eles não acreditarem em mim, nem fizerem caso, dizendo: “Javé não apareceu a você?. (...). Moisés insistiu com Javé: “Meu senhor, eu não tenho facilidade para falar, nem ontem, nem anteontem, nem depois que falaste ao teu servo; minha boca e minha língua são pesadas”. Javé replicou quem dá a boca para o homem?. (...). Moisés porém, insistiu: “Não, meu senhor, envia o intermediário que quiseres”. (Ex. 3: 10-24; 4: 1-13).

  

Neste texto é perceptível uma relação em que não há uma nulidade da criatura frente ao criador. Podemos até dizer que o criador é pura imploração, busca de todas as maneiras convencer o outro a aceitar a missão; é uma “bajulação”. Não existe uma relação em que “O Totalmente Outro” se coloca numa atitude de supremacia Absoluta, mas que se coloca numa relação de respeito; uma alteridade frente a uma outra – não há nulidade de uma parte e este também não se coloca como ameaçador, gerando medo. Moisés chega mesmo a recusar, faz resistência, questiona; e depois de muita insistência e promessas feitas pelo numinoso é que a criatura aceita a missão.

Rudolf Otto em O Sagrado (2007) nos diz que: “O Antigo Testamento é rico em expressões paralelas para esse sentimento. Muito curioso é a emât Jahveh, o “terror de Deus”, que Javé pode derramar ou mesmo enviar, como que um demônio que paralisa as pessoas” (2007, p. 45-46). Ora, Otto (2007) tem toda razão! Se olharmos em algumas passagens do A.T, se justifica esse “terror de Deus”; Deus como vingador; Aquele que elimina os que não aceitam sua Lei, os que não aceitam seus preceitos. São passagens que nem se comparam aos povos “Bárbaros”. No livro de Ezequiel encontramos uma passagem que causa arrepio. Diz: “Percorram a cidade atrás dele, para matar sem dó nem piedade velhos, moços, moças, crianças e mulheres. Matem, acabem com eles. Só não matem os indivíduos marcados com a cruz”. (Ez. 9: 5-6).

Segundo Veríssimo (2010), comentando a obra de Rudolf Otto (2007), O Sagrado, diz: “A sua obra se inicia com a descrição do aspecto mais assustador do sagrado, o tremendum. O sagrado é de tal maneira grandiosa, fora de qualquer medida conhecida, dotada de um incomensurável poder”. (2010, p. 32). Nestas palavras podemos entender que esta alteridade do Sagrado, do Divino como “Totalmente Outro”, não permite se estabelecer uma relação dialógica; não é possível, pois há uma situação díspar, os polos deixam de ser polos e se tornam extremidades e abismos. São impossíveis de se comunicarem, não permitem encontrar-se.                                                                                                                                   Para Otto (2007), um dos sentimentos que temos diante do numinoso é o “sentimento de criatura”. E que neste sentimento manifesta-se um sentimento de dependência. Ele cita a passagem do A.T do Gênesis 18, 27 na qual Abraão diz: “Tomei a liberdade de falar contigo, eu que sou poeira e cinza”. 

Para Otto (2007):

Trata-se de um sentimento confesso de dependência que, além de ser muito mais do que todos os sentimentos naturais de dependência, é ao mesmo tempo algo qualitativamente diferente. Ao procurar um nome para isso, deparo-me com o sentimento de criatura – o sentimento da criatura que afunda em sua nulidade perante o que está acima de toda criatura. (p. 41).

Esta citação bíblica que Otto (2007) utiliza; se olhada de forma isolada, descontextualizada, pode nos levar a uma única interpretação: generalizar o sentimento humano diante do Divino como de uma simples criatura. Não queremos negar que a expressão “eu que sou poeira e cinza”, vista separada do contexto, pode ser entendida como um sentimento de nulidade; mas quando se traz o contexto como sabemos, em cada cultura ela tem um sentido diferente. Ela pode estar sendo usada mesmo como uma forma de se colocar numa outra condição, até mesmo superior – aquilo que chamamos de “uma falsa modéstia”; isso não é impossível. Vejamos o contexto de forma mais ampla. A citação Gn. 18: 27 é de um contexto de uma relação dialógica entre Javé e Abraão: não está num contexto em que uma parte é totalmente submissa na relação. É verdade que Abraão está dependente, pois está solicitando; mas depende também dos cidadãos de Sodoma e não só da decisão do numinoso. Isto pode ser compreendido no desenvolvimento do diálogo.

No mesmo capítulo Gn. 18: 22: “Abraão aproximou-se e perguntou: “Destruirás o justo com o injusto”? Se dermos uma olhadinha mais atenta a esta pergunta, perceber-se-á que ela é uma pergunta um pouco “desaforada”, “maliciosa”. Primeiro porque Abraão começa a questionar a Deus; Ele que é um Juiz justo como pode destruir justos e injustos? Ora, se Abraão que não é o Juiz dos juízes, o Juiz que não só entende de justiça, mas é a própria justiça? Como então não pode perceber a injustiça que pode fazer destruindo os justos e injustos? É como se dissesse: eu que sou homem; injusto, que não uso de misericórdia estou percebendo o quanto tem de injustiça e falta de misericórdia, quanto mais O Juiz, O Justo não usaria de justiça? Este é o pensamento que Abraão expressa:

Talvez haja cinqüenta justos na cidade! Destruirás e não perdoarás a cidade pelos cinqüenta justos que estão no meio dela? Longe de ti fazeres tal coisa: matar o justo com o injusto, de modo que o justo seja confundido com o injusto! Longe de ti! Será que o juiz de toda terra não fará justiça? (Gn. 18: 25).

 Nestas palavras é interessante perceber que Abraão não tem um papel passivo na relação; é ele praticamente que vai conduzindo o diálogo e Javé vai escutando e se deixando conduzir por Abraão. “Pó e cinza”, aqui não se pode ser apenas interpretado como um estado de nulidade, do não ser. Abraão deixa a malícia da pergunta inicial e se mostra realmente como está na ralação; é destemido frente ao “Totalmente Outro”, parece não está muito preocupado com a irá, com o Tremendum, com o que possa sofrer e diz: “Eu me atrevo a falar ao meu senhor, embora eu seja pó e cinza”. (Gn. 18: 27). E Abraão continua se mostrando nem um pouco amedrontado com a irá de Javé: “Abraão continuou: “Que o senhor não fique irritado se eu continuo falando. E se houver trinta?”Javé respondeu: “Se houver trinta, eu não o farei”. Abraão insistiu: “Estou me atrevendo a falar ao meu Senhor [...]. “Que o meu Senhor não se irrite pela última vez”. (Gn. 18: 30-32).

Erick Fromm (1962), comentando essa passagem em que Abraão intercede por Sodoma e Gomorra, mostra o quanto a relação entre Deus e o homem se modifica profundamente e na qual Deus não se coloca diante do homem enquanto alteridade absoluta, mas há uma relação de diálogo, responsabilidade e reciprocidade. Diferentemente segundo o mesmo autor quando Deus decidiu destruir a humanidade e salvar Noé com o dilúvio. Diz ele:

[...]. Depois do dilúvio, entretanto, o intercâmbio entre Deus e o homem sofre profunda alteração: em solene Pacto, Deus promete “que não será mais destruída toda a carne pelas águas do dilúvio. E ao mesmo tempo que Deus se obriga a nunca destruir toda vida terrena [...] Daí por diante, a relação entre Deus e o homem modifica-se fundamentalmente. Deus não é mais senhor absoluto, que pode agir de acordo com sua vontade; passa a aceitar restrições, às quais tanto Ele como o homem devem se submeter; o princípio que estabelece o respeito pela vida não deve ser violado por uma ou outra parte; tanto Deus pode punir o homem se burla tal princípio, como este pode pedir contas a Deus, se for Ele o transgressor. Este novo tipo de relação transparece claramente quando Abraão intercede por Sodoma e Gomorra. (p. 55-56).

Em tudo isso não se pode concluir que há uma relação em que uma parte está totalmente submissa e a outra é todo poder. Entendemos que existe uma relação de intimidade, cumplicidade, responsabilidade, respeito e diálogo. Deus permanece o tempo todo dialogando com Abraão; Ele não se coloca como o todo absoluto; aceita as várias propostas feitas por Abraão. É Abraão que pára de apresentar condições. Talvez se continuasse até “zero” de habitantes, Javé aceitaria por causa do próprio Abraão e por causa da sua própria condição de ser Criador e não destruidor; ou seja, cumprir o Pacto feito. O numinoso é o Todo poderoso, um “Totalmente Outro”, enquanto diferente, não no sentido de negação, nulidade do outro.

Mesmo que Otto (2007) busque mostrar que há uma diferença de qualidade quando diz que se pode fazer analogias entre esse sentimento de dependência no sentido “natural” da palavra no âmbito da vida. Comentando Schleiermacher diz: “O próprio Schleiermacher ressalta a distinção entre sentimento de dependência piedosa e outros sentimentos de dependência”. (p. 41).  Entendemos que essa forma de se pensar o “Totalmente Outro” gera uma dificuldade para se criar uma relação de respeito e reciprocidade que permita uma relação dialógica: de um lado o Todo poderoso, uma alteridade absoluta, que está acima, e do outro lado alguém que nada é que está em baixo; ou seja, não passa de mera poeira e cinza.

Veríssimo, comentando Otto (2007) quando usa esta passagem bíblica para apresentar este estado de dependência diz: “Nesse cenário, imaginamos que onde entra em cena o sagrado, o ser humano se nadifica, submete-se a um poder infinitamente superior a ele”. (2010, p. 33). Com estas palavras se percebe que em Otto (2007) buscar a relação dialógica entre o Sagrado e o humano seria quase impossível, já que há uma dependência absoluta: O sentimento subjetivo de “dependência absoluta” pressupõe uma sensação de “superioridade (e inacessibilidade) absoluta” do numinoso. (p. 43). Tal compreensão pode levar os indivíduos a saírem de sua responsabilidade frente à vida, aos desafios que a existência nos coloca: se “Deus é tudo, eu nada”, então não me cabe buscar soluções.

Quem também nos lembra dessa observação feita sobre o numinoso em Otto (2007) como uma dimensão que gera a nulidade do humano é Mircea Eliade (2010) no seu livro O Sagrado e o Profano. Diz ele:

Otto designa todas as experiências como numinosas (do latim numem, “deus”) porque elas são provocadas pela revelação de um aspecto do poder divino. O numinoso singulariza-se como qualquer coisa de ganz anderer*, radical e totalmente diferente: não se assemelha a nada de humano ou cósmico; em relação ao ganz andarer, o homem tem o sentimento de sua profunda nulidade, o sentimento de “não ser mais do que uma criatura”. (p. 16).

Ainda para Mircea Eliade (2010), em Otto (2007), estar diante do numen é sentir e descobrir: “O sentimento de pavor diante do sagrado, diante desse mysterium tremendum, dessa majestas (ou maiestas) que exala uma superioridade esmagadora de poder”. (2010, p. 16).

Pode-se falar não só em dependência, mas em uma submissão absoluta já que não resta ao humano se submeter a esse tremendum sob pena de ser aniquilado, destruído. Só para ilustrar, apresentamos algumas passagens do numinoso como tremendum: Números 21, 35 “Com o apoio divino, os Israelitas matam Ogue, seus filhos e todo o seu povo até não haver sequer um sobrevivente”. Ainda no mesmo livro dos Números 25, 4 “Disse Deus a Moisés: Toma todos os cabeças do povo e enforca-os ao Senhor diante do Sol, e o ardor da ira do Senhor se retirará de Israel”. Em Ezequiel 9:4-6 “Ordem do Senhor: sem compaixão… matai velhos, mancebos, e virgens, e meninos, e mulheres, até exterminá-los...”. Lembramos que nosso propósito não é fazer exegese bíblica; uma leitura científica da mesma, mas estamos procurando apenas mostrar que este tipo de linguagem leva a uma compreensão do divino como um “Totalmente Outro” inviabiliza uma relação de proximidade entre o sagrado e o humano.

Percebe-se dessa forma, que em Otto (2007), o “Totalmente Outro” é caracterizado por uma alteridade absoluta que não permite uma relação de equilíbrio entre as diferenças; corre-se o perigo de se negar o outro, a outra alteridade.

Veríssimo (2010) nos mostra que mesmo o fascinante como “Modalidade do sagrado que encanta, fascina, irradia amor e misericórdia [...]. Mesmo na instância atrativa, o sagrado permanece em Otto (2007) como uma instância completamente extra-humana” (2010, p. 35). Ainda para o mesmo autor; estes relatos míticos em que Otto (2007) se utiliza na bíblia e de forma mais direta no A.T em citações do tipo “não sou nada, tu és tudo”; “Traz à mostra o apagamento e o aniquilamento da criatura perante um poder soberano”. (ibid. p. 36). Portanto, é necessário para nosso caminho trazer imagens de alteridade do Divino que não inviabilize o diálogo entre o humano e Deus.

Entendemos assim que Otto (2007) nos traz uma grande contribuição para entender a experiência do Sagrado em algumas pessoas; porém não se pode generalizar ou absolutizar sua compreensão da imagem que o mesmo traz do A.T com referência ao numinoso, pois a nosso ver ele parte de uma perspectiva que dá ênfase na dimensão do tremendum, do amedrontador, do divino em sua imagem assustadora e em uma alteridade absoluta. Podemos mesmo no A.T encontrar o Divino com sua dimensão de pura relação de amor, como a mãe amorosa que cuida de seus filhos em um amor incondicional: “Sião dizia: Javé me abandonou, o Senhor me esqueceu! Mas pode a mãe se esquecer do seu nenê, pode ela deixar de ter amor pelo filho de suas entranhas? (Is. 49: 14-15). Neste texto se pode perceber o quanto o Divino é próximo; é Aquele que se manifesta numa relação de amor, de grande intimidade e proximidade; de um amor incondicional; em uma alteridade relativa.

1.3 A Imagem do Divino enquanto alteridade no Novo Testamento

Diferentemente do A.T, no Novo Testamento (N.T), o Divino se encarna na história humana; o divino se humaniza na pessoa de Jesus: já não estamos diante de uma alteridade absoluta, mas relativa - já não há mais distância entre Deus e a humanidade; Deus e homem, homem e Deus - Deus-homem. Jesus é humano e divino, Deus – homem; homem - Deus. É um numinoso que se envolve com o humano. Aqui a experiência com o numinoso se dá como sentimento, no entanto, não permanece em um puro sentimento, um estado psicológico que acontece e simplesmente se é vivido de forma isolada, privada; intimista, mas tem consequências para aquele que vivenciou; ele leva a tomarmos uma decisão, assumir responsabilidades com o outro, a uma atitude ética frente a um modelo de sociedade; as injustiças sociais, defesas da vida. Pode-se dizer que o numinoso no N.T. tem um lugar primordial para se experienciar, se vivenciar o encontro com a pessoa humana; ai ele é presença, leva ao encontro, a relação com o mundo, para o contato.

Gostaríamos de começar nossa apresentação do numinoso no N.T trazendo uma passagem que nos faz compreender qual seja a experiência e como ela leva a sair de nós e irmos ao encontro do outro. O texto do Evangelho de Lucas:

Oito dias de após dizer essas palavras, Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago, e subiram a montanha para rezar. Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante. Nisso, dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias. Apareceram na glória, e conversavam sobre o êxodo de Jesus, que iria acontecer em Jerusalém. Pedro e os companheiros dormiam profundamente. Quando acordaram, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com ele. E quando esses homens já iam se afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra Moisés e outra para Elias. (Lc. 9: 28-33).

Primeiro é interessante observar de que se tratava da conversa de Jesus: ir para Jerusalém para enfrentar as autoridades, o poder político e religioso da época, mas Pedro quer fugir; quer ficar na experiência do bem-estar, uma experiência do numinoso na dimensão fascinante: “é bom ficarmos aqui”. Segunda coisa é que Jesus chama para descer e assumir os riscos, o compromisso com os outros. Para nossa compreensão aqui começa uma nova forma de experienciar o numen no N.T: o Divino se encontrará no contato, nas relações que se estabelece entre as pessoas; na comunidade humana. E vai levar a um compromisso ético. Veremos que a partir da páscoa de Jesus; ou seja, da sua ressurreição a presença do Divino acontece na comunidade: "Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mt. 20: 18);

O início dessa presença do Divino no humano começa na própria encarnação do mesmo; que para os primeiros cristãos, acontece no Natal - é este grande momento, grande evento em que Deus faz morada na terra; Céu e terra, homem e Deus; pura unidade do humano e divino. Quebraram-se os extremos; não há uma alteridade absoluta no sentido de negação do outro: onde entre o Divino já não se anula o humano; se Deus se humanizou, então o humano se divinizou!  Aqui não há mais o numinoso separado e distante. Agora diferentemente de Otto (2007); há um Deus que sofre; chora até mesmo como gotas sangue, tamanha foi sua angústia (Jo. 11: 35); “Tomado de angústia, Jesus rezava com mais insistência. Seu suor se tornou como gotas de sangue”. (Lc 22, 44). E passa pelo que é mais humano, finito – a morte.

Deus é encarnação, humano e Divino, encarnado na história, compaixão, misericórdia, bondade; e tudo isso acontece no encontro de pessoas, ele se encontra nas relações: Jesus nos coloca agora que não há relação com Deus se isso não se dá na relação entre as pessoas: “Todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram”. (Mt. 25: 40). O julgamento final será feito através da nossa relação com os outros: “Estava com fome, e vocês me deram de comer, estava com sede, e me deram de beber”. (Mt. 25: 35). O Outro, o Divino não é mais distante; o “Totalmente Outro”; quem me ver vê o Pai. Somos templos de Deus, do Espírito Santo.

A gravidez de Maria: a humanidade está grávida de Deus – no humano está a morada de Deus. Deus faz morada no humano. O humano gera o Divino; está dentro do humano; no humano se manifesta a vontade do Divino: faça-se em mim segundo a tua vontade, ou seja, no humano se realiza a plenitude do Divino; e no Divino se realiza a plenitude humana. É o próprio Divino em sua alteridade que entra em relação; Ele não se distancia e nem se coloca como o Outro Absoluto; não se apresenta em uma relação de nulidade.

Com Jesus o divino diferentemente de Otto (2007) e do A.T, o humano pode entrar em relação, pois não se tem nulidade de uma parte; o Divino se torna próximo, se coloca como amigo: “Vocês são meus amigos...Eu já não chamo vocês de empregados, pois o empregado não sabe o que seu patrão faz; eu chamo vocês de amigos”. (Jo. 15: 14-15). Não há uma relação com um Outro absoluto quando este se coloca numa atitude de: “Tu és tudo e eu sou nada”. A passagem do lava-pés nos mostra o quanto se quebrou está relação de poder, de uma alteridade absoluta, relação em que as alteridades não são absolutizadas no sentido de negação, de nulidade, mas agora a alteridade se dá para se estabelecer respeito e amor pelo outro, em qualquer condição:

Depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus vestiu o manto, sentou-se de novo e perguntou: vocês compreenderam o que acabei de fazer? Vocês dizem que eu sou o Mestre e o Senhor. E vocês têm razão; eu sou mesmo. Pois bem: eu, que sou o Mestre e o Senhor, lavei os seus pés; por isso vocês devem lavar os pés uns dos outros”. (Jo. 13: 12-14).

             Assim, podemos compreender que o numinoso é o Outro, o totalmente outro, em alteridade relativa  que vem ao nosso encontro e entra em uma relação dialógica.

 

1.4 Experiência Religiosa de alteridade enquanto relação dialógica: Mito Bíblico da Hospitalidade como condição pré-ontológica do ser como abertura de encontro e relação

Para Buber (2001) “No começo é a relação” (p. 61). Pretendemos apresentar agora como o mito foi e é uma forma de se conhecer o ser; em sua condição pré-ontológica. É o próprio Heidegger que nos indica a importância dos mitos, das fábulas. Diferentemente daquilo que fomos levados a crer, de ver os mitos como pura fantasia, ilusões ou conhecimento infantil, e muitas vezes temos uma visão muito “crítica” em relação à sua importância como fonte de conhecimento, de sentido e que o mesmo não passaria de puro período de “infância” do saber “verdadeiro”, científico. O que podemos dizer é que o mito é uma forma de conhecimento diferente do conhecimento das ciências da natureza que têm sua lógica própria como forma de saber. Os mitos são formas poéticas de se falar, conhecer.

Heidegger (1988) nos saúda com um belo mito para nos falar de uma das dimensões ontológicas do dasein como ser do cuidado: o Ser para ele é cuidado. Heidegger dessa forma mostra a grande importância do mito, quando fundamenta o ser da presença como cura se valendo da fábula de Higino 220. Heidegger utiliza a fábula para fundamentar que a interpretação ontológica não é uma invenção e que ela possui o seu solo. Diz ele: “No testemunho a seguir, deve-se evidenciar que a interpretação ontológica não é uma invenção como “construção” ontológica, ela possui o seu solo e, com este os seus delineamentos elementares”. E nos apresenta o mito:

Certa vez, atravessando um rio, “cura” viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. A cura pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como a cura quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter a proibiu e exigiu que fosse dado o nome. Enquanto “cura” e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente eqüitativa: “Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo, porem, foi a “cura” quem primeiro o formou, ele deve pertencer á “cura” enquanto viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve se chamar ‘homo’, pois foi feito de húmus (terra)”. (p. 265)

Nestas palavras de Heidegger se pode indagar: se pode negar a importância dos mitos e fabulas? Pode-se negar que dispomos de uma linguagem simbólica e que se pode subestimá-la? Que na linguagem poética a verdade do ser se manifesta? Podemos então subestimar a linguagem poética e simbólica da Bíblia; mitos das religiões? Para nós, compreendemos que não. Os mitos bíblicos também nos falam na sua forma de como podemos conhecer a “verdade” do ser.

Rollo May (1992) assim nos fala de como estamos redondamente enganados da nossa não valorização do mito como fonte de conhecimento. Diz ele: “Mas existe uma outra razão em nossos dias para a definição errada dos mitos como ilusões. A maioria de nós foi ensinada a pensar apenas em termos racionais. Parecemos vítimas do preconceito de que quanto mais racionais forem nossas afirmações mais verdadeiras serão”. (p. 12) Nestas palavras podemos ver o quanto são preconceituosas certas afirmações e compreensões que temos do mito. Segundo ainda o mesmo autor “Não existe nenhum conflito entre a ciência corretamente definida e o mito também corretamente compreendido” (Idem). Rollo May faz uma afirmação que nos adverte sobre a gravidade que pode acontecer na negação do mito – nos levar ao adoecimento: “Enquanto nosso mundo e sociedade permanecerem assim vazios de mitos que expressem crenças e objetivos morais, haverá depressão e suicídio”. (p. 9).

            Conheçamos agora o mito bíblico; ele é de grande riqueza para nossa compreensão de uma religião ou crença que quer ser genuína e de boa possibilidade de se construir o diálogo; que permite uma aplicação para uma clínica psicoterápica que tem o encontro, a relação dialógica como possibilidade de cura, que presa pela relação como algo transformador; promotora da saúde.

A presença do Divino aqui se estabelece nas relações entre as pessoas na cotidianidade. Lembramos que Deus; o Divino na Bíblia se fazia presente na terra de forma indireta “com disfarces” de mensageiros, de anjos. É o próprio texto que diz que Javé se encontra com Abraão; tem implicações com as pessoas em sua realidade concreta da vida. Também não se limita ou se fecha para confissões de crenças pessoais ou de grupos, ou seja, uma crença genuína com aplicabilidade para a clínica dialógica, não pode ser fechada em um credo; entre grupos de pessoas do mesmo convívio, mas mesmo no encontro com o outro desconhecido, do estranho, de uma alteridade; ela deve possibilitar o verdadeiro diálogo. O Divino se dá como pura abertura e encontro. Vejamos o mito:

Javé apareceu a Abraão junto ao Carvalho de Mambré, enquanto ele estava sentado à entrada da tenda, pois fazia muito calor. Levantando os olhos, Abraão viu na sua frente três homens em pé. Ao vê-los, correu da entrada da tenda ao encontro deles e se prostrou por terra, dizendo: ‘Senhor, se alcancei o seu favor, não passe junto ao seu servo sem fazer uma parada. Vou mandar que tragam água para que vocês lavem os pés e descansem debaixo da árvore. Vou trazer um pedaço de pão e vocês poderão recuperar as forças antes de partir; foi para isso que passaram junto ao servo de vocês’. Eles responderam: está bem. Faça o que está dizendo. Abraão entrou correndo na tenda onde estava Sara, e disse a ela: “Depressa! Tome vinte e um litros de flor de farinha, amasse-os e faça um pão grande”. Depois Abraão correu até o rebanho escolheu um vitelo novo e bom, e o entregou ao empregado, que se apressou em prepará-lo. Pegou também coalhada, leite e o vitelo que havia preparado, e colocou tudo diante deles. “E os atendia debaixo da árvore enquanto eles comiam”.  (Gn. 18: 1-8).

Neste mito se percebe que o Divino se encontra, se dá em relação, se dá em abertura para com o outro, daquele que se aproxima e que necessita de ajuda. A abertura para o diálogo e a solidariedade não vem por eles serem de religião “A” “B” ou “C”; e nem pelo professar uma crença ou não. Abraão se coloca em abertura para o encontro, para dialogar, se abre para; porque o mesmo tem a postura de “reverência” ao outro, saber que ele como um homem de fé, neste Deus que o coloca para abertura de encontro, de relação; ele é provocado para dialogar com o outro, com o estrangeiro. Seria dizer que devemos estar abertos mesmo para situações corriqueiras, pois é através delas que Deus se manifesta e se faz presente. A relação com o Divino se dá na vida concreta. Assim nos fala Buber: “As linhas de todas as relações, se prolongadas, entrecruzam-se no Tu eterno. Cada Tu individualizado é uma perspectiva para ele. Através de cada Tu individualizado a palavra - princípio invoca o Tu eterno”. (Buber, 2001, p. 99). 

Richard Hycner (1995, p. 90), comentando Martin Buber, usa a expressão: “Reverenciando o cotidiano”, para mostrar como a dimensão do Divino não está separada da vida concreta. Buber que tem uma influência do movimento do hassidismo de origem judaica; mostra que não há dicotomia entre o espiritual e a vida cotidiana, mas podemos vê-las como alteridades:

Na vida, como entende e proclama o hassidismo, não há conseqüentemente, nenhuma distinção essencial entre os espaços sagrado e profano, entre tempos sagrados e profanos, entre ações sagradas e profanas, entre conversas sagradas e profanas. Em cada lugar, em cada hora, em cada ato, em cada fala, o sagrado pode florescer. (Hycner, 1995 apud Buber, p. 91).

Nestas palavras, como no mito bíblico, podemos dizer ou falar que há uma alteridade como se verá depois, ou seja, são formas diferentes de ser, de estar: “dois modos de existência”, mas não há separação essencial, mas secundária – uma religião, uma crença numa perspectiva genuína não pode criar dicotomias entre o Sagrado e profano; entre Divino e humano como alteridades absolutas, mas relativas. O que se espera é uma atitude de relação entre estas “duas” dimensões, duas alteridades que se experimenta em único espaço, única realidade: o mundo em que vivemos; em nossa existência concreta.

O autor Mircea Eliade em seu livro: O Sagrado e o Profano (2010) nos apresenta o Sagrado e o profano como duas modalidades de se estar no mundo, de nos relacionarmos com os outros, com a natureza. Diz ele:

O sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história. Esses modos de ser no Mundo não interessam unicamente à historia das religiões ou à sociologia, não constituem apenas o objeto de estudos históricos, sociológicos, etnológicos. Em última instância, os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou no cosmo e consequentemente, interessam não só ao filosofo, mas também a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões da existência humana. (p. 20).

            Para este autor são dois modos de estarmos no mundo, duas atitudes frente à realidade que nos cerca, se apresenta. Não existem dois mundos, não existem duas alteridades absolutas, mas existem duas maneiras, duas modalidades de se estar no mundo de forma diferente, enquanto alteridades. Neste sentido não se quer negar a importância de nenhum desses modos de estar no mundo. Aqui não existe dicotomia onde uma parte nega a outra ou estão separadas em polos extremos; mas uma distinção qualitativa e não valorativa do modo de se estar presente, de uma atitude frente ao mundo, aos existentes ao nosso redor.

No entanto, o que se percebe é que em muitos homens e mulheres religiosos; ou seja, pessoas que professam uma crença religiosa, há uma separação, existem dicotomias muitas vezes extremas. Desta forma acontece fechamento e isolamento para se viver no encontro real; à relação dialógica entre alteridades, viver em um mundo “real”. O “mundo” se torna algo perigoso, ele é a negação de Deus. Percebe-se muito a relação da dicotomia platônica, o mundo real como sendo o mundo das ideias, suprassensível, o mundo da alma; e do outro lado, o mundo sensível que nos engana, que o é mundo material, o corpo, as relações. Prevalece muito forte a divisão entre mundo espiritual e mundo material; e com um agravante: o mundo do espírito é a mais verdadeira e mais importante, e assim se nega a viver o que o “mundo da vida” oferece.

Como lembramos, o mundo da vida é visto como aquele que impossibilita viver o encontro com o Divino, com Deus. Esta é uma forma de se viver com dicotomias. No Novo Testamento, podemos encontrar passagens que podem sugerir esse tipo de dicotomia, quando se faz interpretações de forma isolada, textualmente sem levar em conta toda a dinâmica da vida de Jesus. Muitas dessas citações são usadas para alienação e fuga do mundo e da realidade. Passagens como: “Não ajuntem riquezas aqui na terra, onde a traça e a ferrugem corroem, e onde os ladrões assaltam e roubam. Ajuntem riquezas no céu, onde os ladrões não assaltam nem roubam. De fato, onde está o seu tesouro, aí estará também seu coração”. (Mt. 6: 19-21).

Neste texto, temos a tendência de fazer uma ligação direta com o pós-vida, o céu na outra vida. O que Jesus nos fala é da relação que estabelecemos aqui mesmo, na nossa realidade, ou seja, não devemos colocar nossa vida, todo nosso ser, nossa existência na busca desenfreada por bens, nos alienando, perdendo o sentido maior da existência. Podemos entender isso em relação com o “Ter e o Ser”. O que o texto nos aponta é que viver mais para o ser (ser aqui no sentido de plenitude) do que para o ter.

A seguir agora de forma breve examinemos como a alteridade é vista no Antigo Testamento.

 

1.5 O Mito de Adão na perspectiva da alteridade enquanto condição de uma relação genuína: uma compreensão pré-ontológica da relação Eu-Isso, Eu-Tu e Eu-Tu eterno

           

O mito da queda numa perspectiva da relação nos apresenta a condição pré-ontológica da alteridade como possibilidade de um verdadeiro diálogo Eu-isso, Eu-Tu e Eu-TU eterno. Vimos anteriormente como Heidegger nos mostra a grande importância do mito, quando fundamenta o ser da presença como cura se valendo da fábula de Higino 220.

Buber (2001) nos fala que o mundo da relação se realiza em três esferas, a saber: a primeira é a vida com a natureza; segunda é a vida com os homens e a terceira é a vida com os seres espirituais. Diz ele:

O mundo da relação se realiza em três esferas. A primeira é a vida com a natureza. Nesta esfera a relação realiza-se numa penumbra como aquém da linguagem. (...). A segunda é a vida com os homens. Nesta esfera a relação é manifesta e explicita: podemos endereçar e receber o Tu. A terceira é a vida com os seres espirituais. (p. 53).

O mito bíblico nos narra este mundo da relação do homem. Diz o mito: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras...” (Gn. 1: 26ss.). Aqui podemos falar que esta forma de relação existe do homem com a natureza, existe a “necessidade” de uma relação Eu-Isso, pois o homem precisa se alimentar, se manter. Porém, é necessário também um certo cuidado com essa natureza, uma relação racional para que não haja um desequilíbrio entre a natureza e o homem. A segunda dimensão da relação é entre o homem e mulher, ou seja, entre um Eu-Tu, entre homens. A relação já se dá no encontro de um Eu-Tu. Vejamos:

O homem deu nome então a todos os animais, às aves do céu e feras. Mas o homem não encontrou uma auxiliar que lhe fosse semelhante... Depois, da costela que tinha tirado do homem, Javé Deus modelou uma mulher, e apresentou-a para o homem. Então o homem exclamou: “Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne... Por isso, o homem deixa seu pai e sua mãe, e se une a mulher, e eles dois se tornam uma só carne”. (Gn. 2: 20-24).

Neste texto se percebe esta outra forma de relação: não há dominação, mas há igualdade. Aqui o homem reconhece seu outro igual, a relação é de encontro genuíno, de envolvimento, ponto de unidade; “Os dois formaram uma só carne”. É interessante perceber primeiro a alegria do homem neste encontro, nesta forma de relação em que acontece a relação Eu-Tu.

Outro detalhe desse encontro de um Eu-Tu a relação não cria estados de dominação, ou exploração do outro; uma relação em que o outro tira proveito para si, ou seja, o outro pode estar mesmo nu, mas não terá sua dignidade negada. Diz: “Ora, o homem e sua mulher estavam nus, porém, não sentiam vergonha”. Percebe-se assim que há uma atitude de total respeito na relação de alteridade, há uma relação Eu-Tu em plenitude.

A relação Eu-Tu eterno se dá também no campo das relações afetivas; entre um homem e uma mulher, num encontro de amor: “Quando um homem ama uma mulher de tal modo que ele a torna presente em sua vida, o Tu do olhar dela lhe permite vislumbrar um raio do Tu eterno”. (2001, p. 119).

Buber vai mais além ao afirmar que em cada uma delas pode se dar a relação com o Tu-eterno. Diz: “Em cada uma dessas esferas, graças a tudo aquilo que se nos torna presente, nós vislumbramos a orla do Tu eterno. (p. 53). Portanto, mesmo uma árvore podemos entrar em uma relação: “A árvore permanece, em todas estas perspectivas, o meu objeto tem que seu espaço e tempo, mantém sua natureza e sua composição. Entretanto pode acontecer (...). Eu seja levado a entrar em relação com ela”. (Ibid, p. 54). 

Zuben (2003) “Tudo aquilo que se apresenta, no mundo, diante do “eu”, pode ser um Tu ou um Isso de acordo com a atitude do “eu”. (p. 119). Aqui se percebe a importância do mito que fornece este solo para a compreensão dessa condição constitutiva do homem de se colocar diante da vida na condição da relação Eu-isso, Eu-Tu e Eu-Tu eterno. O Homem se coloca nesta condição, escolha, decisão de uma atitude para uma relação de Eu-isso, Eu-Tu e Eu-TU eterno. No mito, a relação entre uma forma ou outra de relação é dada ao homem – ele é quem escolhe, toma a decisão, é livre e responsável naquilo que decide. Deus não impõe caminho nem uma das escolhas, a decisão é exclusiva do homem. São duas formas de atitude diante da existência que o homem vai construindo seu existir: uma se dá numa relação como Martin Buber classifica em uma relação Eu-Isso e a outra numa relação Eu-TU.

O mito nos faz compreender que a decisão de viver uma forma ou outra frente ao mundo é de exclusividade de cada sujeito na sua singularidade – Deus não intervém, o homem é livre para escolher e também assumir responsabilidades diante do projeto e decisões que toma. Cabe a cada um a escolha de vivenciar as três possibilidades frente ao mundo; na sua existência: viver a relação Eu-Isso; Eu-Tu e o Eu-Tu eterno.

A todo homem lhe é constitutivo esta três formas de relação; a ele cabe à decisão, a escolha. Os homens que se definem religiosos, que tem uma crença manifestam a busca e o desejo de viver a dimensão com o Eu-Tu eterno, estão dentro dessa possibilidade de se abrirem para essa relação se colocando frente ao mundo como um ente que busca essa integração em todas as dimensões com o mundo em que está presente, um desejo de unidade em que sente com o Outro Absoluto.

A terceira é esse diálogo com o Eu-Tu-eterno. Ela acontece no entre quando o homem se encontra na relação Eu-Tu entre os entes, entra na relação Eu-Tu eterno; estado de plenitude do encontro.  

1.6 Eu-Isso, Eu-Tu e Eu-Tu eterno enquanto relação de alteridade

Segundo Veríssimo (2010), Buber nos traz uma modalidade em que a experiência religiosa, o sagrado, pode acontecer inscrever-se na relação Eu e Tu: “Na leitura de Martin Buber, chamou-nos a atenção a apresentação de uma determinada modalidade da experiência religiosa em que o sagrado se inscreve como relação, quer isso dizer: ele é constituído na relação Eu e Tu” (p. 57).

Nestas palavras compreendemos que estamos numa proposta de que não se entendera o sagrado como uma realidade fora, exterior a nós homens e mulheres, mas o sagrado acontece na relação, no entre. Aqui há uma nítida separação ou distinção com a perspectiva apresentada em Otto (2007); já que para este o sagrado está fora. Há uma dicotomia entre as duas dimensões do sagrado e do profano. Ainda para Veríssimo: “Otto descreve uma imagem do sagrado segundo a forma dicotômica que marca uma rigorosa separação entre o eu e a realidade objetiva, ou melhor, entre um eu e um “objeto” exterior a ele, o sagrado, com o qual o eu se depara”. (Idem). Ou seja, o sagrado está fora em Otto (2007); enquanto para Buber: Ele está; Ele é em relação que acontece entre um Eu e um Tu: “As linhas de todas as relações, se prolongadas, entrecruzam-se no Tu eterno. Cada Tu individualizado é uma perspectiva para ele. Através de cada Tu individualizado a palavra - principio invoca o Tu eterno”. ( 2001, p. 99).

Para Buber, “O Eu se realiza na relação com o Tu; é tornando Eu que digo Tu. Toda vida atual é encontro. (Ibid. 57). Assim podemos dizer: no começo é a alteridade. Portanto, podemos  dessa forma dizer que é na alteridade que pode acontecer uma relação dialógica. A relação está fundada na alteridade: só haverá um Eu, uma singularidade na relação com o Tu; ou seja, o Eu e o Tu são frutos dessa relação que acontece no encontro.

Buber (1982), tudo pode ser minha alteridade e permitir uma relação com um Tu. É dessa forma que encontramos em seu livro Do Diálogo e do Dialógico: “Não é somente outro homem que se torna um Tu para mim – pode ser um animal, uma árvore, até uma pedra e, através de todos esses, Deus, o Tu Eterno”. (p. 8). Ou seja, Buber caminha por outra via mostrando que para haver um encontro dialógico não pode haver uma alteridade compreendida como o “Totalmente Outro” na perspectiva de Otto (2007). Ainda para Buber a experiência do Tu acontece se o homem não se fechar à alteridade. Diz ele: “[...] Porque o homem só pode experienciá-lo quando não se fecha à alteridade, à primitiva ôntica do outro (à primitiva alteridade do outro que, naturalmente, mesmo em se tratando de Deus, não se deve restringir a uma “total alteridade”)” (1982, p. 85).

Para ele, uma religião genuína deve promover o encontro, a relação com o outro; e este outro é encontrado no cotidiano, nas relações concretas. A minha experiência de relação com o Tu eterno, deve me levar à alteridade com os outros Tus e também me levar a suportar as adversidades da vida.

            Paulo Dalgalarrondo (2008) nos fala dessa importância da religiosidade nos reveses da vida:

Há certo consenso entre cientistas sociais, filósofos e psicólogos socias de que a religião é uma importante instância de significação e ordenação da vida, de seus reveses e sofrimento (p. 16). 

Nestas palavras percebemos o quanto à experiência religiosa não é algo fora da vida, da minha relação com os outros; não sou um alienígena que vive em outro planeta, outro mundo. Isto é presente nos evangelhos: “Se alguém diz: Eu amo a Deus, e, no entanto, odeia o seu irmão, esse tal é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê”. (1 Jo. 4: 20). Ou seja, do amor ontológico para o amor ôntico: o crente que vive uma religião autêntica na perspectiva buberiana, não pode fugir da relação com o outro; das realidades do cotidiano. O Tu eterno se encontra na relação com cada Tu que entro em contato. Portanto, para Buber (2001) a relação ou o diálogo com o Sagrado, com Deus se dá no mundo, na cotidianidade, é assim que o mesmo quer que entendamos quando o mesmo fala do diálogo entre o homem e Deus: “Todavia, deve-se, acima de tudo, evitar interpretar o diálogo com Deus, o diálogo sobre o qual eu falei neste livro e em quase todos que o seguiram, como algo que ocorresse simplesmente à parte ou acima do cotidiano”. (p. 138).

Segundo o filósofo Lévinas, que coloca a dimensão da religião como relação ética, isto é, não se pode pensar uma religião sem ética; não se pode encontrar o Divino senão no outro; não se pode falar com o Divino senão através de outra pessoa. Não se pode ser ético com o Divino e aético com a pessoa. O filósofo Lévinas de certa forma proclama a vivencia ética apresentada na primeira carta de São João: “Se amo a Deus devo amar o irmão”.

B. C. Hutchens (2009), comentando o filósofo Lévinas diz: “De modo geral, nosso relacionamento com um deus é um relacionamento ético. Ele é expresso por meio do relacionamento com outra pessoa. Um deus fala ao eu por meio de outra pessoa” (2009, p. 160). E ainda: “’A religião é ética’ significa, em primeira instância, que é por meio das responsabilidades éticas que estamos em contato com um deus”. (p. 160).

Para Jesus também não se pode compreender uma relação com Deus sem estar comprometido com o irmão. Não posso me reconciliar com Deus se primeiro não me reconcilio com o meu irmão: “Portanto, se você for até o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que o seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe a oferta aí diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu irmão; depois volte para apresentar a oferta”. (Mt 5, 23-24). O julgamento final (juízo final) também não foge da proposta, desta temática da exigência ética: “Pois estava com fome, e vocês me deram de comer, eu estava com sede, e vocês me deram de beber, eu era estrangeiro, e me receberam em casa, eu estava sem roupa, e me vestiram”. [...]. (Mt. 25: 35-36).

Não faltam no Novo Testamento passagens que nos levam a essa constatação ou estabelecer essa relação entre as atitudes de Jesus com um compromisso ético: sua relação com o Pai, com Deus se dá na relação com as pessoas. Ele rejeita muitos grupos de sua época, pois eles adoravam, tinham sua religião ou relação com o Divino baseados na tradição, na Lei. Entre eles estavam os Escribas, Fariseus. Uma parábola que expressa muito bem a postura ética de Jesus e sua forma de viver sua fé é a historia do bom Samaritano, na qual a religião é expressão do encontro, do cuidado com o outro. O texto diz assim:

Certa ocasião, um perito na lei levantou-se para pôr Jesus à prova e lhe perguntou: "Mestre, o que preciso fazer para herdar a vida eterna?" "O que está escrito na Lei?", respondeu Jesus. "Como você a lê?" Ele respondeu: " 'Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento' e 'Ame o seu próximo como a si mesmo'".  Disse Jesus: "Você respondeu corretamente. Faça isso e viverá". Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: "E quem é o meu próximo?" Em resposta, disse Jesus: "Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos de assaltantes. Estes lhe tiraram as roupas, espancaram-no e se foram, deixando-o quase morto. Aconteceu estar descendo pela mesma estrada um sacerdote. Quando viu o homem, passou pelo outro lado. E assim também um levita; quando chegou ao lugar e o viu, passou pelo outro lado. Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele. Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte, deu dois denários ao hospedeiro e lhe disse: 'Cuide dele. Quando eu voltar, pagarei todas as despesas que você tiver'. "Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?" "Aquele que teve misericórdia dele", respondeu o perito na lei. Jesus lhe disse: "Vá e faça o mesmo". (Lc. 10: 25-37).

Neste texto percebe-se claramente que a minha relação com Deus está ligada à relação com o outro, com as pessoas, se dá no encontro e no cuidado. Dentro deste espírito de que a crença em Deus se dá na abertura do encontro, do contato com o outro, Hutchens (2009), comentando Lévinas diz: “Podemos nos entregar a ele ou até nos aproximar dele, embora, na verdade, afirma Lévinas, é o deus que se aproxima de nós. O “a Deus” nos chama para a outra pessoa, se aproxima de nós através dela e nos faz responsável por ela”. (p. 164).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO II

GESTALTTERAPIA E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA: POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES

A descrença, ainda que possa ser fruto de reflexão madura, pode também ser uma reação contra a autoridade dos pais ou da tribo, ou pode ainda ser devida a um desenvolvimento intelectual unilateral que exclui outras áreas da curiosidade normal. (Gordon. W. Allport, 1966, p. 129).

No primeiro capítulo buscamos apresentar uma compreensão do Divino, de Deus como aquele que é “Totalmente Outro”, diferente de tudo e de todos, como uma alteridade absoluta que criaria dificuldades para um encontro dialógico. Entretanto, refletiu-se o Sagrado, o Divino como um “Totalmente Outro” mas não no sentido de Rudolf Otto (2007), uma alteridade absoluta que leva à negação do humano, aquele que anula o outro, as partes, isto é, onde o numinoso entra a parte do humano se anula. É uma alteridade absoluta; Outro Totalmente independente das partes. Essa forma de compreensão do Sagrado não nos ajuda no nosso objetivo, pois estabelece distanciamento, separações, dicotomias. Não há espaço para uma Gestalt; isto é, o Todo enquanto conjunto das partes que se unem para formar a Totalidade.

Esta dicotomia é afirmada por Veríssimo (2010) quando diz: “Otto (2007) descreve uma imagem do sagrado segundo a forma dicotômica que marca uma rigorosa separação entre o eu e a realidade objetiva, ou melhor, entre um eu e um “objeto” exterior a ele, o sagrado, com o qual se depara”. (2010, p. 57). Ainda para este mesmo autor se cria aí uma cisão. Assim procuramos delimitar o que é para todas as religiões o seu eixo principal; sua essência: a crença numa divindade, numa força exterior, numa energia; como uma alteridade “relativa”. Uma alteridade que permita relação; que inclui. Buscamos mostrar que só a partir de uma divindade, do numinoso como uma alteridade “relativa” e não absoluta, pode acontecer uma relação dialógica possibilitando uma Gestalt entre Deus e o humano.

Neste capítulo, nos propomos a discutir sobre algumas modalidades dentro do campo das experiências religiosas e da clínica psicológica numa tentativa de fazer possíveis aproximações entre elas. Neste sentido, será necessário se fazer uma releitura de algumas modalidades principalmente da experiência religiosa que muitas vezes foram mal compreendidas tanto pelo religioso quanto pela psicologia e que precisam ser recolocadas como possibilidade de permitir estas aproximações; se não mal compreendidas, foram usadas como justificativa para se negar o outro, não estabelecer uma relação entre ambas.

Para iniciarmos nossa reflexão sobre as possíveis aproximações entre a gestaltterapia e a experiência religiosa, numa tentativa de se procurar uma integração que permita entre estas duas dimensões um encontro no qual cada um, permanecendo com sua identidade, com sua finalidade e metodologias próprias, possa através de um diálogo e sem se excluírem ajudar o ser humano a viver a sua totalidade; integrar as partes que permitem a totalidade do humano. Entendemos ser necessário definir qual nossa perspectiva quanto à gestaltterapia que permita a inclusão da dimensão do Sagrado sem prejuízo para nenhuma das partes: nem a psicoterapia enquanto uma aplicação de uma técnica, e a dimensão religiosa enquanto a experiência que cada pessoa faz com o transcendente, com este “Totalmente Outro” a que já nos referimos anteriormente.

Portanto, faz-se necessário reafirmar a que se propõe nossa reflexão na busca de integração e diálogo entre a Gestaltterapia e a experiência religiosa. Quando propomos um caminho de experiência religiosa que esta dentro de uma perspectiva buberiana em que não há dicotomia entre o Divino, o Sagrado com sua criação, com o mundo, não se quer com isso afirmar este caminho como único, nem que se “deveria” adotar tal modelo. A Gestaltterapia rejeita qualquer possibilidade de enquadramentos, de deverias. O papel do gestaltterapeuta é de ajudar ao cliente entrar em aweness; faze-lo compreender se a partir de uma perspectiva de certa modalidade de experiência religiosa, ele está se alienando, negando suas reais necessidades. Assim, entendendo que o objetivo da Gestaltterapia é ajudar o cliente a se dar conta, estar consciente de como está fazendo, agindo; e que a sua forma o está impedindo, inviabilizando um bom desenvolvimento; logo nosso propósito é apontar apenas um caminho de compreensão do fenômeno da experiência religiosa que possibilita uma proximidade com a Gestaltterapia.

Yontef (1998) nos diz que: “A metodologia da Gestalt-terapia e da terapia psicodinâmica usa um relacionamento de aceitação e uma tecnologia para ajudar o paciente a mudar por meio de autocompreensão cognitiva e emocional”. (p. 20). E ainda para o mesmo autor: “A metodologia da Gestalt-terapia utiliza técnicas ativas para esclarecer a experiência”. (p. 21). Portanto, cabe ao gestaltterapeuta esclarecer a experiência e cabe ao cliente decidir que rumo tomar.     

Queremos assim iniciar buscando alguns pontos possíveis de aproximação entre a dimensão da experiência religiosa e a psicoterapia, a partir de seus fundamentos. Podemos dizer que as mesmas: a dimensão religiosa e a terapia não têm separação e sim proximidade. No passado não havia antagonismos; pois cuidar da saúde era cuidar da psique, do espiritual; isto é, cuidar do todo, da pessoa em sua totalidade e não das partes como se percebe hoje: cuida-se de forma fragmentada, ou seja; da psique, do corpo e do espiritual; como instâncias independentes - a fonte dos primeiros terapeutas era a Bíblia; faz-se importante ressaltar.

Em função disso, vamos nos apoiar nas relações do Eu e Tu de Buber onde não existem antagonismos, dicotomias na relação entre Deus e o homem; mas acontece na relação de contato, Ele é presença e acontece na relação com os entes, com cada pessoa.

 

2.1 Os Primeiros “Terapeutas” e sua Escuta

Quem nos falou primeiro sobre o termo “terapeuta” foi o filósofo judeu Fílon de Alexandria. Sabe-se pouca coisa de concreto a respeito da vida deste autor. Por exemplo, exatamente o período em que ele viveu. Para Leloup (2004) provavelmente pode-se situar seu nascimento entre os anos 20 e 10 a.C. Diz Leloup:

Devemos, portanto, contentar-nos com uma larga margem de imperfeição e situar seu nascimento entre 20 e 10 a.C. A vida de Fílon termina depois dos anos 39 e 40 da era cristã, data da deputatio  (deportação) a Calígula. Fílon é, portanto, contemporâneo de Cristo, mas em seus escritos não se encontra nenhum eco do que passava então na Galileia”. (p. 18).

Para este mesmo autor os terapeutas eram homens e mulheres que sabiam interpretar as Escrituras, a palavra de Deus. Significa que a fonte de inspiração dos primeiros terapeutas era a escritura. Comentando os trabalhos de Gilberto Durand e de Henry Corbin, diz Leloup:

A Bíblia, para eles, é um livro aonde o inconsciente vem se “recarregar”, alimentar-se de imagens e símbolos que podem ajudá-los a viver, a dar sentido a acontecimentos pessoais e coletivos que nenhuma aproximação puramente racional consegue justificar. Tratar-se-ia, pois, de ler a bíblia e os textos sagrados como textos do inconsciente, e não pedir a eles razões ou explicações, mas uma orientação e um sentido (2004, p. 16).

                Inconsciente aqui está no sentido junguiano, ou seja, imagens e símbolos que se tornam modelos, “arquétipos”, para serem imitados, seguidos. Exemplo: Abraão, símbolo e arquétipo do homem de fé; aquele que acredita; que caminha porque Deus prometeu realizar uma promessa da conquista de ser uma grande nação: “Javé disse a Abrão: saia de sua terra, do meio de seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. Eu farei de você um grande povo, e o abençoarei; tornarei famoso o seu nome, de modo que se torne uma bênção”. (Gn. 12: 1-2).

O termo terapeuta no tempo de Fílon tinha muitos sentidos; é o que nos fala Leloup:

Therapeutes pode apresentar os dois sentidos principais do verbo do qual provém: ‘ servir, cuidar, render culto’ e ‘ tratar, sarar’. Em Platão, autor de referência para Fílon, therapeutes tem estes dois sentidos. Em Górgias, no inicio de sua carreira, Platão qualifica um cozinheiro, um tecelão, como therapeutes somatos: ‘que cuida do corpo’. Mas quando em Leis, na avançada velhice do filosofo, ele qualifica o filho como ‘servidor dos deuses, da família e da cidade (2004, p. 24).

Portanto, no tempo de Fílon, o terapeuta é um cozinheiro, ele cuida do corpo, cuida da alma, cuida dos deuses; aquele que sabe orar pela saúde dos outros, pois ele não cura, ele ora e cuida. Mas para Leloup (2004) este orar não é como se vê hoje em dia, uma simples recitação de palavras e preces: “Para o terapeuta, portanto, orar não é tanto recitar preces e invocações, mas ter seu ser no Ser a fim de que sua Presença se difunda ou se interiorize através dele na pessoa mal-aventurada” (p. 34). Dessa forma, quando se afirma que os terapeutas não “curam”, mas cuidam é uma maneira mais ampla de se entender a saúde. Muitos entendem saúde quando o nosso corpo pode exercer suas funções fisiológicas, suas atividades do cotidiano: fazer a comida, trabalhar, praticar esportes; e a doença como aquilo que nos impossibilita realizar estas atividades. Na Gestaltterapia, igualmente a saúde é vista de forma mais ampla. Assim diz Rodrigues (2000):

Na Gestalt-Terapia, a saúde implica em um reconhecimento da capacidade do individuo em manter-se em contato com seu contexto, podendo – dentro de um processo de escolha espontâneo – optar sobre a melhor forma e o momento de efetuar suas trocas com seu mundo [...] Saúde implica em um movimento para a vida – não para o consumo, uso ou desperdício – mas para o contato, para as trocas [...]. (p. 47).

            Esta forma de entender a saúde de maneira ampla, também é partilhada na cultura hebraica, no tempo de Jesus, na sociedade de que o mesmo fazia parte. A cura não era só de um sintoma corporal, e sim de toda a pessoa, era uma maneira de integrar o “doente” no contato com o mundo, com a vida. No Evangelho de S. Lucas, temos a cura de um paralítico onde ele é colocado no “meio”, significando a sua integração com o mundo, com a sociedade; ele é incluído. Diz: “Chegaram, então, algumas pessoas levando, numa cama, um homem que estava paralítico; [...]. Subiram então ao terraço e, através das telhas, desceram o homem com a cama, no meio, diante de Jesus”. (Lc. 5: 18-19). Quando também nos fala que cuida da alma, que se entenda “alma” no sentido mais amplo, ou seja, da dimensão da psique humana; e não na forma dualista de corpo alma, espírito e matéria, mas no sentido dado pelos orientais, isto é, o que é a pessoa, seu ser, sua maneira de existir, do fazer contato com seu mundo.

Fílon define os terapeutas em primeiro lugar como aqueles que amam a sabedoria, são filósofos, sua forma de cuidar é “superior”, pois cuidam da alma, do psiquismo:

O próprio nome desses filósofos, que chamamos de terapeutas, revela o seu projeto, em primeiro lugar porque a medicina (iatriké) que professam é superior àquela que vem sendo exercida em nossas cidades; esta só cuida do corpo, mas a outra cuida também do psiquismo, atormentado por essas doenças dolorosas e difíceis de curar (...). (Fìlon, apud in, Leloup, 2004, p. 69).

Para Fílon, caberá ao terapeuta a função de ‘desatar’ os nós da alma, esses obstáculos à vida e à inteligência criadora, o grande terapeuta seria aquele que domina perfeitamente o mundo das paixões e dos atrativos desordenados do prazer. Fílon considera Moisés o grande terapeuta:

O legislador (Moisés), que é um médico perfeito das paixões e das afeições mórbidas da alma, teve na vida uma única tarefa, um único fim: extirpar as doenças do pensamento, com suas próprias raízes, a fim de que não restasse mais nada para produzir uma semente de doença incurável. (Fílon, apud Leloup, 2004, p. 78).

Serge Ginger (2007) nos lembra ainda que:

Não devemos esquecer que os primeiros “terapeutas” não eram pessoas que se dedicavam a cuidar, mas escravos responsáveis pela manutenção das estatuas dos deuses em bom estado; depois, padres encarregados de analisar os textos sagrados. Essas duas funções consistiam em reforçar os laços entre os deuses e os homens, isto é, os Céus e a Terra, entre o espírito e a matéria, entre o Verbo e a carne. Originalmente, a terapia buscava, pois a harmonia psicossomática e não os cuidados médicos. (p. 18).

Os terapeutas buscavam viver em harmonia. A harmonia para eles era sinônimo de saúde; vivem em harmonia se assim podemos chamar entre o fundo e a forma, entre a palavra e o pensamento; entre a parte e o todo, entre o essencial e o existencial. Por isso eles nos convidam a orientar nossos desejos, não excluí-los, extirpá-los, pois somos seres do desejo, por isso deveríamos incluí-los, dar a eles seu lugar, vivê-los de forma harmoniosa. Harmonizar é construir uma relação de diálogo entre alteridades.

Esta forma de unidade, integração, de inter-relação vai mudar com o início da ciência quando há a separação da filosofia das outras áreas do conhecimento. A psicologia também buscou esta condição de ciência. Falamos de forma particular da ciência positivista em que aquilo que não se enquadre dentro da racionalidade; daquilo que nos possa submeter à experiência laboratorial, quantificável, mensurável: não é ciência. Em função disso vão acontecer separações que dificultarão uma relação de diálogo e proximidade entre ambas: a psicoterapia e a religião, ou seja, elas são entendidas como antagônicas.

Dentro dessa discussão, as relações de proximidade entre psicoterapia e a religião, vale a pena trazer algumas observações de Viktor Frankl (1992). Malgrado os esforços que o autor fez no sentido de aproximar estes dois fenômenos, faz a seguinte observação: “O alvo da psicoterapia é a cura da alma (seelische Heilung), ao passo que o alvo da religião, por seu turno, é a salvação da alma (Seelenheil)”. (p. 59).

Nestas palavras pode-se entender que a religião não tem nenhuma preocupação com o aqui e agora da nossa vida, que a religião deve se voltar para a outra vida após a morte. Cabe a ela o depois; o cuidado no pós-morte, uma vida no além. Esta tentativa de distinção entre ambas pode criar um abismo, gerar duas extremidades. Nesta busca de separar os dois campos; pode ser entendido como um afastamento em dois mundos, certa dicotomia: corpo e alma, matéria e espírito; ou seja, que cada uma cuida de coisas totalmente diferentes e distantes.

Entendemos neste sentido que tais distinções podem gerar muita confusão e não ajudar na nossa busca de aproximação: “Cura do corpo e salvação da alma”; como duas coisas separadas: o mundo do aqui e agora e um “mundo outro”, fora, ou seja, um pós-morte. Como temos mostrado, a religião cuida da cura, isto é, cura enquanto cuidado. A dimensão religiosa, a vivência é cuidar já aqui, no agora. Não se pode negar que esse tipo de distinção tem levado a dificuldades no movimento aproximações entre ambas.

Considerando o contexto em que Viktor Frankl viveu, ou seja, um momento de negação entre a ciência em acolher a dimensão religiosa, gerou um grande preconceito. Sua tentativa de distinguir ainda é presente em muitos espaços não só religiosos como nos acadêmicos. Sabemos que essa expressão não corresponde ao conjunto do seu pensamento, pois Viktor Frankl buscou construir a tolerância recíproca, um respeito às alteridades tão necessário e indispensável numa era de pluralismo segundo ele mesmo proclama. O autor por outro lado, visa a uma aproximação, uma integração quando nos diz: “O que nós, psiquiatras, podemos e devemos fazer é a continuidade do diálogo entre religião e psiquiatria, no sentido de uma tolerância recíproca tão indispensável numa era de pluralismo” (1992, p. 89). Dessa forma, o seu pensamento nos traz grande contribuição para a prática clínica, ajudando a quebrar os preconceitos entre psicologia e religião; entre o terapeuta e o religioso, pois os dois podem ser muito beneficiados.

O pensamento de Viktor Frankl nos mostra o quanto é difícil esse diálogo. Sua expressão “tolerância” mostra muito bem ainda a distancia entre as duas temáticas: a psicologia e a religião. Vejamos uma outra afirmação de Viktor Frankl que, diríamos, nos propõe essa aproximação. Ele nos diz que mesmo com fins e intenções diferentes, elas podem contribuir para a cura e o bem-estar geral de cada pessoa que procura ajuda; acrescenta que a religião pode mesmo ter efeitos psicoterápicos; ou seja, não seria só para a “Salvação da alma”, Diz ele:

Por menos que a religião se preocupe em suas intenções primárias com a cura psíquica ou com medidas profiláticas, em seus resultados – não em sua intenção – ela não deixa de ter efeitos psico-higiênicos e até psicoterapêuticos, uma vez que propicia à pessoa uma sensação de incomparável proteção e ancoramento que não pode ser encontrada a não ser na transcendência, no Absoluto. Semelhante efeito colateral, análogo e involuntário, também podemos observar na psicoterapia, uma vez que, em alguns casos, o paciente reencontra ao longo da psicoterapia fontes, há muito soterradas, de uma fé original, inconsciente e reprimida. (Ibid., 59).

Acrescentamos que fica assim evidenciado no pensamento de Viktor Frankl esta proximidade, ou seja, que a dimensão religiosa tem efeitos psicoterápicos e que a psicoterapia pode ajudar a resgatar o sentido a partir da dimensão religiosa. Assim, se pode compreender como estas duas dimensões juntas podem ser instrumentos facilitadores para a cura e o bem- estar da saúde mental. Portanto, podemos pensar que respeitando seus espaços e fins específicos, podem construir uma proximidade, uma integração, e assim construir um diálogo verdadeiro promovendo inclusão.  Portanto, queremos buscar caminhos ou no mínimo convidar a refletir sobre nossa postura e compreensão da relação entre espiritualidade e clínica psicológica.

Fromm em seu livro Psicanálise e Religião (1962), nos mostra que a saúde mental não pode ser divorciada da moral, pois o paciente sofre por ter negligenciado as exigências de sua alma. Dessa forma, o autor vai nos mostrar que não deveria haver uma rejeição da parte da psicologia para com a religião e vice-versa. Ambas podem ajudar o homem na sua busca por realização e saúde mental. Para o autor, “O analista não é teólogo nem filosofo, mas, como médico da alma, preocupa-se com os mesmos problemas da filosofia e da teologia – a alma humana e sua cura”. (p. 11). Ainda o mesmo autor faz essa diferenciação: “O psicanalista estuda a realidade humana que orienta a atitude religiosa, do mesmo modo que investiga os componentes emocionais que se ocultam sob sistemas não religiosos”. (Ibid p. 13).

Para Fromm (1962), o intercâmbio, a proximidade entre as duas, os interesses do religioso e do psicólogo convergem quando, a saber, se uma religião ajuda ou não a desenvolver as potencialidades humanas:

Embora possa parecer curioso, os interesses do religioso devoto e do psicólogo convergem no que diz respeito a êste aspecto. O Teólogo investiga os postulados específicos, tanto da sua como das outras religiões, porque se preocupa com a verdade da sua crença, em contraposição às outras. Do mesmo modo, o psicólogo deve estar vivamente interessado no conteúdo da religião, porque é importante para ele saber qual a atitude emocional que se exprime pela religião, e quais os efeitos positivos e negativos que determinada crença tem sobre o homem. (p. 35-36).

Interessa-nos refletir se caberá ao psicólogo compreender se tal imagem, a relação que o religioso estabelece com o sagrado, lhe permite entrar em contato com as pessoas, com a natureza e o mundo do aqui e agora; ou, pelo contrário, se o impede de viver o contato e a relação dialógica. Obviamente, não caberia ao psicólogo negar a crença, mesmo quando está é causadora de impedimento do crescimento; mas fazer a pessoa do religioso perceber que sua forma de relação e compreensão do sagrado está lhe impedindo de estabelecer relações que possibilitem a saúde.

 

2.2 Gestalt e experiência religiosa: buscando proximidades

É de suma importância para a nossa busca na tentativa de apontar proximidades entre a dimensão religiosa e a Gestaltterapia, fazermos algumas delimitações das temáticas que aqui estamos nos propondo.

Nossa perspectiva e compreensão quanto à espiritualidade como já observamos anteriormente se diferencia de uma perspectiva que se baseada em uma alteridade totalmente absoluta; que nos coloca limites e dificuldades para se estabelecer um diálogo entre o humano e o Divino; entre a religião e Gestaltterapia. Lembramos que partimos da concepção buberiana de compreensão da experiência religiosa que acontece no encontro e no contato  dialógico entre o Eu e Tu. Assim a experiência religiosa acontece em um processo dialógico.

Gary M. Yontef (1998) nos ajuda a compreender a nossa perspectiva quando diz: “A noção de espiritualidade da Gestalt-terapia estaria mais próxima de Martin Buber, na qual não há Eu isolado do Eu-Tu ou do Eu-Isso, no qual o diálogo entre Deus e o homem depende do diálogo pessoa-a-pessoa, e o diálogo pessoa-a-pessoa só pode existir no contexto do diálogo entre a humanidade e Deus”. (p. 129).

Lembra-nos Veríssimo (2010): “Deixando de lado o ser humano, a concepção que só reconhece o sagrado como um “totalmente outro” isola ambas as instâncias, o sagrado e o humano, tornando inviável uma efetiva relação” (p. 51).

Serge Ginger (2007), “Gestalt é um termo alemão [...] Esta palavra é às vezes traduzida por “forma”. (p. 15). Ainda para este mesmo autor “A Gestalt desenvolve uma perspectiva unificante do ser humano, integrando ao mesmo tempo suas dimensões sensoriais, afetivas, intelectuais, sociais e espirituais – permitindo uma experiência global”. (Ibid., p. 22). Pode-se dizer neste sentido que a Gestalt concebe o humano dentro do conjunto, na sua totalidade: tudo incluído, e não excluir partes; ou seja, o todo é a união das partes. A Gestaltterapia é assim uma psicoterapia que busca integrar as partes; isto é, não excluir ou rejeitar as mesmas.

Gary M. Yontef (1998) diz que:

A psicoterapia bem-sucedida consegue integração. Integração exige identificação com todas as funções vitais – não apenas com algumas idéias, emoções e ações do paciente. Qualquer rejeição das próprias idéias, ações ou emoções resultam em alienação. Recuperar a aceitação permite a pessoa ser inteira. (p. 39)

Com estas palavras pode-se dizer que em Gestaltterapia uma das suas principais  preocupações é a integração das parte alienadas do cliente; buscar que o mesmo não rejeite partes e assim se alienando de um contato autêntico.

Jorge Ponciano Ribeiro (2009), diz que: “Podemos definir Gestalt como uma terapia fenomenológico-existencial como terapia do contato, porque, só quando intuímos a totalidade existencial das coisas, entramos, finalmente, em contato com ela” (p. 67). Nestas palavras de Ribeiro é importante perceber que a Gestalt é uma psicoterapia fenomenológico-existencial; que busca a totalidade e que se realiza através do contato: contato e totalidade são palavras chaves para a Gestaltterapia. Ainda para o mesmo autor: “O contato mora na apreensão da totalidade do outro, e é aí que uma Gestalt se torna plena, relacional, cheia” (Ibid., p. 67). Neste sentido já podemos dizer que o contato supõe o estar disponível para o encontro com o outro, e encontro requer abertura para alteridade.

Comentamos que a experiência com o numinoso, com o Divino no Novo Testamento (N.T) passa a se dar através das relações, do contato; e que nos leva a uma atitude ética frente às pessoas e ao mundo. Portanto, nossa compreensão de espiritualidade é uma atitude de abertura, é estar aberto para se viver a experiência de alteridade através do encontro dialógico com os entes, com toda a natureza. Espiritualidade é um estado de vigilância para o encontro e abertura para o diálogo. É estarmos abertos para acolher a diversidade e o diferente, a alteridade. É um estado de abertura para se relacionar com o outro. Podemos assim apontar para uma proximidade entre a Gestaltterapia e a experiência religiosa enquanto ambas levam ao contato. Compartilhamos desta ideia com Ribeiro quando nos diz:

Se Gestalt-terapia é definida como terapia do contato e Espiritualidade é definida como contato pleno, podemos afirmar que Gestalt pode ser também definida como terapia de Espiritualidade. O contato só pode plenificar-se à medida que o sujeito, sem se perder de si, sai de si, de suas expectativas e desejos, e penetra no mundo do outro à busca do ser dele. (Ibid.72).

  

Isto supõe a vivência do encontro com um Outro que está diante de mim, que me “convida” a sair ao encontro: “Sem se perder de si, sai de si”.                                        Segundo Buber, somente na relação com Deus, com o Divino, pode acontecer de forma plena, absoluta a inclusividade e a exclusividade, ou seja, podemos falar em uma Gestalt completa, plena. Diz-nos ele: “Toda relação no mundo é exclusiva; o outro penetra nela e vinga a sua exclusão. Somente na relação com Deus a exclusividade e a inclusividade absolutas se unem numa unidade, onde tudo é englobado”. (Ibid., p. 115). Portanto, para uma Gestalt plena, é necessária a inclusão do Divino; só assim se estabelece a possibilidade da inclusividade do outro de forma absoluta; de sermos plenos; na qual toda a realidade está presente. Neste sentido a dimensão religiosa não se exclui, mas são incluídas em pura relação dialógica: as partes formam um todo; as alteridades são complementares, se entrecruzam, estão englobadas.

O Divino no N.T se dá como uma experiência de alteridade. Esta alteridade se encontra na comunidade, nas relações humanas; no mundo; este é o lugar privilegiado para se estabelecer uma relação com o Divino. Disso nos fala Buber: “Para tanto não é necessário o despojar-se do mundo sensível como um mundo de aparência. Não há um mundo aparente, só existe o mundo que, sem dúvida, se revela duplo, visto que nossa atitude é dupla”. (Ibid., p.100). A nossa relação com o Divino não se dá em uma pura relação de interioridade, intimismo. Aqui lembramos mais uma vez Buber quando observa que o misticismo leva ao distanciamento, à nulidade, ao desaparecimento do Eu, do homem.

Diz Martin Buber (1982):

A relação com Deus, como é pensada pelo misticismo, é, como sabemos, o “desaparecimento” do Eu, e o Individuo cessa de existir quando, mesmo no abandono, não é mais capaz de dizer Eu. Assim como o misticismo não quer permitir que Deus assuma a forma de um servo (...) Como o parceiro da historia que compartilha com ela todo o sofrimento do destino; assim ele proíbe também ao homem, enquanto Individuo, que persiste como tal, de orar verdadeiramente, de servir verdadeiramente, de amar verdadeiramente, como só é possível fazê-lo de um Eu a um Tu; o misticismo tolera o Individuo apenas para que ele se dissolva integralmente. (p. 83).

Nestas palavras de Buber, percebe-se que em certas modalidades de experiência do numinoso, há negação das partes, há uma nulidade; não podendo assim se estabelecer uma relação dialógica já que uma das partes se anula ou são anuladas; não podendo acontecer o encontro do Eu e um Tu.

Veríssimo (2010) reafirma Buber quando nos diz que:

Reentrando no terreno da experiência religiosa, Buber acentua que, embora Deus nos envolva e habite em nós, jamais o possuímos em nós. Tocamos aqui no cerne do modo relacional da experiência religiosa [...] “Eu não sou igual a Deus”, mesmo nas concepções em que se admite que a centelha divina habita no humano, e, ao mesmo tempo, “Deus não é totalmente outro em relação a mim”. (p. 149-150).

Para a Gestalt as partes formam um Todo, estão dentro de uma relação: a parte não se anula num Todo, ela continua parte dentro de um Todo e este Todo é enquanto conjunto das partes – as partes e o Todo se interligam numa interdependência.

Podemos dizer que Gestalt é o Todo das partes e as partes no Todo. É o conjunto de “todos” no Todo; isto é, o Todo é o Todo dos todos. As partes que são também um todo, formam o Todo, a parte é um todo, no entanto não pode ser a Totalidade. Um exemplo dessa relação é imagem do corpo humano como o Todo, a Totalidade. São Paulo na carta aos Coríntios faz essa relação: “De fato, o corpo é um só, mas tem muitos membros; e, no entanto, apesar de serem muitos, todos os membros do corpo formam um só corpo [...]. O corpo não é feito de um só membro, mas de muitos”. (1 Cor. 12: 12-14). 

O corpo humano é o Todo, a Totalidade; ele é composto de suas várias partes, vários órgãos e todos são todos, mas em relação com o Todo do corpo eles são partes deste Todo. A mão quando está fora do corpo, do Todo, ela é um todo e ao mesmo tempo parte. Ela tem uma autonomia relativa, pois ela só pode ganhar sentido, ter maior importância quando está interligada no Todo que é o corpo. Se a mão é cortada, desligada do Todo, isto é, do corpo, adoecerá, morre. O corpo é um exemplo de alteridade em que todos precisam estar em plena relação para poder estar bem. Quando um dos órgãos não estiver funcionando bem os outros também sofrem, podem adoecer.

Está forma de se ver “gestalticamente” já fazia parte da compreensão religiosa do povo Judeu, ou seja; tem origem no universo religioso. Um olhar de forma de Totalidade na qual Deus era o criador de todas as coisas, que Ele ordenou o universo; que todos os fenômenos da natureza eram gerados por Ele; essa era a ideia existente. Em Jesus, encontramos algumas imagens que mostram essa relação entre as partes e o Todo; e de como há uma necessidade de encontrar entre elas a harmonia, de estarem em relação, senão elas adoeceriam.

Uma imagem usada por Jesus que nos lembra dessa relação é da arvore em que se os galhos não estiverem ligados a ela; secam e morrem. Aqui é interessante perceber que ele as utiliza como nossa necessidade de não nos separarmos da nossa dimensão espiritual, de que necessitamos do Divino; de estarmos em relação com o numen. Uma passagem é do Evangelho de São João: “Fiquem unidos a mim, e eu ficarei unido a vocês. O ramo que não fica unido à videira não pode dar fruto. Vocês também não poderão dar fruto, se não ficarem unidos a mim. Eu sou a videira, e vocês são os ramos. (Jo. 15: 4-5).

Podemos assim dizer por analogia que o numen, o Divino é O Todo, a Totalidade e nós somos todas as partes deste Todo; partes que formamos o Todo. Que isso não nos leve a uma compreensão de perda de liberdade, mas que para estarmos de forma plena, precisamos estar ligados no conjunto – o desligar-se leva ao isolamento, à solidão, ao adoecimento e à morte. Mas também o Todo se dá no conjunto das partes, “precisa” das partes para ser o Todo plenamente; ou seja, o “Totalmente Outro” precisa do outro para ser pleno. O cosmo é o conjunto de todos os existentes, dos entes. Com isso queremos dizer que há uma unidade, uma perspectiva unificadora entre o ser humano e o divino. Se os galhos precisam estar ligados no tronco para ter vida, também o tronco “precisa” dos galhos para poder ser árvore em sua totalidade; poder dar os frutos, ou seja, é necessária a integração, a inter-relação para se manifestar em plenitude. Assim Buber (2001) nos fala:

Que necessitas de Deus, mais do que tudo, sempre o sabes em teu coração: porém, não sabes também que Deus necessita de ti, de ti na plenitude de sua eternidade? Como existiria o homem se Deus não tivesse necessidade dele; como tu existirias? Necessitas de Deus para existir e Deus tem necessidade de ti para aquilo que, justamente, é o sentido de tua vida. (p. 104).

Que não se entenda aqui que para o Tu eterno existir o Ser estará “subordinado” ao nosso olhar, à nossa forma de nos relacionarmos com Ele. Como diz Buber:

O Tu eterno não pode, por essência, tornar-se um Isso; pois ele não pode reduzir-se a uma medida ou a um limite mesmo que seja à medida do incomensurável, ao limite do ilimitado. Por essência ele não pode ser concebido como uma soma de qualidades elevadas à transcendência. Não pode tornar-se um Isso. (2001, p. 123). 

Para ele, somos nós em nossa linguagem que podemos colocá-lo na situação do Isso. Por isso, quando construímos relações com os entes só na dimensão do Isso com nossas alteridades; estamos destruindo a possibilidade de sermos plenos, a possibilidade da relação com o outro, com o grande Outro, o “Totalmente Outro”.

Poncian Ribeiro (2009) nos lembra que essa forma de ver na Totalidade é uma forma espiritual e Gestáltica: “Se Espiritualidade é a totalidade plena intuída, experienciada e vivida, e Gestalt é definida como totalidade plena, podemos dizer que totalidade, Espiritualidade e Gestalt se encontram sob o mesmo campo”. (p. 69).

Serge Ginger e Anne Ginger (1995) nos apresentam a Gestalt como um modo de nos colocarmos na vida, uma maneira de nos relacionarmos com as partes e o todo, com nossa totalidade sem negar as dimensões do que somos. Eles dizem que:

A Gestalt, para além de uma simples psicoterapia, apresenta-se como uma verdadeira filosofia existencial, uma “arte de viver”, uma forma particular de conceber as relações do ser vivo com o mundo (...). A Gestalt desenvolve uma perspectiva unificadora do ser humano, integrando ao mesmo tempo as dimensões sensoriais, afetivas, intelectuais, sociais e espiritual. (p. 17)

            As palavras de Serge e Anne Ginger nos chamam a atenção quando nos diz que a Gestalt está para além de uma simples psicoterapia; é uma arte de viver, uma forma de conceber as relações e de se viver no mundo. Assim ela desenvolve uma perspectiva unificadora do ser humano, integrando, ou seja, ela inclui ao mesmo tempo as várias dimensões humanas; ela busca unir, ver o ser humano como uma Totalidade. Neste sentido, a dimensão espiritual é bem-vinda, é acolhida. Isto porque a dimensão espiritual como sendo parte também do todo; isto é, algo que diz respeito à Totalidade do ser humano e a Gestaltterapia, por buscar a Totalidade, acolhe a crença, a espiritualidade. Segundo Ribeiro, a espiritualidade é a Gestalt plena.

Como já lembramos, a nossa compreensão de religião ou a espiritualidade que dela podemos viver ou experienciar não é algo que nos tira do contato com as pessoas nem com o mundo; mas ao contrário, ela nos “impõe”, mostra-nos a necessidade de abertura para o encontro: o divino e o mundo não são realidades antagônicas, polos opostos que se excluem, mas que se entrecruzam em harmonia, que se completam: são realidades de uma mesma fonte: “Façamos o homem e a mulher à nossa imagem e semelhança”. Lembramos o autor Mircea Eliade em seu livro: O Sagrado e o Profano (2010) que nos apresenta o sagrado e o profano como duas modalidades de se estar no mundo, de nos relacionarmos com os outros, com a natureza, ou seja: “O sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem” (p. 20).

O espiritual que refletimos está fundado na compreensão de Martin Buber; na qual a relação entre Deus e o homem acontece, se faz no encontro entre o homem e sua criação, entre pessoas, ou seja, é na cotidianidade como nos diz o mesmo: “As linhas de todas as relações, se prolongadas, entrecruzam-se no Tu eterno. Cada Tu individualizado é uma perspectiva para ele. Através de cada Tu individualizado, a palavra-princípio invoca o Tu eterno”. (2001, p. 99). Isto é: acolher a dimensão religiosa, espiritual, não é falar de algo do homem lá do “céu”, mas do homem aqui da Terra com seus sofrimentos e angústias. Parafraseando Buber, podíamos dizer que em cada encontro com todos os entes existentes, com todas as minhas alteridades, possibilita meu encontro, uma relação com o “Totalmente Outro”, minha grande alteridade.

O sagrado a partir desta perspectiva não é Aquele “Totalmente Outro” em uma alteridade absoluta; aquele “Outro” que me é totalmente estranho. Ele é “Totalmente Outro”, mas não me é estranho, nem distante: Ele se encontra nas relações, no dia a dia; do contrário, seria impossível se construir uma Gestalt entre o divino e humano. Em nossa compreensão no momento em que, para os cristãos, Deus se encarnou na humanidade no natal, no nascimento do seu Filho, que para os mesmos cristãos “Deus fez morada em nosso meio”, então podemos falar em um Gestalt plena do humano; pois aí ele se torna em plenitude: homem e Deus; divindade e humanidade numa unidade. O Divino se dá em relação. No entanto, a relação só acontece de forma plena se houver da parte do outro abertura: o Divino vem ao encontro do humano, mas é necessário que também o humano vá ao encontro do Divino. Na contramão dessa compreensão, encontramos o Divino em Otto (2007).

Paulo Dalgalarrondo (2008), comentando Rudolf Otto (2007, diz que:

Otto designa a essência da experiência religiosa como numinoso. Na contraposição entre o profano, o mundo cotidiano simples e prosaico do trabalho, das obrigações e diversões comuns, e o sagrado este último surge como algo muito especial, um ganz anderer segundo Otto (2007), um departamento radicalmente diferente da vida (2008, p. 21).

Nestas palavras podemos perceber o quanto uma forma de compreensão do Divino não consegue criar aproximações e sim abismos com o homem. Entendendo-se a religião, como essa alteridade absoluta, não temos como dialogar com a clínica psicoterápica. Otto (2007) nos deixou uma grande contribuição quando coloca a experiência religiosa como algo do sentimento, uma experiência íntima de cada um. Assim podemos compreender que a experiência religiosa acontece a partir de como cada um experimenta e, em consequência, pode ser sempre pensada e experimentada em cada sujeito.   

O poeta Onildo Barbosa faz entender como este numinoso é por ele experienciado em suas várias realidades do cotidiano, um Deus presente nas relações com os entes; Deus é presente na nossa vida. Diz ele em um de seus poemas que leva o título de “Deus”. Vejamos algumas estrofes:

Deus está na nossa mente, Na forma que a gente pensa, Nas coisas que a gente sente, De acordo com a nossa crença; Deus é a luz que aparece Na hora que amanhece Prá nos trazer alegria, Embelezando a aurora, Quando a noite vai embora Dando vida ao novo dia. Deus orienta o inculto Com força e perseverança. Dá paciência ao adulto Prá conduzir a criança. Deus está na flor cheirosa, Na planta leguminosa Que alimenta a nação, No vento, na noite cálida, No rosto da lua pálida Que embeleza o sertão. Deus está no movimento, Dos animais na floresta Nas aves fazendo festa, No seu acasalamento- Na fruta que cai do cacho, Na fêmea que atrai o macho Na pétala que trás o brilho. Está na anciã do quarto Confortando a dor do parto Do ventre que gera o filho. Deus está na melodia, Do sabiá laranjeira, Na fonte de água fria No grito da lavadeira. No veneno da serpente No germinar da semente No mel que tem na resina, Na ciência da fragrância, Na raiz, na substância No saber da medicina. Deus está no mel da cana Que produz a rapadura Na casca da umburana No vapor da terra dura Na plumagem da arara No fruto da ciçara, Na flor do mandacaru No espinhal do abismo Na beleza e romantismo Da voz do wirapuru. Deus está por sua vez No calor da sequidão, Na lágrima do camponês Que chora a falta de pão, Deus tá presente na dor Na angústia no amor No lamento dos plebeus Deus está sempre de pé, Prá dar um pouco de fé, Aquém não conhece Deus. Deus está na construção Do João de barro engenhoso Na plumagem do pavão, Elegante e vaidoso Na relação conjugal, No ato sexual Quando a libido é pura, Sem químicas nem alcalóides Milhões de espermatozóides Gerando uma criatura. (Onildo Barbosa: www.letras.com.br/onildo-barbosa-e-seus-cabras-da.../deus-(poema)‎.

            O que percebemos neste poema que trata de um “tema” ou “discurso” religioso, sobre Deus é o quanto o poeta situa a presença de Deus na existência; na finitude e ao mesmo tempo o deixando em sua eternidade: ele se faz presente no presente; se encontra em toda sua criação: não é um Ser que está sempre fora, distante; mas também está dentro – em condição de se colocar em relação, em diálogo com as criaturas, ou seja, há uma grande harmonia entre a divindade e a humanidade: não há dicotomia entre mundos; como nos lembra a relação do Eu-Tu. Aqui o olhar do poeta apresenta aquilo de que nos fala Mircea Eliade: é um modo de estar no mundo. O homem religioso tem um olhar de “encantamento” segundo Ribeiro frente ao mundo.

No olhar de “encantamento” frente ao mundo já não faz dicotomias e separações: as partes são vistas como fazendo parte do conjunto: tudo é parte do Todo; da Totalidade. Desta forma se pode falar de um olhar gestáltico onde não há negação do mundo; não há dicotomias

 Assim diz Ponciano Ribeiro (2009):

O mundo do encantamento é o mundo da Espiritualidade, porque no encantamento vamos nos desligando de partes, de detalhes, e vamos descobrindo o tudo que existe no Todo,  a totalidade da qual brota a essência de todas as coisas. (...) O momento de uma vivência de Espiritualidade, que se expressa por meio do encantamento, é um momento mágico de síntese holística e gestáltica porque, nesse instante, parte e Todo se fundem, tempo e espaço se confundem, dentro e fora desaparecem. (p. 88-89).

           

            Parafraseando Buber, o olhar do Eu Isso seria o olhar em partes, ver as coisas de forma separadas, isoladas:

O homem transformado em Eu que pronuncia o Eu Isso coloca-se diante das coisas em vez confrontar-se com elas no fluxo da ação recíproca. Curvado sobre cada uma delas, com uma lupa objetivante. [...] Um olhar distante, ele as isola ao considerá-las, ou ele as agrupa sem sentimento algum de universalidade (2001, p. 69).

Ponciano Ribeiro (2009), fala desse homem religioso; espiritual como aquele que está encarnado na realidade, que contempla o todo, experimenta a totalidade neste mundo, neste Outro; que vive de forma integral a relação “corpo/Mente/mundo”. Diz ele:

O homem espiritual é um homem encarnado no mundo, por isso revestido de mundanidade sem nenhum a priori e que, simplesmente, se deixa acontecer. Ele contempla o mundo como o Outro e, ao contemplar esse Outro, percebe-se como existente [...]. Esse posicionamento tem tudo que ver com a abordagem Gestáltica, que é uma proposta de integração corpo/Mente/mundo. A Gestalt é, por natureza, uma que resgata o conceito de Totalidade, de presentificação, de experiência imediata, de contato, de encontro. (p. 89-90).

             Portanto, neste olhar de “encantamento” da pessoa do religioso, há um resgate da Totalidade; diferente do olhar fragmentado, separados do Todo. Neste sentido o olhar espiritual é um olhar gestáltico.

Mircea Eliade (2010), o homem religioso busca sempre dar forma as coisas e ao mundo. Para este homem religioso o mundo sagrado tem sentido; ganha forma e estrutura; enquanto o mundo para o homem não religioso ele é opaco, sem forma. Diz Ele: “Há, portanto, um espaço sagrado, e por conseqüência “forte”, significativo, e há outros espaços não-sagrados, e por conseqüência sem estrutura nem consistência, em suma, amorfos”. (p. 25). Com estas palavras, pode-se dizer que o religioso na sua tentativa de encontrar sentido e forma, busca um significado; tem um olhar gestáltico, busca unir as partes de um todo em uma figura. Podíamos dizer assim: de um “mundo” que se apresenta como fundo, o homem religioso busca e constrói uma imagem.

Luiz José Veríssimo (2010) nos ajuda a entender que para nossa busca de integração entre a Gestaltterapia e a experiência religiosa não se pode separar como necessário e sistemática o Sagrado e o profano, mas do contrário, eles podem e devem ser integrados:

[...] Não há por que separarmos de forma necessária e sistemática o sagrado do profano para promover a ligação com o sagrado: aqui termina o profano, lá começa o sagrado. Essa demarcação postula, de um lado, a experiência religiosa como instância do sagrado e, de outro, a existência, referente ao campo do profano. No modo de concepção dialógico, o sagrado e o profano são integrados numa totalidade que os remete a uma dialogação, onde não há solução de continuidade entre o rito e o profano, o mito e a “realidade”, as imagens e o discurso, o “racional” e o “irracional”. (p. 113-114).

  

A pessoa do religioso, isto é, a pessoa religiosa é também uma pessoa da Gestalt a partir do momento em que está sempre buscando dar forma ao “informe”. É assim que afirma Mircea Eliade: “Mais ainda: para o homem religioso essa não-homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição entre o espaço sagrado – único que é real, que existe realmente – e todo o resto, a extensão informe, que o cerca”. (Ibid., p. 25). Aqui nos chama a atenção à expressão “extensão informe” que é o mundo. Para a psicologia da Gestalt procuramos sempre a forma, dar forma as coisas. Também no espaço religioso se busca dar forma e sentido.

2.3 Diferenciando: crença ingênua e crença genuína.

Para nosso propósito, ao refletirmos sobre a importância de acolhermos o outro em sua alteridade, é necessário compreendermos a distinção entre crença ingênua e crença genuína. Quando falamos em fé ingênua estamos nos referindo a uma fé infantil, “mágica”; e do contrário, a fé genuína a uma fé adulta.

São muitas as situações em que se observam tais usos da crença de forma ingênua, infantilizada, mágica. Por isso, muitas vezes, a crença foi vista só pelo aspecto da infantilidade; recebendo por isso muitas críticas. A mais contundente e que até hoje nos chama a atenção foi feita por Freud quando afirmou ser a religião pura projeção, a criança projetaria a imagem de seu pai em Deus. Freud, apesar da radicalidade, nos deixou grande contribuição no sentido de que precisamos distinguir entre uma crença infantil e uma adulta. Portanto, é necessário estarmos sempre atentos para não cairmos no perigo do reducionismo, ao fazermos este tipo de distinção; e, claro, ajudar o religioso no sentido de fazê-lo compreender sua imatura postura, ajudá-lo a separar o “trigo do joio”; uma vez que sua forma de relação com o Divino contém atitudes infantilizadas, mágicas.

Neste sentido, há uma impossibilidade de abertura para viver de forma “autêntica” sua existência. A relação com o Divino, compreendida dessa forma, não é algo saudável para a pessoa enquanto adulta, que supõe agir de forma madura diante das coisas, diante da vida.

Allport (1967) nos chama a atenção para fazermos a distinção, acima comentada, se não quisermos ser triviais em nossa forma de tratar à religião. O autor comenta igualmente sobre o risco de uma infantilização da religião.   Diz ele:

Se, no entanto, nosso esboço do processo do desenvolvimento tem alguma validade, seguem-se determinadas consequências para a compreensão psicológica da religião. Antes de mais nada, nossa análise acautela-nos contra o ponto de vista trivial que afirma ser a religião dos adultos apenas repetição das experiências infantis. Embora a criança possa, algumas vezes, entender a imagem de seu pai terreno para um Pai divino, é uma inconsequência dizer que todos os adultos fazem o mesmo. É certo que alguns adultos jamais conseguem vencer sua tendência a agarrar-se a uma divindade específica, a qual, como um pai muito indulgente, sempre responde às solicitações especiais. (p. 126)

Portanto, precisamos estar atentos para não perdermos de vista estas distinções importantes e necessárias para podermos acolher o outro em sua crença e ao mesmo tempo ajudar quando for constatado que o cliente traz uma situação que precisa de crescimento, maturidade.

Ainda para Allport, as causas que podem desenvolver uma crença adulta e infantil, são causadas pelo nosso temperamento e a formação que recebemos:

Nem podia ser diferente, pois o desenvolvimento religioso é influenciado pelo nosso temperamento e formação, e está sujeito a interrupções e crescimento. Algumas forças que interrompem o desenvolvimento religioso deixam o individuo com uma forma infantil de crença religiosa, egoísta e supersticiosa. Inseguranças neuróticas podem exigir um ritual imediato e compulsivo de certeza restabelecida. Algumas vezes a extrema rigidez de formação de casa ou da Igreja pode constituir somente um critério parcial para pôr à prova a verdade. (ibid., p. 129).

Chama-nos a atenção a observação: Algumas forças que interrompem o desenvolvimento religioso deixam o indivíduo com uma forma infantil de crença religiosa, egoísta e supersticiosa; indicando assim que em si a religião não é causa da superstição, do infantilismo, mas em sujeitos que não tiveram um desenvolvimento maduro, que permaneceram psicologicamente infantilizados também terão um comportamento religioso infantil, ou seja, cheio de superstição em seu modo de ser religioso; na sua maneira de expressar a fé.

Para Allport, todas as fases do desenvolvimento estão sujeitas a interrupções e os indivíduos serão também afetados.

Todas as fases do desenvolvimento estão sujeitas á interrupção. A psicopatia pode ser encarada como uma interrupção na auto-extensão, de modo que não se desenvolve nenhum senso de obrigação moral. Exibicionismo e outras perversões seguem da interrupção do desenvolvimento genital; o narcisismo é uma interrupção da autoimagem. O infantilismo em religião é resultado da interrupção da satisfação das necessidades imediatas de conforto, segurança ou autoestima. (ibid,).

Portanto, é preciso atenção para se distinguir, separar o trigo do joio, ou seja, não generalizar. A título de ilustração, gostaríamos de apresentar uma situação em que entendemos que aconteceu uma passagem de uma compreensão da fé mágica, supersticiosa e infantilizada para uma fé adulta e madura. O fato que vamos apresentar aconteceu com uma grande personalidade, pessoa querida da sociedade; pessoa famosa: o cantor Roberto Carlos.

Trazemos o fato.

O Fantástico de 12 de dezembro de 2004 exibiu uma entrevista do repórter Geneton Moraes Neto com o cantor Roberto Carlos. Roberto Carlos inconformado com a perda, com a morte da mulher Maria Rita com câncer, confessa que reavaliou o poder da fé. Afirma: “Aquela coisa de a fé remover montanhas não é uma realidade. A fé ajuda você até a subir a montanha ou dar a volta, mas não tira a montanha da frente não”. Este comentário a que se refere o cantor pode ser encontrado na passagem bíblica de Mc, 11, 22-23 que diz assim: “Jesus disse para eles: Tenham fé em Deus. Eu garanto a vocês: se alguém disser a esta montanha: levante-se e jogue-se no mar, e não duvidar no seu coração, mas acreditar que isso vai acontecer, assim acontecerá”. É uma passagem muito interessante que nos parece colocar uma importância muito grande na dimensão do humano; ele precisa acreditar, sem esta confiança, as coisas não acontecem. Entretanto quando a crença transfere a responsabilidade para Deus acontece o que chamamos de fé imatura; ainda infantil, a fé da criança que não saiu das suas fantasias de super-heróis, pois fica esperando que forças extraordinárias aconteçam e transformem tudo num toque de mágica. Não é dessa fé que Jesus fala aqui.

Em nossa compreensão há uma grande importância na participação do homem. Assim entendemos que o que Jesus nos diz é que se temos esta confiança interior podemos transformar, superar muitas dificuldades que aos olhos daquilo que nos parece ser impossível, acontece. Claro que falar da fé que remove montanhas, é uma forma poética de comunicar que faz parte da cultura da época, forma simbólica de se comunicar. Ele não esta ensinando como podemos usar da fé para remover os montes, os obstáculos da natureza: para isso existem muitos outros meios que os seres humanos podem se valer: temos as tecnologias hoje que podem ajudar; fazer essa função. O que ele quer nos mostrar é que com a fé podemos superar os obstáculos, as barreiras sociais, os preconceitos, nossas intransigências, as fronteiras que geram misérias, fome e guerras.

O texto continua e nos coloca no contexto do que realmente Jesus queria nos ensinar: que a oração que seria até capaz de “remover” a montanha se pedir com fé, acreditar de coração, também pode mudar o nosso coração para o perdão. “Quando vocês estiverem rezando, perdoem tudo o que tiverem contra alguém”. (Jo. 11: 25). O que Jesus quer nos ensinar é que devemos querer com sinceridade de coração, com plena convicção o viver no perdão. Ou seja, neste contexto, a fé é para superar nosso ódio, egoísmo e construção de um mundo com fraternidade, perdão, entendimento. Não certamente para se estar realizando “mágicas”.

A nova compreensão do cantor Roberto Carlos está mais coerente com uma fé mais madura e adulta. Quando o mesmo diz: “Aquela coisa de a fé remover montanhas não é uma realidade. A fé ajuda você até a subir a montanha ou dar a volta, mas não tira a montanha da frente não”. Assim queremos entender a fé, ela não é para tirar, “resolver” e “remover” os nossos problemas. Ela nos ajuda a enfrentar os problemas, a suportar a carga dos sofrimentos que temos que enfrentar no nosso dia a dia. Ela nos ajuda a subir a montanha. Muitas vezes se observa que há em muitas pessoas religiosas, em sua bondade, mas também com certa ingenuidade, esta forma de compreensão da fé, de crença de que quem tem fé em Deus nada sofrerá, nada de mal acontecerá, ou seja, se está imune a qualquer sofrimento ou desgraça. Isso é uma forma imatura de fé. Esta maneira de compreender a fé não ajuda a viver a vida em sua verdade; é pura alienação.

A fé genuína ou adulta nos diz que a vida tem dor e sofrimento e que a minha fé me ajuda a enfrentar, a ter esperança, a não sucumbir diante da realidade que se vive; que se apresenta. Por que compreendemos assim? Porque é o próprio Evangelho que nos dá pistas para isso; o próprio Jesus passou por dor e sofrimentos; sofreu tentações, passou necessidades, teve que enfrentar incompreensões, prisão, cusparadas: “Então cuspiram no rosto de Jesus e o esbofetearam”. (Mt. 26: 67). Tentações e a violência da morte.

Outro exemplo foi de uma grande personagem religiosa e, tida como uma pessoa de muita fé, que talvez para muitos fosse imune ao sofrimento, adoecer, ter depressão: o Pe. Marcelo Rossi. Em entrevista ao Fantástico, Padre Marcelo conta como agora para o nosso entendimento tomou consciência de que o adoecimento, no caso a depressão que considerava “frescura” não se trata de ter fé religiosa ou não, mas que faz parte da nossa condição humana; afinal, na vida temos perdas, desilusões.  A entrevista ao Fantástico (TV GLOBO) no 08/12/2013, 21h58 - Atualizado em 08/12/2013, 22h24.

“Falta de privacidade, assédio dos fãs, tristeza e até dieta radical. Numa conversa com Renata Vasconcellos, Padre Marcelo Rossi falou sobre os momentos difíceis por que tem passado.                                                                                                                                         Tudo começou há três anos num acidente na esteira ergométrica que o deixou numa cadeira de rodas por seis meses. Foi então que Padre Marcelo passou a se sentir deprimido. Ele conta como vem dando a volta por cima, com a ajuda da fé.

Um templo de fé construído para receber 60 mil fiéis. Uma obra do tamanho do sucesso alcançado pelo Padre Marcelo Rossi. Foi do templo que Padre Marcelo celebrou, com uma missa, os 19 anos de ordenação, no último domingo (1º).

Mas quem vê a energia dele, não imagina as dificuldades por que vem passando. Como anda a cabeça de Padre Marcelo?

Com uma voz cansada, ele recebeu o Fantástico para conversar sobre as dores de sua alma.

Renata Vasconcellos: Padre Marcelo, muito obrigada por receber o Fantástico aqui no Santuário. Completamente recuperado da depressão?

Padre Marcelo Rossi: Graças a Deus, quase completamente. Fiz uma dieta maluca, Renata. Eu realmente espero que as pessoas não inventem. Era só alface e hambúrguer. Você imagina seis meses fazendo isso.

Renata Vasconcellos: Por que a dieta?

Padre Marcelo Rossi: A dieta, porque as pessoas comentavam: 'Padre, o senhor está muito gordo'. ‘Eu não estou gordo, estou inchado’. Porque eu estava correndo, só que a corrida não estava eliminando. Aí eu comecei a dieta.

Renata Vasconcellos: Essa dieta era a base de quê?

Padre Marcelo Rossi: Alface, cebola, dois hambúrgueres pela manhã. Um hambúrguer depois das 18h.

Renata Vasconcellos: Então comia três hambúrgueres só ao longo do dia?

Padre Marcelo Rossi: Ao longo do dia, devagarzinho.

Renata Vasconcellos: E agora o senhor está bem magro.

Padre Marcelo Rossi: Infelizmente, eu exagerei. Exagerei e não quis me pesar, mas eu acredito que foram na base de 35 a 40 quilos. Engordei e perdi. As pessoas chegavam para mim: 'Padre, o senhor está muito magro'. E eu não acreditava. É você se olhar no espelho e não se ver magro. Então, foi aí que eu parei e falei: 'Opa, tem alguma coisa errada'.

Renata Vasconcellos: O senhor não pensa em buscar ajuda nesse sentido?

Padre Marcelo Rossi: Não busquei nenhum psicólogo, ninguém. Nunca fiz terapia.

Renata Vasconcellos: Mas padre, em alguns momentos, faz terapia?

Padre Marcelo Rossi: Tem vários padres que eu conheço que fazem terapia. Você fica sabendo de cada caso que a pessoa vem confessar com você. E você não vai chegar ao seu quarto, fechar a porta e desconectar. É difícil.

Renata Vasconcellos: E como o senhor, Padre Marcelo, consegue uma válvula de escape para não somatizar?

Padre Marcelo Rossi: A esteira.

Renata Vasconcellos: Atividade física?

Padre Marcelo Rossi: Foi a atividade física.

Mas foi justamente na esteira que ele tomou um segundo tombo, há uma semana, e se machucou nas mãos e na perna. Dessa vez, Padre Marcelo caiu, porque estava se sentindo muito fraco. “Foi aí que eu acordei que estava fazendo uma dieta maluca”, conta ele.

Acostumado a grandes multidões, eventos e programas de TV, ele diz que sofreu com o excesso de exposição.

Padre Marcelo Rossi: Eu perdi todas as liberdades necessárias. Por exemplo, qualquer coisa que eu fizer errado hoje, todo mundo tem celular. Então, uma foto vai estar na internet, vai estar em algum lugar.

Renata Vasconcellos: Você perde a liberdade?

Padre Marcelo Rossi: Toda a liberdade.

Renata Vasconcellos: O senhor sente falta de sair na rua?

Padre Marcelo Rossi: Nossa como eu sinto! Sair na rua, fazer compras eu mesmo, ir a um restaurante que eu quiser comer o que eu quero. Mas, ao mesmo tempo, tudo tem o seu preço. Eu pago esse preço. O que mais me assusta é o fanatismo. Esse é o grande perigo em qualquer lugar, seja em qualquer religião. Muitas vezes, nos colocam em um pedestal, até em uma idolatria. Eu sou um ser humano. É o que eu explico para as pessoas. Todo ser humano. Eu passo por dor. Nunca escondi de ninguém.

Padre Marcelo conta que se arrepende por ter criticado o Padre Fábio de Melo por se apresentar sem batina: "Eu acho que a batina é importantíssima, mas eu tenho que respeitar o outro. Nós nos sentamos e conversamos sobre isso. Foi muito bom. Foi no dia do programa da Xuxa que eu pedi desculpas para ele. Foi daquele dia em diante que nos tornamos grandes amigos".

Renata Vasconcellos: O senhor está bem de saúde?

Padre Marcelo Rossi: Agora, estou perfeito. Quinze dias que eu estou me alimentando como sempre me alimentei, como devia me alimentar.

Renata Vasconcellos: O senhor se julga uma pessoa vaidosa?

Padre Marcelo Rossi: Gordura, eu sou vaidoso. De resto, roupa, coisas. Exemplo, tudo que eu fiz, CDs, eu doei para a Diocese. Podia ficar comigo. Então, não sou preso a dinheiro.

Renata Vasconcellos: Ainda toma remédio para calvície?

Padre Marcelo Rossi: Tomo. Isso eu tomo.

Renata Vasconcellos: Padre Marcelo, o que o senhor aprendeu nesses momentos difíceis?

Padre Marcelo Rossi: Estou aprendendo. Vamos colocar assim: a vida da gente é um eterno aprendizado. Deus permitiu que eu passasse por um pouquinho do que é uma depressão. Eu pude entender, porque eu achava que antes, desculpe a palavra, entre aspas, era frescura. ‘Depressão? Ah, isso não’. Eu falava: ‘Doença, isso é o que a pessoa tem o dia inteiro’. Não é. É o que você tem uma sensação não boa. O que me salvou foi escrever. O que me salvou foi cantar. O que me salvou foi a oração. E, por favor, você que está acompanhando o Fantástico, juízo com dietas malucas.

Renata Vasconcellos: Nada de dietas malucas.

Padre Marcelo Rossi: Por favor, porque eu sou um desses loucos que caiu nessa dieta maluca e quase, meu Deus, poderia ter sido pior. Mas Deus é mais.

Renata Vasconcellos: Obrigada, Padre Marcelo.

Padre Marcelo Rossi: Deus a abençoe.

            Este tipo de entender a fé entre alguns religiosos é muito presente. Escuta-se muito entre padres, pastores, e pessoas leigas expressões do tipo: “Quem tem fé não pode ter depressão”; entende que a fé em Deus lhe dar o sentido da vida, que assim tem “O sentido” de vida maior e nada mais poderia lhe atingir, causar sofrimento. Para nossa compreensão essa forma de fé é ingênua. Portanto, ter fé não é estar imune a dor, sofrimentos; a fé ajuda a suporta o sofrimento e a dor; faz-nos caminhar mesmo nas adversidades.

Uma passagem muito sugestiva que nos leva a uma compreensão da fé de forma genuína e adulta, e não como fantasia, como mágica ou superstição é a das tentações de Jesus. Na interpretação teológica tem um sentido muito profundo, entretanto não é nosso objetivo aqui falar ou desenvolver tal temática. Mas o que é interessante é a negação de Jesus em querer se utilizar da fé como uma forma de fugir da realidade, da verdade da vida; ou fazer da fé um meio utilitário; e não um fim em si mesma. Nas tentações, mesmo passando muita fome, ele se recusa a transforma pedra em pão. Diz o texto: “Então, o tentador se aproximou e disse a Jesus: se tu és filho de Deus, manda que essas pedras se tornem pães”! (Mt. 4: 3). E Jesus se nega. Estaria aqui Jesus mostrando que a fé de remover montanhas não tem sentido? Em outra passagem Ele diz que das pedras Deus pode gerar filhos de Abraão? Não pensem que basta dizer: "Abraão é nosso pai". Porque eu lhes digo: até destas pedras Deus pode fazer nascer filhos de Abraão.(Mt. 3: 9).

Então, como entender essa forma de Jesus? Neste caso, o cantor Roberto Carlos estava certo quando pensava que a fé removia montanhas? Uma resposta possível é: se entendemos a fé de forma imatura, infantil, mágica e ingênua; então o cantor Roberto Carlos estava certo quando pensava que a fé removia a montanha e Jesus nos iludiu.  A mágica não acontece. Mas se entendermos a mensagem de Jesus, vamos ter que rever nossa forma de entender a fé como Jesus mostrou. Ela não é uma mágica; Ele se negou a essa compreensão de Deus, dá fé e da vida. Jesus nunca “prometeu o mar de rosas”, mas a cruz: “Quem quiser ser meu discípulo renuncie a si mesmo tome a cruz e me siga” (Mc. 8: 34). Já escutamos muitas coisas, muitas histórias que trazem essa ideia de fé na dimensão que diríamos que não passa de pura ingenuidade; de uma fé infantilizada. Com todo respeito às pessoas que as tem, mas não podemos dizer que não é ingênua.

Outra atitude infantil de compreensão da fé ou como alguns poderiam expressar e viver; é quanto à questão da responsabilidade diante da existência. Esta talvez seja um dos maiores entraves no tocante às aproximações entre a religião e psicoterapia; entre o religioso e o psicoterapeuta. Isso não é por acaso. As pessoas religiosas têm forte tendência a atribuir a responsabilidade de seus fracassos e sofrimentos como castigo de Deus, como sendo uma punição; ou atribuir a tentação ao diabo, “ao maligno”. Significa que delega os sofrimentos e sucessos a uma força exterior; não assumindo responsabilidades, fica numa postura passiva.

Erich Fromm (1962) psicanalista humanista, nos coloca diante desta discussão entre uma atitude ingênua e genuína quando trata de duas compreensões ou atitudes religiosas que classifica como: religião humanista e religião autoritária. Para nossa temática podemos dizer que a religião humanista estaria na direção do que estamos chamando de genuína em que a experiência de Deus, do Divino não anula a pessoa, sua responsabilidade diante da vida. Para a compreensão na concepção humanista o homem tem muitas qualidades, um potencial e deve assumir sua responsabilidade: o homem não é nada e Deus é tudo, mas há um equilíbrio: o homem é também importante. Assim já nos diz Eric Fromm (1962):

Enquanto que na religião humanista Deus constitui a imagem do Eu superior do homem, um símbolo do que é potencialmente ou deveria ser, na religião autoritária Deus aparece como monopolizador do que pertencia originariamente ao homem: a sua razão e o seu amor. Tanto mais perfeito se torna Deus, mais imperfeito parece o homem. Este projeta o melhor de sua natureza na figura de Deus, e fica empobrecido. A divindade passa a ter todo amor, sabedoria, toda a justiça – e o homem perde essas qualidades ficando vazio e pobre (p. 61-62).   

Em se colocando nessa perspectiva, essa forma de compreensão que poderíamos chamar de ingênua, mágica e não genuína da fé; não ajuda a nós mesmos. Um encontro de proximidade, e ao mesmo tempo impossibilidade de cuidar do religioso, pois não levaria a assumir sua responsabilidade diante da vida, da sua história. É isso que nos fala ainda Eric Fromm (1962):

Mas essa abdicação das suas reservas de força não apenas torna o homem submissamente dependente de Deus, como ainda o faz sentir-se mau. Transforma-se em um corpo sem fé nos seus semelhantes e em si mesmo, destituído da experiência do seu próprio afeto, e desconhecedor do poder de sua razão. Como consequência, ocorre a separação entre o aspecto “religioso”, sagrado, e o aspecto “secular” da sua existência. Nas atividades mundanas movimenta-se sem amor, ao passo que no setor religioso da vida sente-se como um pecador (e na verdade o é, porque não existe maior pecado do que viver sem amor), e procura reconquistar o seu sentimento humano pela aproximação com Deus. (p. 63). 

Nestas palavras de Fromm fica claro aquilo que estamos chamando a atenção para algumas modalidades da experiência religiosa que dificultam ou inviabiliza uma relação de diálogo com o Sagrado, o Divino. Uma relação que acontece entre alteridades relativas e não absolutas; em que a presença do Divino não anule a humana: “Deus tudo o homem nada”.

Fromm nos adverte ainda para conseqüências que diríamos ser graves para a experiência religiosa vivida por algumas pessoas. Dentre elas a que estamos chamando a atenção: a separação, dicotomia entre mundos – sagrado e profano e entre homens e Deus. E ainda mais grave: “movimentar-se sem amor” que Fromm coloca como pecado grave.    

Na carta a São Tiago, nos textos do Novo Testamento, essa forma de atribuir a Deus ou a uma força exterior aquilo que acontece a cada um, não corresponde. Deus não é responsável por aquilo que estamos vivendo e nem por aquilo que podemos viver: somos nós os responsáveis. O texto diz: “Quando tentado, que ninguém diga: Deus está me tentando. Porque Deus não é tentado a fazer o mal nem tenta ninguém. Cada um é tentado pelo seu próprio desejo, que o atrai e seduz”. (Tg. 1: 13-14). Isto é, somos responsáveis por nossas decisões, nossos caminhos; pelos acertos e erros, sucessos e derrotas - não as deleguemos a Deus nem ao “diabo”.

Outras atitudes ingênuas que dificultam a aproximação entre a psicoterapia e a religião são algumas interpretações bíblicas que, levando a criar uma relação negativa com o mundo, geram dicotomias! Se amamos a Deus, as coisas do mundo perdem a sua atração”. Tal interpretação pode ser baseada em 1 João 2. 15:17. “Não amem o mundo e nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo – os apetites baixos, os olhos insaciáveis, a arrogância do dinheiro – são coisas que não vem do Pai, mas do mundo”. Neste texto, podemos cair num perigo de negar o mundo como algo bom e como criação de Deus, ou seja, a natureza, sua obra, a pessoa humana.

Quando não fazemos a distinção, condenando as realidades, as coisas em si, a natureza em si; a criação em si, pois se fosse já estaríamos negando o próprio criador, o próprio Deus; afinal, tudo foi criação Sua que ao criar disse: “E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom”. (Gn. 1: 31). Em At 17. 24, o texto também nos mostra que Deus é seu criador e por isso não poderia negá-lo ou renunciá-lo. Diz o texto: “O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra”. O que a Bíblia quer condenar não é o mundo enquanto a criação de Deus, mas a nossa forma de nos relacionarmos com ele, são nossas atitudes: ganância, destruição, consumismo, violência e guerras. Seria usando as palavras-principio de Buber: uma relação absolutamente num Eu-Isso. O mundo como pura utilidade do homem; usado para seus fins e para destruição.

“Não se pode desfrutar dos prazeres do mundo e ser amigo de Deus ao mesmo tempo”. Igualmente se pode fazer esse tipo de interpretação baseado em Tiago 4, 4: “Idólatras! Vocês não sabem que a amizade com o mundo é inimizade contra Deus? Quem quer ser amigo do mundo é inimigo de Deus.” Mais uma vez temos que estar atentos àquilo que a Bíblia se refere quando se está falando de coisas do mundo, coisas da carne em contraposição às coisas de Deus, do espírito ou espirituais. A carta aos Gálatas (Gl. 5: 19-21) nos dá uma boa ideia no que se refere às coisas da carne e do mundo. Diz: “Além disso, as obras dos instintos egoístas são bem conhecidas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, discórdia, ciúme, ira, rivalidade, divisão, sectarismo, inveja, bebedeira, orgias e outras coisas semelhantes”. A condenação não se refere às coisas em si, mas na nossa forma de nos relacionarmos com elas, com as pessoas, dois modos de se viver a existência: o modo Eu-Tu e o modo Eu-Isso.

“Quando conhecemos a Jesus, perdemos interesse neste mundo”. Esta frase, como as anteriores, revela também uma má compreensão da essência real da proposta da fé cristã como compreendemos. Faz-se muitas vezes esta interpretação partindo da carta de São Paulo aos Gálatas 6,14 que diz: “Quanto a mim, que eu não me glorie, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio do qual o mundo foi crucificado para mim, e eu para o mundo”. Aqui também é necessário estarmos atentos; temos que olhar que mundo está sendo condenado? Ora, é o próprio Jesus que diz que não veio para condenar o mundo, mas para salvar. O Pai ama o mundo e por isso quer salvar. (Jo 3, 16): “Pois Deus amou de tal forma o mundo, que entregou o seu Filho único”.  Jesus veio como luz e o mundo não aceitou: “Quem  pratica o mal tem ódio à luz”. (João. 3: 20).

Já falamos anteriormente daquilo que nos destrói e destrói o outro, a vida como: discórdia, ciúme, ira, rivalidade, divisão, sectarismo, inveja. A morte de Cristo na cruz foi para apresentar o amor como salvação para a humanidade. A salvação é amar e não negar a vida ou o mundo que Deus criou.

            Buber nos ajudar a superar uma compreensão religiosa que faz dicotômica quando nos diz:

A criação não é uma barreira no caminho que leva a Deus, ela é este próprio caminho. Somo criados um-com-o-outro e tendo em vista uma existência em comum. As criaturas são colocadas no meu caminho para que eu, criatura como elas, encontre Deus através delas e com elas. Um Deus que fosse alcançável pela exclusão das criaturas não seria o Deus de todos os seres, em que todos se realizam. (1982, p. 93).

            Nestas palavras de Buber, as partes formam um todo; não são as negações da outra – o Todo não se alcança pela exclusão da alteridade; isto é, o Divino é encontrado na inclusão. Nele o todo das partes é acolhido; Nele o todo das partes se torna a Totalidade.

No entanto, propomos algumas citações que ajudam a superar as dicotomias entre Deus e mundo! Elas nos ajudam a não negar nenhuma parte: nem o mundo, a criação; nem a presença do Divino.

“Se eu tivesse fome, precisaria dizer a você, pois o mundo é meu, e tudo o que nele existe”. Salmos 50, 12. “Os céus são teus, e tua também é a terra; fundaste o mundo e tudo o que nele existe”. Salmos 89. 12. “Antes de nascerem os montes e de criares a terra e o mundo, de eternidade a eternidade tu és Deus”. Salmos 89. 12. “Antes de nascerem os montes e de criares a terra e o mundo, de eternidade a eternidade tu és Deus”. Salmos 90, 2.

“Quando Javé ainda não havia feito a terra, nem a erva, nem os primeiros elementos do mundo”. Provérbios 8, 26

“Quando punha um limite para o mar, de modo que as águas não ultrapassassem a praia; e também quando assentava os fundamentos da terra”. Provérbios 8, 29

"Com seu poder, Javé fez a terra; com sua sabedoria, firmou o mundo”. Jeremias 51, 15

“Pois Deus amou de tal forma o mundo, que entregou o seu Filho único”. (Jo. 3: 16).

Podemos estabelecer uma relação de analogia com as palavras-princípio de Buber do Eu-Tu e Eu-Isso: Eu-Tu como possibilitando o sagrado e o Eu-Isso a condição de profano. Claro que nem em Mircea Eliade e nem em Buber existe uma relação valorativa, mesmo que em Buber o fechar-se em uma dimensão pode ser mal, negativa, limitadora. Segundo Newton Aquiles Von Zuben no livro Eu e Tu comenta: “Em si o Eu-Isso não é um mal; ele se torna fonte do mal, na medida em que o homem deixa subjugar-se  por esta atitude”. (...) “Se o homem não pode viver sem o Isso, não se pode esquecer que aquele que vive só com o Isso não é homem”. (2001, p. 35).

Buber vai mais além nesta quebra da dicotomia dos dois mundos: sagrado e profano. Para ele não existe essa separação, dicotomia. No livro Eu e Tu, Newton Aquiles Von Zuben na introdução comenta: “Para Buber, o hassidismo denunciou e afastou o perigo da separação entre a “vida em Deus” e “a vida no mundo” (...) Ele “eliminou” definitivamente o muro que dividia o sagrado e o profano”. (p. 25). Pode-se dizer assim que o profano em Buber com o existencialismo religioso do eterno diálogo entre Eu-Tu, Eu-Isso e Eu-Tu eterno não há negação da realidade profana; o profano é o meu outro, que não preciso negar como algo mal, ruim, mas alteridade. Logo, a religião em sua forma de plenitude, em sua forma genuína, deve ser pura abertura de encontro, de respeito ao outro; o fechar-se, negar o outro, o mundo, é negar a relação com o Tu e com o Tu eterno. E ao mesmo tempo negar uma dessas dimensões Eu-Tu e Eu-Isso, é negar-se a si mesmo, logo um estado de incompletude e um desequilíbrio psicológico.

            Aqui se mostra a necessidade da relação, da abertura para o encontro com o outro, com alteridade. Neste sentido a saúde se dará como encontro de abertura na diferença. Sua compreensão do Divino é de um Ser, Tu eterno (Divino) que se faz presente enquanto relação neste mundo concreto, existencial, nas relações entre os entes existentes: “Na vida, como entende e proclama o hassidismo, não há consequentemente, nenhuma distinção essencial entre os espaços sagrado e profano”. (2012, p. 20). 

Compreendemos assim que a pessoa “completa”, que vive um estado de equilíbrio e bem estar, com equilíbrio psicológico, estará mostrando um estado suficientemente “bom” entre as relações com um Eu-Tu, e um Eu-isso e Eu-Tu eterno. É a unidade com essas dimensões e não a negação de uma delas: um Eu-Tu, Eu-Isso que nos dará condições suficientemente boas para um bem-estar e saúde mental. O homem só será pleno quando estabelecer um equilíbrio nessas formas de estar no mundo. Diríamos uma relação suficientemente boa para sua forma de ser enquanto pessoa.

Martin Buber no seu existencialismo religioso, do eterno diálogo do homem diante do mundo no qual ele se posiciona nas palavras-princípio “Eu-Tu e o Eu-Isso”; “Eu-Tu” se dá tanto nas relações com o Tu na relação com outros entes, como com o Tu eterno. Para Buber estar em relação com Deus é estar em relação com o mundo; abrir-se para Deus é abrir-se para o mundo, para as pessoas. Deus se faz presente no mundo, em sua criação em todos os entes:

O indivíduo corresponde a Deus quando, de um modo humano, abraça a porção do mundo que lhe é oferecida, assim como Deus abraça, de um modo divino, a sua criação. Ele atualiza a imagem quando, na medida do possível, ao seu modo próprio de pessoa, diz Tu com seu ser aos seres que vivem em seu redor.  (1982, p. 98).

Dessa forma não existem dicotomias entre Deus e mundo; Deus e sua criação, Ele não é Aquele distante e inacessível, ou seja, uma compreensão “esquizofrênica” de dois mundos separados, mas os coloca em plena relação, não há negação do mundo como algo não essencial, não importante – corresponder a Deus é responder aos semelhantes. Renunciar o mundo, a criação, é entender mal a Deus de forma mais sublime:

Isto significa entender mal a Deus da forma mais sublime. A criação não é uma barreira no caminho que leva a Deus, ela é este próprio caminho... As criaturas são colocadas no meu caminho para que eu como criatura como elas, encontre Deus através delas e com elas. (1982, p. 93). 

Outra compreensão ingênua com referência a fé é quanto à questão do amor: criou-se muita confusão e distorção como que amar a Deus é rejeitar o amor às pessoas; entre pessoas e entre homem e mulher. Buber comenta a renúncia do amor de Kierkegaard a Regina Olsen sua noiva: “Tive que remover o objeto”; aqui se referindo ao objeto de amor, no caso a noiva que Kierkegaard renunciou para ter seu amor só em Deus. Sobre isso afirma Buber: “Isto significa entender mal a Deus da forma mais sublime”. (1982, p. 93). E continua: “Deus quer que a ele venhamos por meio das Reginas que criou e não por meio da nossa renuncia a elas”. (idem, p. 94). Essa sua forma de compreensão, ou seja, de que não há separação, não há negação entre viver o amor a Deus e entre pessoas, não exige exclusão do amor físico, não haveríamos de renunciar amor “Eros” por uma exclusividade ao amor “Ágape”, ou seja, um amor de “fraternidade, amor entre irmãos. Para o autor, não há negação do amor carnal em detrimento do amor a Deus. O que podemos afirmar é que deve esse amor, entre pessoas, acontecer numa relação no modo Eu-Tu e não Eu-Isso; na qual as pessoas são coisificadas.

Esta posição é afirmada também quando diz: “Quando um homem ama uma mulher de tal modo que ele a torna presente em sua vida, o Tu do olhar dela permite vislumbrar um raio do Tu eterno”. (2001, p. 119).

Na clínica psicológica, frequentemente encontramos pessoas que sofrem por uma mal interpretação dos textos bíblicos. Na sua experiência religiosa a partir de alguns textos acreditam que amar a Deus sobre todas as coisas implica em negar o afeto pela pessoa amada.

 Outro dia alguém me falou: “Meu casamento não deu certo! Agora estou livre para me dedicar inteiramente a Deus”. Isto é a forma mais errada de se compreender a Deus. Exclusividade a Deus não pode ser exclusão da sua criação – amamos a Deus nas mediações que Ele nos dar no mundo. No dizer de Buber: “Isto significa entender mal a Deus da forma mais sublime”. (1982, p. 93). Para ele  a exclusividade supõe a inclusividade; incluir. 

Muitas vezes, essa posição é fundamentada em passagens dos Evangelhos que diz: “Se alguém vem a mim, não dá preferência mais a mim que ao seu pai, à sua mãe, à mulher, aos filhos, aos irmãos, às irmãs, e até mesmo à própria vida, esse não pode ser meu discípulo”. (Lc.14: 26). Neste texto, pode-se entender que Jesus está nos pedindo para se excluir, negar até mesmo os outros em função dele. Isto seria mesmo contraditório, pois se ele nos convida a amar a todos, como agora estaria pedindo para renunciar os mais próximos, as pessoas mais queridas? Pelo contrário, o que ele quer é que incluamos todos; que ninguém seja excluído, mas incluído. Amar a ele é não se negar a amar.

Uma passagem que poderíamos entender da mesma forma é da exclusão por parte de Jesus de seus irmãos e mãe. Diz o texto:

Nisso chegaram a mãe e os irmãos de Jesus; ficaram do lado de fora e mandaram chamá-lo: havia uma grande multidão sentada ao redor de Jesus. Então, lhe disseram: Olha, tua mãe e teus irmãos estão aí fora e te procuram. Jesus perguntou: quem é minha mãe e meus irmãos? Então Jesus olhou para as pessoas que estavam sentadas ao seu redor e disse: Aqui estão minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe. (Mc. 3: 31-35).

Nestas palavras o que se percebe é que não há exclusão, e sim inclusão: Jesus inclui todos como sendo da sua família; convida-nos à exclusividade que também deve levar à inclusividade, isto é, não se exclui partes; mas todos são incluídos no todo, na Totalidade.

Segundo Buber (2001), na relação com o Divino, com o Tu eterno, acontece a exclusividade e a inclusividade:

Na relação com Deus, à exclusividade absoluta e a inclusividade absoluta se identificam. Aquele que entra na relação absoluta não se preocupa com nada mais isolado, nem com coisas ou entes, nem com a terra ou o céu, pois tudo está incluído na relação. Entrar na relação pura não significa prescindir de tudo, mas sim ver tudo no Tu; não é renunciar ao mundo, mas sim proporcionar-lhe fundamentação. (p. 101).

Muitas dessas passagens bíblicas infelizmente foram usadas para justificar a renúncia e que muitos precisavam fazer para se dedicar ao trabalho da Igreja; de uma missão ou mesmo justificar-se na sua própria incapacidade de amar alguém. Quando olhamos estes textos fora do contexto, podemos entender tudo isso. Como diz Buber: “O amor exclusivo a Deus (“com todo teu coração”) é, porque ele é Deus, um amor inclusivo, pronto a acolher e incluir todo amor” (1982, p. 93). É interessante perceber aqui que o amor é “inclusivo” e não excludente.

Portanto, esta forma de compreensão tem causado muito mal, muita angústia para algumas pessoas. Em psicoterapia já encontramos situações extremas em que uma das partes do casal; muitas vezes a mulher sofre e gera sofrimento ao marido porque queria ter seu amor exclusivo para Deus; renunciando ao “amor carnal”. Isto é chocante; pois se pode perceber até que ponto se distorcer uma compreensão em relação a Deus e ao amor. No entanto, não se pode confundir o amor a que aqui falamos com o amor que se observa em alguns comportamentos em que o outro não visto como pessoa, mas do contrário é objeto de desejo e exploração; não passa de mero objeto de minha satisfação e realização de minhas fantasias sexuais.  Neste sentido quando se pensa em Deus que nos criou sexuados, por uma fé ingênua, imatura passamos a negar a nossa própria sexualidade dada, criada pelo próprio Deus. Assim excluímos partes em nós; negamos parte do que somos; e o pior é que muitas pessoas adoecem, pois tem que viver em conflito com seus desejos reprimidos como Freud nos chamou a atenção.     

Outra forma de compreensão ingênua é no que se refere ao mito Bíblico de Adão, que narra a queda. A partir daí o pecado fez do homem o ser da separação, perdendo com isso sua unidade original. Em função disso, muitos vivem se lamentando, culpando Adão e Eva por terem trazido o sofrimento e a morte; acreditam que por causa deles nos tornamos finitos.

 Assim vivemos repassando responsabilidades ao outro e vivendo no sentido de Heidegger na inautenticidade: fugindo da finitude, da morte. Na verdade este mito da queda e separação quer nos fazer tomar consciência da nossa finitude; é uma maneira mítica de nos falar. O homem está “condenado” a viver uma batalha pela vida, num mundo de possibilidades, de incertezas. Ele está “só” e jogado agora à sorte. Teologicamente, podemos interpretar que o homem ao pecar com a desobediência a Deus que Lhe proibiu de comer o fruto do conhecimento, que por sua vez tornaria os homens conhecedores do bem e do mal.

Ao tomar a decisão de arriscar a se tornar dono de seu destino; o homem acreditou que se tornaria Deus: “Então a serpente disse a mulher: “De modo nenhum vocês morrerão. “Mas Deus sabe que, no dia em que vocês comerem o fruto, os olhos de vocês vão se abrir, e vocês se tornarão como deuses, conhecedores do bem e do mal”. (Gn. 3: 4-5).

Foi nesta ousadia de se desligar de Deus que o homem perdeu sua condição originaria. Este corte, escolha de se desligar de Deus, significou a “expulsão do paraíso” definitivamente. Paraíso entendido aqui como ligação original com seu “mundo animal”. Agora o homem se tornou racional. Com sua queda, o homem está condenado a viver essa separação que podemos chamar de separação ontológica. Ele agora não tem mais caminho seguro, agora terá que caminhar em busca dessa unidade perdida. Não tem mais porto seguro, não tem mais garantias prévias; tudo está em abertura e possibilidades. À semelhança do que Heidegger chama de Dasein, de ser-aí-jogado.

Compreendemos que a condição de Dasein acontece na queda do mito Bíblico. Na queda o homem se desvinculou de sua unidade originária, de sua natureza animal como dos outros animais que permaneceram nessa condição. Na queda, homem é Dasein, está jogado à sua própria sorte, ao seu próprio destino. O mito narra que depois da queda o homem recebe um “castigo de Deus” e nos mostra esta nova condição do homem:

Javé Deus disse então a mulher: “Vou fazê-la sofrer muito em sua gravidez: entre dores, você dará à luz seus filhos; a paixão vai arrastar você para o marido, e ele a dominará”.  Javé Deus disse ao homem: “Já que você deu ouvido à sua mulher e comeu da árvore cujo fruto eu tinha proibido comer, maldita seja a terra por sua causa. Enquanto você viver, você dela se alimentará com fadiga. A terra produzirá espinhos e ervas daninha, e você comerá erva dos campos. Você comerá seu pão com o suor do seu rosto até que volte para ela, pois dela foi tirado. Você é pó, e ao pó voltará. (Gn. 3: 16-19)

Nesta história do mito, podemos compreender a nova condição do ser do homem: está jogado às próprias condições, jogado no mundo, ele é quem deve buscar suas próprias condições para viver. Toma conhecimento de sua condição: está nu, ou seja, totalmente desprotegido, sem proteção alguma; sem nenhuma segurança, nenhuma certeza: tudo é possibilidade, tudo pode acontecer. Terá que viver nesta incerteza; quanto ao que será, nenhum conhecimento lhe dará segurança; ele não tem garantias. Terá que trabalhar, haverá dor e sofrimento e com este “pecado” ele toma consciência de que é mortal. Morrerá, a grande angústia para o homem; ele é Dasein. Resta-lhe agora buscar encontrar meios para superar esta separação, porém não será mais possível: ele não pode ser o que era antes, não pode ser mais sem razão – e agora conhecedor do bem e do mal resta-lhe procurar caminhos para minimizar esta separação.

Entendemos que o mito da queda quer nos mostrar muito mais a condição humana como Dasein, que simplesmente mostrar a desobediência a Deus, o homem se torna mortal. Seria possível outra interpretação? Sim, afinal a pergunta colocada poderia ter sido: por que sofremos, por que morremos?  Tudo a partir da consciência que o ser humano tinha tomado da sua condição de ser mortal; ser finitude; e que através de um mito tenta responder a sua angústia.

Rudolf Bultmann (1987), teólogo protestante, lembra-nos que o verdadeiro sentido do mito não é oferecer uma compreensão objetiva da realidade, mas como o homem se compreende no mundo; como este ser-aí:

O sentido verdadeiro do mito não é proporcionar uma concepção objetiva do universo. Ao contrário, nele se expressa como o ser humano se compreende em seu mundo. O mito não pretende ser interpretado cosmologicamente, mas antropologicamente – melhor: de modo existencialista. O mito fala do poder ou dos poderes que o homem supõe experimentar como fundamento e limite de seu mundo, bem como de seu próprio agir e sofrer. No entanto, fala desses poderes de tal modo que conceptualmente os inclui no círculo da vida humana, de seus afetos, motivos e possibilidades. ( p. 20).

Percebe-se que o mito “é uma forma” de conhecimento que quer nos falar de nossa condição existencial de uma forma diferente, ou seja, mitológica, com forte caráter simbólico. No próprio ato da criação o homem já é criado na sua condição de ser para finitude, mortal; não é o pecado que lhe dá essa condição de: ser limitado, formado da matéria finita, em condição de finitude: “Então Javé modelou o homem com argila do solo”. (Gn. 2: 7).

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO III

GESTALTTERAPIA E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA ENQUANTO RELAÇÃO E CURA

As linhas de todas as relações, se prolongadas, entrecruzam-se no Tu eterno. Cada Tu individualizado é uma perspectiva para ele. Através de cada Tu individualizado a palavra - princípio invoca o Tu eterno. (Buber, 2001, p. 99).

Somos alteridade – no princípio é alteridade; somos gerados num corpo que é nossa alteridade, não nos geramos em nós mesmo, mas em outro corpo; alimentamo-nos dele e nele: aí vamos crescendo; desenvolvemo-nos, dele precisamos para sobreviver; sem ele morreríamos; e tudo deve estar em pura harmonia, isto é, aceitação do outro: inclusão.  Todavia se o outro nos rejeitasse também não teríamos chance nenhuma. Necessitamos da nossa alteridade desde a concepção. E quando nascemos nos encontramos em um mundo que é pura alteridade: plural e singular. Somos assim uma singularidade dentro deste mundo pleno do outro.

Portanto, estamos “condenados” a viver em relação. Parafraseando Sartre, em sua conhecida afirmação, “a existência precede a essência”; ou seja, a essência requer ou supõe a existência; afirmamos que a relação requer alteridade; pois relação supõe alteridade.  Se a relação é fruto de uma reciprocidade, do contato, do encontro com o outro, com um Eu-Tu ou Eu-Isso somos alteridade. Se aceitarmos que somos alteridade; isto tem implicações para nosso estar-no-mundo; significa que não posso fugir da relação, apesar de ser também uma escolha à fuga. Entretanto, necessitamos para um estado de equilíbrio e saúde, buscar a relação; de viver em relação para poder ser, para nos realizarmos em nossa condição humana. Buber nos diz que não há um Eu em si, mas sim como fruto da relação. Se o Eu-Tu e o Eu- Isso é resultado da relação, significa que não posso ser se não dentro e na relação.

Yontef, (1998) compartilha dessa mesma ideia, da necessidade do diálogo para nossa cura quando diz: “[...] A cura está no viver em diálogo”. (p. 265). Isto é, viver em relação nos leva á saúde.

Buscamos apresentar em nossas reflexões a experiência religiosa enquanto experiência de alteridade – somos alteridade e vivenciamos essa alteridade nas relações humanas e com o Sagrado.

 Richard Hycner (1997, p.35) comenta: “No cerne da terapia de abordagem dialógica há a preocupação predominante com a pessoa como um todo, não se detendo em determinado aspecto ou dimensão: intrapsíquica, interpessoal ou transpessoal (ontológica)”. A partir daí, pretendemos refletir sobre a importância e a necessidade da relação como promotora da saúde tendo a psicoterapia e a experiência religiosa como instrumentos, espaços de encontro e relação, como possibilidade para saúde mental e bem-estar. Insistimos em lembrar que não há saúde quando rejeitamos as partes, e sim quando as integramos. No momento em que partes são alienadas – adoecemos.

Lynne Jacobs (1997), falando da importância da relação para qualquer psicoterapia nos diz que:

Existem duas grandes ênfases para descrever a natureza da relação em qualquer terapia: o papel da relação e as características da relação. O papel se refere à importância da relação como fator de cura em face de outros fatores [...] As características de uma relação se referem a gama de comportamentos considerados válidos e permissíveis pelo terapeuta e à estrutura da relação paciente-terapeuta. (p. 67).

Neste sentido, compreendendo que o nosso foco é a experiência religiosa enquanto possibilitadora da saúde; queremos então refletir o papel da religião enquanto relação e consequentemente cura. Que características ela poderia manifestar para facilitar e promover o que aqui está se propondo, isto é, relação e saúde?

Quando se trata de relação dialógica em psicoterapia e de forma particular em Gestaltterapia, está se buscando identificar qual o objetivo e como alcançá-lo, observando, a partir de certas características, se os meios estão sendo adequados. Assim, se faz necessário refletir sobre possíveis características, comportamentos, ou formas de vivência da fé; modos de experienciar o Sagrado que possibilitam o acontecer de uma relação plena em que se permita integração e inclusão das partes no Todo. No nosso caso específico, refletir como a crença religiosa pode exercer sua natureza de cura. Que características básicas seriam importantes e suficientes para permitir que tal experiência religiosa possa realizar relações dialógicas de totalidade?

 Dessa forma, chamamos atenção para diferentes modalidades de experiência religiosa, as que permitem uma relação de totalidade, de unidade; e que são integradoras, isto é, as que no mínimo não dificultam e não inviabilizam; ou seja, uma modalidade de experiência religiosa que procura integrar as partes num todo, que não gera dicotomias, separações, com isso promove Gestalten que permitem a saúde. Ao contrário, quando não há integração, as partes são vistas como separadas; ou seja, excluídas e alienadas – inviabilizando uma relação dialógica e, desta forma, impossibilitando a saúde.

Se entendermos e aceitarmos que somos alteridades e, se somos alteridade em relação a outras alteridades; somos parte de um todo, de uma totalidade – não podemos fugir de estar sempre buscando a relação e a integração, ou seja, “tudo incluir, nada excluir”.

Jorge Ponciano Ribeiro (2009) comenta sobre alguns instrumentos que se mostram mais próximos à experiência da espiritualidade. Para ele, se o processo da psicoterapia dispõe de alguns instrumentos para o tratamento, também a espiritualidade tem seus meios; e, melhor, o terapeuta pode também se valer deles:

O processo terapêutico e o da busca da Espiritualidade visam à mesma compreensão, à mesma procura, tem a mesma finalidade: conduzir a Pessoa Humana a uma relação Eu-Tu consigo mesma, em que desapareçam os adjetivos coisificantes e emerja a beleza da contemplação de ser Pessoa [...] Assim como o processo terapêutico tem seus instrumentos de trabalho, também a Espiritualidade pode ser incentivada, explicitada mais sensivelmente, por meio de alguns instrumentos. (p. 183).

Passamos a apresentar alguns desses instrumentos que trazem características que nos orientam para uma distinção necessária do que sejam formas, modalidades de vivência da crença, da espiritualidade que permitem um bom transitar entre as polaridades, nas diferenças e nas alteridades; e outras que, ao contrário, não facilitam essa boa relação.

O primeiro a ser comentado é “a experiência exercitada de Deus”. Neste instrumento, o autor procura apresentar a importância do corpo como o veiculo de relação, de contato, de comunicação. Assim, o corpo não é visto como negação, algo ruim, “pecaminoso” como tomado por algumas compreensões da experiência religiosa: “o corpo como lugar do pecado; prisão da alma, negação do espiritual”; ou seja, como dicotomia; há uma evidente exclusão. Entretanto no corpo se encontra a dimensão do Sagrado: “Ou vocês não sabem que o seu corpo é templo do Espírito Santo, que está você e lhes é dado por Deus”? (1 Cor. 6: 19).

O mesmo autor nos fala da importância do corpo como instrumento para entrar em contato, em relação:

O corpo humano é a explicitação mais clara do caráter complexo das potencialidades que nele existem em ato. Nele tudo muda nele tudo depende de tudo, nele tudo é um todo. Ele é puro contato. Não nos esqueçamos de que o instrumento principal da Espiritualidade é o contato, em primeiro lugar conosco, depois com o outro e depois com o meio ambiente [...] Somente por meio de um profundo contato conosco e com as coisas podemos acessar Deus [...] Deus não está nos céus, está nas coisas à nossa volta. Ele é a fonte suprema de contato porque Nele essência e existência se confundem, o “que” e o “como” se encontram. Ele é o único Todo sem partes [...] Gestalt é contato, é terapia de Totalidade. Deus é contato, Deus é Totalidade, Deus é Gestalt plena. (Ibid., p. 184-185, 2009).

Outro instrumento é a oração. Compreendemos que Jorge Ponciano (2009) apresenta uma dimensão ontológica da oração, conforme comenta a seguir:

Não me refiro àquela oração do “pedir”: “Oh! Meu Deus me dá, me ajude, se o senhor me conceder isso, eu faço isso e isso como agradecimento”. Isso não é orar, é negociar com Deus. Orar, e daí vem à palavra “oração”, é um sublime momento em que a Pessoa entra no mais intimo de si e aí se encontra com o Tu Absoluto e se confunde com Ele. O Isso desaparece, a Presença toma conta de toda pessoa e ela se coloca diante de Deus com profundo dar-se conta, com uma awareness plena, de que parte desapareceu no Todo. Orar é encontrar a própria Totalidade Nele. É estar num campo unificado de forças, no qual a vontade da pessoa cessa e surge uma absoluta confluência, fruto de um entregar-se total ao melhor dos amigos. Orar é um perfeito ajustamento criativo, ou melhor, criador, porque na oração, ao me entregar totalmente a Deus, confundo-me com Ele e, desaparecendo a relação parte e todo, a entrega se transforma em contato e encontro, surgindo daí uma totalidade, como uma configuração perfeita (p. 188).

Aqui nos chama a atenção o autor Jorge Ponciano de que em muitas formas de oração ou algumas modalidades da experiência religiosa não permite a awareness que é uma forma de contato com a realidade; com a necessidade real do indivíduo. Awareness ou o está aware segundo Gary Yontef : “É uma forma de experiência que pode ser definida aproximadamente como estar em contato com a própria existência, com aquilo que é [...] Awareness total é o processo de estar em contato vigilante com os eventos mais importantes do campo indivíduo/ambiente, com total apoio sensoriomotor, emocional, cognitivo e energético”. (1998, p. 30-31).

Ginger, Serge (2007), nos diz em que consiste está awareness:

A awareness, ou tomada de consciência global, consiste em estar incessantemente atento ao fluxo permanente das sensações físicas, dos sentimentos, das ideias, à sucessão ininterrupta das “figuras” que aparecem no primeiro plano de minhas preocupações, no “fundo” constituído pelo conjunto da situação que estou vivendo e da pessoa que sou – isto ao mesmo tempo no plano corporal, emocional, imaginário, racional ou comportamental. (p. 33).

Ora, Jesus nos mostra no próprio Evangelho as contradições, orações que não estão dentro dessa dimensão em que não permite awareness. Na experiência do cotidiano o que se observa é a negação daquilo que a oração deveria favorecer. No Evangelho de Lucas, temos exemplificada tal situação. Diz o texto:

Para alguns que confiavam na sua própria justiça e desprezavam os outros, Jesus contou a seguinte parábola. Dois homens subiram ao Templo para rezar; um era fariseu, o outro era cobrador de impostos. O fariseu, de pé, rezava assim no seu intimo: Ó Deus, eu te agradeço, porque não sou como os outros homens, que são ladrões, desonestos, adúlteros, nem como esse cobrador de impostos. Eu faço jejum duas vezes por semana e dou o dízimo. O cobrador de impostos ficou a distância, e nem se atrevia a levantar os olhos para o céu, mas batia no peito, dizendo: Meu Deus tem piedade de mim, que sou pecador! Eu declaro a vocês: este último voltou para casa justificado, o outro não. (Lc. 18: 9-14).

Ou seja, a forma de orar do fariseu é de exclusão, de separação; e não ao que ela se propõe que é incluir, integrar. Em seguida nos apresenta o sentido verdadeiro, mostrando que a oração é um instrumento para construir relação, quebrar barreiras, ser meio de união, de contato, de integração: “Portanto, se você for até o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que o seu irmão tem alguma coisa contra você, deixa a oferta aí diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu irmão; depois volte para apresentar a oferta”. (Mt. 5: 23-24).

Entendemos que para a Gestaltterapia a saúde é um processo de inclusão das partes no Todo; não há, portanto saúde quando alienamos as partes. No caso específico aqui houve a exclusão do outro, da relação, o perigo do fechar-se e do isolamento. Assim nos fala Jorge Ponciano: “Todas as patologias residem na atomização do Todo, no privilegiamento das partes, na exploração do sistema e da perda do sentido da totalidade que é o que constitui a essência humana” (2009, p. 182). 

Richard Hycner (1997) igualmente acredita que, ao se fechar às relações, ao não se entrar em contato, se busca o isolamento e a partir daí o adoecimento: “A “fuga do encontro”, leva a uma introversão elementar que forma o cerne da neurose. Na introversão elementar, o self volta-se para si mesmo e se isola da profunda nutrição da alma, vinda dos outros”. (1997, p. 74). Neste sentido, pode-se falar de uma vivência religiosa carregada de moralismos, baseada em fundamentalismos na qual se cria dicotomias; levando seus membros à introversão e ao isolamento, leva-nos ao desenvolvimento de neuroses.

Encontramos na clínica psicológica situações de grandes conflitos nos sujeitos religiosos a partir da compreensão ou da experiência que tem com o Divino. Tanto em pessoas individualmente como em casais. Muitas vezes uma das partes, um dos cônjuges por causa de sua compreensão do Sagrado ser dicotômica, ou seja, o Divino fora da realidade das coisas do mundo, não participar da vida do outro; se isola e se fecha.  Há mesmo caso de separações, término de relações. Exemplo: uma parte que evita eventos sociais de forma geral e em particular “festas” profanas; ou melhor, culturais.

Também situações que uma das partes querendo “exclusividade” para a relação com o Divino; se abstem até da dimensão afetiva-sexual com o outro. Exclusividade para com o Divino, não é excluir o outro, mas é mais incluir o outro no meu amor. Deus não quer “exclusividade” quando isso supõe que o outro exclua parte de si e o outro: “E este é justamente o mandamento que dele recebemos: quem ama a Deus, ame também o seu irmão”. (1 Jo 4: 21).

O que percebemos muitas vezes por traz de certas “modalidades” da experiência religiosa é que há um fechamento para o diálogo, para o respeito as alteridades; de lidar e transitar na diferença. São modalidades, experiências religiosas que o Divino é visto em uma alteridade absoluta. Esse tipo de experiência gera neurose de tudo que é do “mundo profano”.

No entanto é possível uma transformação: “Na pessoa neurótica, entretanto, agita-se ainda um profundo ‘desassossego do coração’, no qual o self original, na carência e na expectativa de uma ajuda transcendental, secretamente se faz perceptível”. (Hycner apud Trüb 1997, p. 77). Portanto, há sempre a possibilidade de um abrir-se para a relação e o diálogo. 

Buber nos lembra de que somos relação; “No começo é a relação”; isto é, o ser humano é relação enquanto vive. Segundo ele: “Não há Eu em si, mas apenas o Eu da palavra-princípio Eu-Tu e o Eu da palavra-princípio Eu-Isso”. (2001, p. 51).  Ou seja, o Eu é fruto da relação com o outro; o que significa que é fruto da alteridade.

Na relação com o outro, o Eu tanto pode se colocar como um Tu ou como um Isso. Caso o Eu seja fruto da relação com o outro; o encontro passa a ser uma necessidade para podermos ser; ele sempre acontece na alteridade; e se somos alteridade, logo podemos dizer que o humano é um ser de abertura; ser para a relação e a inclusão. Quando isto não acontece podemos falar de insanidade; algo de “patológico” está presente.

 Fritz Perls (1988) comenta: “O organismo tem tanta necessidade psicológica como fisiológica de contato; ela é sentida cada vez que o equilíbrio psicológico é perturbado, assim como as necessidades fisiológicas são entendidas sempre que o equilíbrio fisiológico é alterado”. (p. 22).

Ainda para o mesmo autor:

O homem necessita dos outros para sobreviver fisicamente. Suas probabilidades de sobrevivência fisiológica e emocional são ainda menores se for deixado só. No nível psicológico, o homem necessita de contato com outros seres humanos, assim como, no nível fisiológico, necessita de comida e bebida (1988, p. 39).

            Nestas palavras de Fritz Perls, se mostra a importância ou mesmo o imperativo da nossa necessidade de estabelecer relações e diálogo entre as pessoas e com toda a natureza, com o universo. Como lembra o autor precisamos dos outros, da relação para viver; como precisamos do alimento; então, fugir desse “alimento”, ou seja, daquilo que nos fortalece, nos dá condições de viver, aumenta a nossa possibilidade de adoecermos. No entanto, para construir relação é necessário proximidade, reciprocidade, aceitação de si e do outro; da alteridade como nos diz o próprio Buber: “Que ninguém tente debilitar o sentido da relação: relação é reciprocidade” (2001, p. 54).

Todavia, é hora de nos perguntarmos: como então se poderia dar a relação com o Tu eterno como uma alteridade enquanto o “totalmente outro”? Para nossa compreensão, já comentamos que Ele é distinto, porém não tanto que anule partes, ou seja, a alteridade humana. Pois no momento em que uma das partes não é acolhida, mas é tolhida; se impede e impossibilita a relação. Assim, em nossa perspectiva, ou seja, para se estabelecer uma relação de reciprocidade dialógica entre o Divino e o humano, e que se possa manter a identidade entre elas; precisamos compreender a alteridade de forma não absoluta, mas relativa, isto é, enquanto diferenciação. Como nos diz Buber:

Todavia, deve-se acima de tudo, evitar interpretar o diálogo sobre o qual eu falei neste livro e em quase todos que o seguiram, como algo que ocorresse simplesmente à parte ou acima do cotidiano. A palavra de Deus aos homens penetra todo evento da vida de cada um de nós (2001, p. 138).

Não basta nos darmos conta de que somos alteridades, reconhecer o outro, mas é importante estabelecer uma relação dialógica na qual se mantém a identidade e se respeita as alteridades. Para Buber, viver a relação Eu-tu é acolher a minha alteridade (o outro) num encontro dialógico. Diante da minha alteridade, é necessário estabelecer um equilíbrio da relação Eu-Tu e Eu-Isso. Portanto, somos alteridade mesmo na nossa forma de estarmos no mundo em relação com as outras alteridades. Nossa atitude é dupla como diz Buber; porém o mesmo nos adverte que quando vivemos só na relação Eu-Isso não somos plenos, podemos adoecer.

 Podemos assim falar que é necessário incluir, integrar as partes, ou seja, para sermos “completos”, estarmos em harmonia; temos que realizar a Gestalt; buscar sempre o equilíbrio da relação entre o Eu-Tu e o Eu-Isso. Quando não integramos e do contrário excluímos, negamos partes, adoecemos: adoece a pessoa, a comunidade, o planeta. Tudo no Todo, Tudo em uma Totalidade. Como diz Buber: “E com toda seriedade da verdade, ouça: o homem não pode viver sem o Isso, mas aquele que vive somente com Isso não é homem”. (2001, p. 72). Ou seja, não somos “plenos”; quando negamos partes, alienamos dimensões em nós, adoecemos. Pode-se dizer neste sentido que a Gestalt concebe o humano dentro do conjunto, na sua totalidade.

Yontef (1998) nos chama a atenção para um perigo quanto a atitude de Buber na terapia. Entendendo que a gestaltterapia tem como objetivo a awareness, ou seja, leva o outro a se dar conta de como esta fazendo; com a atitude de Buber do Eu-Tu se poderia entender um deveria: “[...] Tem o perigo de transformar o Eu e Tu num deveria, num objetivo terapêutico. Nosso objetivo na Gestalt-terapia é a awareness do Isto, Tu, de como alguém pode se relacionar de ambas as maneiras, e, portanto, escolher e ser capaz de se relacionar Eu e Tu. (p. 262).

No entanto, não podemos deixar de compreender essa advertência de Yontef (1998) como apenas chamar nossa atenção; pois é o mesmo que diz: “[...] O terapeuta é responsável pela manutenção de uma atmosfera condutora ao Eu-Tu por ser especialista nas exigências técnica do diálogo e do trabalho de awareness”. (p. 263).

Ainda Yontef (1998) nos diz que: “Qualquer rejeição das próprias ideias, ações ou emoções resultam em alienação. Recuperar a aceitação permite a pessoa ser inteira”. (p. 39)

A clínica psicológica é o lugar onde se pode falar de um encontro dialógico entre alteridades: cliente e psicoterapeuta. O cliente a partir de um acolhimento diante de um Tu pode se confrontar; reconhecer e identificar tudo ou parte daquilo que nele se alienou; impossibilitando o viver com “liberdade”, o assumir sua história de vida ou refazer a mesma. Só na relação Eu-Tu podemos reencontrar nossa liberdade. Assim nos fala Buber: “Somente àquele que conhece a relação e a presença do Tu, está apto a tomar uma decisão. Aquele que toma uma decisão é livre, pois se apresenta diante da Face” (Ibid., p. 83).

 

3.1 Gestaltterapia, experiência religiosa e Fronteira de Contato: possibilitando cura.

           

            Gostaríamos de esclarecer neste início de reflexão a que nos referimos quando usamos os conceitos de “fronteira de contato” e “cura” para a compreensão da gestaltterapia e a nossa compreensão. Comecemos pelo conceito de cura. Para entender o que significa cura é importante saber o seu oposto, ou seja, a doença.

            Serge Ginger (1995) nos lembra de que no preâmbulo de sua concepção de saúde, a Organização Mundial da Saúde afirma: “A saúde não é a ausência de doença ou de enfermidade, mas um estado de completo bem-estar físico, mental e social” (p. 14). Neste sentido queremos deixar claro que ao nos referirmos à cura não significa reparação de qualquer “distúrbio” ou doença física; mas de busca de um bem-estar geral. A cura é como se vê na definição “um bem estar físico, mental e social”. Chamamos a atenção para a expressão bem-estar social; pois como veremos esta é uma constante na experiência de muitos nas curas realizadas no Evangelho por Jesus. Elas têm caráter de integração, de inclusão, ou seja, está para além da reparação de um membro ou de algum distúrbio.      

Para a Gestaltterapia, o conceito de “fronteira de contato” é de fundamental importância. Frederick Perls (1997) define “fronteira de contato” como: “A essa margem flutuante onde ego e o outro se encontram e algo acontece; a Gestaltterapia dá o nome de ‘fronteira de contato’”. (p. 25). Portanto, há um espaço em que se estabelece relação e diálogo através do contato e do encontro do indivíduo com o meio em que está inserido, mas que se mantém igualmente uma distância entre o ego e o outro; ou seja, permanece a autonomia das partes, da alteridade. Portanto, é na “fronteira de contato” que podemos nos diferenciar respeitando o outro e mantendo nossa identidade e autonomia.

Polster, Erving (2001) nos fala da importância da fronteira de contato como esta margem, este espaço de “separação”, distinção necessária do eu e do não eu: “A fronteira de contato é o ponto em que o indivíduo experiência o “eu” em relação ao que é não-“eu” e, por esse contato, ambos são experienciados mais claramente”. (p. 115).

            Alejandro Spangenberg (2004) diz: “Desenvolvemo-nos, numa perpétua inter-relação entre nós e o ambiente, entre o eu e o não eu, entre o que somos e o que não somos. Este intercâmbio acontece no nível do que chamamos de fronteira de contato”. (p. 39). Nestas palavras se pode dizer que o reconhecimento, a aceitação do outro; de nossa alteridade nos leva à saúde. Desenvolvimento aqui se trata de crescimento, ou seja, crescimento e maturidade se dão em contato e na relação com o outro.

            Gary M. Yontef (1998) complementa o acima comentado quando diz:

A fronteira entre o self e o ambiente deve ser mantida permeável para permitir trocas, porém suficientemente firme para ter autonomia. [...]. Quando a fronteira entre o self e o outro perde a permeabilidade, à nitidez, ou desaparece, isso resulta na perda da distinção entre o self e o outro, um distúrbio tanto de contato como de awareness. (p. 28).

Ainda para o Gary M. Yontef (1998): “No bom funcionamento da fronteira, as pessoas alternam união e separação, entre estar em contato com o ambiente atual e o afastamento da atenção do ambiente”. (Ibid.). Ou seja, a saúde acontece nesse poder transitar entre um Eu-Tu e um Eu-Isso. São estes dois modos de estar no mundo segundo a compreensão de Buber e Mircea Eliade.

            A saúde acontece quando também a fronteira de contato funciona bem, ou seja, quando podemos transitar, compreender e aceitar viver este estado de alternância na relação do Eu-Tu e Eu-Isso. Quando negamos ou fugimos dessa forma de contato, estamos nos negando a sermos em nossa totalidade; a sermos homens. Isto pode inviabilizar nosso bem-estar pleno.

           

3.2 Fronteira de Contato na experiência religiosa

Podemos encontrar dificuldades na fronteira de contato tanto em pessoas religiosas e não religiosas. Chamamos a atenção dessa limitação ou dificuldade de contato e encontro dialógico na fronteira; que impede um bom funcionamento não só do religioso como já falamos; pois existe também em outras dimensões ou espaços sociais. Como aponta Buber: “O homem que se conformou com o mundo do Isso, como algo a ser experimentado e a ser utilizado, faz malograr a realização deste destino” (2001, p.75).

No entanto, não se pode viver somente no Tu; o Tu é exclusividade da presença; se dá na relação do aqui e agora. Este é o perigo para as pessoas religiosas que fazem a experiência do sagrado em modalidades em que o Divino é um “Totalmente Outro”, totalmente diferente do que é humano; fora daquilo que é do cotidiano; daquilo que é corriqueiro, ou seja, a realidade do mundo é negação da presença do Divino. Algumas pessoas religiosas sofrem muito por não saberem ou negam-se a transitar na relação Eu-Isso e Eu- Tu – ficam se culpando por frequentemente não aceitar a “realidade” da cotidianidade: querem permanecer sempre na experiência do Eu-Tu; assim, viver a “realidade” da existência humana torna-se um grande desafio e sofrimento.  

            Na modalidade de algumas experiências místicas, o autor lembra o quanto estas criam dificuldades na fronteira de contato, na qual se haveria a alienação de uma das dimensões; ou seja, o Eu que se anula em um Tu. Neste tipo de experiência haveria uma negação de partes; haveria a perda de permeabilidade resultando na perda da distinção entre o self e o outro.

Buber (2001) reflete sobre o misticismo:

O Eu e Tu desaparecem, a humanidade que, há pouco estava na presença da divindade, se submerge nela; aparecem a glorificação, a divinização e a unidade. Porém, quando alguém iluminado e esgotado, voltar à miséria das coisas terrestres e reflete com o coração advertido sobre os dois eventos, o ser não lhe apareceria dividido e, em uma das partes, abandonado à perfeição? De que serve à minha alma poder ser de novo afastada deste mundo, se esse mundo permanece necessária e totalmente apartado da unidade? Para que este “prazer de Deus” em uma vida dividida em dois? Se este momento celestial de abundante riqueza nada tem em comum com o meu pobre momento terrestre, o que me importa, pois devo continuar vivendo sobre a Terra, devo ainda viver com toda seriedade? Eis como se devem compreender os mestres que renunciaram às delicias do êxtase da “unificação”. Tal unificação não era unificação. (p. 107).

Perls nos apresenta também essa necessidade de “separação”, entre aquilo que é do campo pessoal e do impessoal: “[...] as fronteiras, os locais de contato, constituem o ego. Apenas onde e quando o self encontra o “estranho” o ego começa a funcionar, começa a existir, determina a fronteira entre o “campo” pessoal e o impessoal”. (Polster, Erving apud Perls 2001, p. 115).

Portanto, é necessario para mantermos a identidade, a autonomia e nossa saúde, não confluirmos, isto é, nos confundir no outro, nos negando, rejeitar aquilo que somos para nos identificar em tudo com o outro. Mesmo que o outro seja por mim compreendido, experimentado como o mais perfeito, o mais Santo, o mais sublime, o absoluto – se ele é o outro: NÃO ao “deveria”. Nos “deverias” podemos estar negando, alienando partes de nós enquanto pessoas.

Pode-se identificar este tipo de conflito em algumas pessoas religiosas em separar, distinguir o pessoal do impessoal; isto é, necessidades pessoais são negligenciadas em função do impessoal. Por exemplo, quando se trata com os “desejos”, as pessoas têm dificuldades de está em contato consigo mesma, de identificar o pessoal e a tendência é a generalização. Este tipo de dificuldade é muito presente em pessoas religiosas quando “fogem” de desejos pessoais para colocá-los em uma “exigência” para se poder “estar” na relação com o Divino; em uma “dedicação” total ao Divino.

Polster, Erving (2001) nos fala dessa alienação de nossos desejos quando nos diz: “Um dos modos de permanecer fora de contato com os desejos é inflá-los, ampliá-los para desejos globais, para indefiníveis e fora de alcance”. (p. 233). Neste sentido se percebe em pessoas religiosas aonde entra o que é Divino, o Sagrado; se anula o que é humano, ou seja, polaridade é entendida como dicotomia; dois mundos: duas realidades separadas, antagônicas.

Já escutamos até mesmo casais que querendo “viver” o que se chama no ambiente Católico de castidade a exemplo do casal José e Maria, os pais de Jesus, de renunciar a sua própria vida sexual como se o amor conjugal fosse contra a vontade de Deus; que a sexualidade fosse algo impuro; ideia de que o amor é pecado; que há uma oposição: o amor entre pessoas e o amor a Deus.  Pode-se dizer dessa forma que se negligenciam desejos e necessidades pessoais: partes são excluídas.

Há crises após momentos de um bem-estar espiritual, de uma experiência religiosa; de oração no campo da afetividade quando se culpa por ter sentido ou vivido uma experiência de prazer, de felicidade. Quando vivenciam momentos “fortes” de oração, de espiritualidade, sofre quando se dão conta de que esta experiência “de plenitude” acabou e tem que voltar a viver na realidade da vida do cotidiano, do corriqueiro. Não conseguem estabelecer uma consciência clara dessa polaridade e tendem à dicotomia: O mundo do Eu-Tu e o mundo do Eu-Isso. Buber nos adverte para esse tipo de atitude, nos convidando a superar, quando afirma:

“Aqui o mundo, lá Deus” tal é uma linguagem do Isso; assim como “Deus no mundo” é linguagem do Isso. Porém, nada abandonar, ao contrario, incluir tudo, o mundo na sua totalidade, no Tu, atribuir ao mundo o seu direito e sua verdade, não compreender nada fora de Deus, mas apreender tudo nele, isso é a relação perfeita. (2001, p. 102)

            Portanto, entendemos que uma modalidade religiosa em que a experiência acontece numa compreensão dicotômica que não encontre uma dinâmica; um transitar na relação de Eu -Tu e Eu-Tu eterno; e na qual não se negue que mesmo um Eu-Tu vem a tornar-se um Eu-Isso dificulta viver saudável a relação Homem e Deus. Buber nos diz que o destino de todo Tu neste mundo é tornar-se coisa: “Cada Tu, neste mundo é condenado, pela própria essência, a tornar-se uma coisa, ou então, a sempre retornar à coisidade”. (2001, p. 61). Claro, como nos fala Buber que o Tu eterno por essência nunca se tornará um Isso. Muitas vezes escutamos pessoas falarem: “Eita! Que experiência maravilhosa, como foi bom estes momentos de espiritualidades, de oração; mas já fico pensando de como vai ser quando eu chegar em casa para resolver os problemas; ter que cuidar da vida”.

Há nesta compreensão religiosa uma “fuga”, uma dificuldade na fronteira de contato, de transitar; há uma fronteira não permeável. É uma experiência religiosa em que a fronteira deixou de ser fronteira, que não facilitou uma distinção que conserve a identidade, mas que ao contrário nega, as transformando em extremidades que não permitem proximidade da realidade, da alteridade.

O próprio Buber reconhece que já se enganou com a busca de “unidade” da mística quando diz: “A mística os confundem, às vezes, em sua linguagem, como também eu os confundi outrora”. (2001, p. 106). Nestas palavras de Buber podemos compreender que a fronteira de contato neste tipo de experiência religiosa não consegue estabelecer uma distinção entre o self e o outro, gerando um distúrbio tanto de contato como de awareness; isto é, uma clara consciência de um Eu e um Tu.

 

3.3 Fronteira de Contato no campo religioso - diferenciando campos: polaridades versus dicotomias na experiência com o Divino

 Mircea Eliade (2008) define as manifestações religiosas, do sagrado, como hierofanias, considerando que apesar de estar sempre dentro de um contexto histórico, o que elas vão manifestar é a oposição entre o profano e o sagrado; ou seja, muda-se o contexto e as formas de manifestação, mas se mantém sua essência, a característica comum a todas: a separação entre o profano e sagrado. Diz ele: “Todas as definições do fenômeno religioso apresentado até hoje mostram uma característica comum: à sua maneira cada uma delas opõe o sagrado e a vida religiosa ao profano e à vida secular”. (p. 7).

Queremos aqui fazer uma pequena observação à expressão “opõe o sagrado e a vida religiosa ao profano e à vida secular”. Compreendemos que não se trata de uma oposição, e sim de polaridades; pois como o próprio autor fala: são duas maneiras de se estar, duas formas de se relacionar com o mundo, com a realidade; dois modos de existência. Não há dicotomia; apesar de se correr este risco. Muitos fazem e fizeram dicotomias: muitas pessoas religiosas se colocam no mundo dessa forma dicotômica e também como os críticos da religião.

Feuerbach (1988) cai neste erro quando faz a crítica seguinte: “Só quando tiveres suprimido a religião cristã é que tu, por assim dizer, terás direito à república, pois, na religião cristã, tens a tua república no céu; por isso, não precisas de uma aqui”. (p. 18). A crítica de Feuerbach é verdadeira para muitas pessoas religiosas que têm uma relação dicotômica na sua vivência religiosa. Entretanto não o é para a modalidade religiosa que estamos apresentando. A partir da compreensão buberiana, não há separação, dicotomias entre o Sagrado e o humano. Podemos falar neste sentido em polaridades.

Polaridades e dicotomias são conceitos usados na Gestaltterapia para ajudar os clientes a ter um bom “ajustamento” entre o meio e o indivíduo. Estes conceitos permitem integração, fazendo compreender a interligação entre as partes sem precisar negar ou excluir as mesmas. É uma forma que favorece distinguir entre um Eu -Tu e um Eu- Isso sem negação, ao mesmo tempo em que busca integrar as partes evitando a exclusão, ou seja, nos permitindo transitar na fronteira de contato.

   Gary M. Yontef (1998) nos faz entender a dificuldade de distinguir entre polaridades e dicotomias:

Uma dicotomia é uma divisão na qual o campo não é considerado um todo, diferenciado, em partes diferentes e interconectantes, mas como uma diversidade não-relacionada (e/ou) competidora. O pensamento dicotomizado interfere na auto-regulação do organismo, tende a ser intolerante para diversidade entre as pessoas e para com verdades paradoxais a respeito de uma única pessoa. A auto-regulação organísmica leva à integração das partes umas com as outras, numa totalidade que contém as partes. O campo é frequentemente diferenciado em polaridades: partes que são opostas, que se complementam ou explicam. Os pólos positivo e negativo de um campo elétrico são o modo típico desta diferenciação, à maneira da teoria de campo. O conceito de polaridades considera os opostos como parte de um todo, como yin e yang. (p. 34-35).

Nestas palavras percebemos como é necessário e importante fazer estas distinções e ajudar o cliente a estar consciente da “necessidade” de viver neste estado de “tensão” de um Eu-Tu e um Eu-Isso, integrando e dessa forma evitando as dicotomias. Este tipo de dicotomia é muito presente em pessoas religiosas em suas várias denominações: há uma separação, uma dicotomia entre o mundo sagrado e o profano; e não polaridades onde se mantém uma diferenciação, ou seja, partes opostas que se integram e se complementam.

 Richard Hycner (1997) comenta sobre duas polaridades, chamadas por ele de atitude de “conexão” e de “separação”. Para ele; elas são naturais e essenciais. Assim mostra a importância de dialogar com nossas polaridades. Viver de forma boa e com saúde é encontrar o equilíbrio, a integração “entre” elas:

O viver saudável requer uma alternância rítmica entre as duas. A tensão de conexão e separação está presente desde o momento da concepção. O feto é profundamente carne da mãe; ainda assim, também, está formando seu corpo e se preparando para separação [...] Estamos sempre buscando o ponto de equilíbrio entre nossa separação e conexão com os outros. De fato, é a tensão criativa e a integração das duas que se constituem na marca do viver saudável. (p. 32).

Ainda para o mesmo autor, precisamos buscar sempre o equilíbrio, uma integração entre as polaridades, entre o espiritual e o meio: “A característica que ressalta em uma vida saudável é a busca desse equilíbrio, mais do que a “descoberta” do mesmo”. (1997, p 87). Buber ajuda a fazer esta integração entre as polaridades, entre o Divino e o homem; entre o Eu-Tu e Eu-Tu eterno quando diz:

Deus – podemos agora afirmar – transmite sua absoluticidade à relação que Ele estabelece com o homem. O Homem que se dirige a Ele não tem necessidade de se afastar de nenhuma relação Eu Tu; ele as conduz legitimamente a Ele e as deixa que se transfigurem na “face de Deus”. (2001, p. 137-138).

Assim, nossas relações com o Eu-Tu, permite o encontro com o Tu eterno; Ele se encontra aí quando estamos diante do outro numa relação Eu-Tu. Dessa relação do humano e Divino comenta Richard Hycner, ao sublinhar as reflexões de Buber: “Em cada esfera, de acordo com seu feitio, através de cada processo de transformação presente em nós, olhamos para fora em direção ao Tu eterno, e a cada vez estamos conscientes do sopro do Tu eterno; em cada Tu buscamos o Tu eterno”. (Hycner apud Buber, 1995, p. 89).

Para o religioso de tradição judaico-cristã, a dificuldade de compreender e de viver essa “tensão” é possível, seja ainda fruto de uma interpretação não adulta, mas sim ingênua da bíblia e de seus livros míticos. Os mitos são muito importantes para se compreender e conhecer verdades como já citamos anteriormente, entretanto para que assuma essa função é necessário que os coloquemos em seu devido lugar, sob pena de perder sua importância para o conhecimento. Com sua linguagem própria; falando de forma poética e simbólica ele tem muito a nos oferecer. O mito da queda; narrado na bíblia na qual se fala do pecado é lido como sendo a causa, a razão de nossa “separação”.

Deve-se compreender que essa era uma maneira, uma forma que os escritores antigos encontraram para falarem da nossa condição existencial frente à vida. Vive-se ainda hoje se condenando um “casal”, “duas pessoas” pelos males que sofremos: Adão e Eva. Sofremos, padecemos por causa deles, ou seja, por causa de seu pecado de desobediência sofremos, morremos.  O mito não quer explicar por que sofremos, por que morremos; mas quer nos dizer da nossa condição: sofremos, morremos; essa é a nossa condição; somos assim.

Richard Hycner (1995) nos fala dessa condição existencial, ontológica do homem de distância e relação, e o quanto é possibilitadora da saúde quando nos diz:

Buber enfatiza que o caráter ontológico da existência requer: distância e relação. O inter-humano é a esfera na qual estamos ao mesmo tempo separados e em relação. Somos tanto uma-parte-de outros seres humanos como estamos apartados deles. A existência sadia é todo aquele fugaz equilíbrio rítmico entre separação e relação. ( p. 26)

Numa interpretação madura, adulta, compreenderemos que na existência precisamos conviver com separações e conexão. Não sofremos porque pecamos, mas somos seres da “separação” e da “conexão”.  Heidegger em sua filosofia assume que o homem é ser- para-a- morte. A morte lhe é constitutiva. O ser homem é assumir estas duas polaridades “separação e conexão”; é estar eternamente buscando equilibrá-las e integrá-las. Nosso mal é querer ou viver em absoluto uma delas: buscar viver uma relação sempre num Eu-Tu não podemos, assim como sempre num Eu-Isso adoecemos. 

Este termina por ser um grande dilema para alguns religiosos: aceitar e viver essa “tensão” nas polaridades. Isso tem levado muitos ao adoecimento: tanto pessoas religiosas como não religiosas – o religioso por não aceitar a relação Eu-Isso e, ao contrário, os não religiosos, por muitas vezes viver só o Eu-Isso. Que não nos interpretem erradamente: não queremos dizer com isso que pessoas que não se dizem religiosas só estariam vivenciando relações Eu-Isso; pois para nossa compreensão a dimensão religiosa que é uma dimensão do Sagrado; é um caminho para a relação Eu-Tu, mas não é o único. O que se pode opinar é que a relação Eu-Tu possibilita a relação Eu-Tu eterno.

Mircea Eliade (2010) nos lembra de que mesmo os espaços não tidos como religiosos do mundo secularizado do homem não religioso tem uma um pouco de “Sagrado”. Diz ele: “É preciso acrescentar que seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que tenha chegado o homem que optou por uma vida profana, não consegue abolir completamente o comportamento religioso”. (p. 27). E ainda: “Todos esses locais guardam, mesmo para o homem mais francamente não religioso, uma qualidade excepcional, “única”: são os “lugares sagrados” do seu universo privado”. (Ibid., p. 28). Como já lembramos antes, que tanto ela acontece com a natureza quanto com pessoas. Apenas queremos chamar a atenção para o sofrimento do religioso quando se sente na relação Eu-Isso, e o não religioso quando vive só a relação Eu-Isso.

 João Edênio dos Reis Valle (2005), apresenta uma compreensão de religiosidade que nos permite um caminho para buscar integrar as polaridades e não rejeitar ou criar dicotomias. Para o autor a dimensão religiosa põe em jogo todos os níveis da consciência humana. Ele atribui tal qualidade a dois elementos que fazem parte da religião: trata-se do substantivo e da função do religioso. Diz ele:

A religiosidade põe em jogo todos os níveis da consciência humana, em especial uma intenção específica de referência a uma realidade maior, invisível e numinosa, da qual depende a opção fundante do ser e do devir. Na religiosidade há dois elementos e se refere ao que é último ao que supera ao que faz o ser humano tocar o limite, donde uma percepção absolutamente original do “sagrado”. É o “tremendo e o fascinante” de Rudolf Otto, que para William James encerra sempre uma característica única de “solidão”, mesmo quando supõe a comunidade. Mas há um segundo elemento que tem a ver com a função do religioso no conjunto da autopercepção do homem enquanto ser-no-mundo. O homem se torna religioso só quando se encontra com o outro e, por essa via, com o Outro. Não faz “per medias res” e sim por meio de mediações humanas. (p. 94).  

 

Aqui se pode perceber uma unidade entre a dimensão racional da religiosidade e a dimensão do sentimento. Também daquilo que buscamos mostrar: a dimensão da experiência religiosa a partir da relação com o outro, na qual o Sagrado é vivenciado nas relações entre um Eu-Tu e um Eu-Tu eterno; isto é, o numinoso se dá na relação com a natureza e entre pessoas. O que se percebe entre as pessoas religiosas é uma grande dificuldade de “transitar” entre a experiência com o Sagrado e a relação com a realidade do mundo. Muitos criam dicotomias gerando exclusão de partes; entrar em relação com o Sagrado é anular o mundo; não conseguem viver nas polaridades, ou seja, integrando e do contrário desintegram. 

 

3.4 Contato e cura no Novo Testamento

 

            No Novo Testamento a Divindade, o numinoso permanece como sendo o “Totalmente Outro”, mas Ele não é distante e sim contato: pura relação de contato; toca e se deixa tocar. Não é como já falamos anteriormente, um totalmente outro de forma absoluta, separado; que uma vez estando presente desaparece o humano.                                                                             Algumas passagens do numinoso no Evangelho trazem uma nova forma de relação entre o Divino e o homem. Ele é um numinoso que entra em contato, em relação. A “cura” se dá em relações de contato; o numinoso vai ao encontro.                                                                 Serge Ginger (2007) nos fala que em Gestaltterapia a cura é sinônimo de cuidado; não se trata de retirar os sintomas: “A Gestal-terapia visa portanto a manutenção e o desenvolvimento deste bem-estar harmonioso e não a “cura” ou a “reparação” de algum distúrbio, seja ele qual for – o que subentenderia uma referência implícita a um estado de “normalidade”. (p. 17). No Evangelho igualmente se pode perceber que “curar” é cuidado; modo de devolver ao outro sua liberdade. Não se trata de retirar os sintomas, de uma cura meramente somática. O “retirar” o sintoma, na verdade, era uma forma de mostrar, de ilustrar que algo extraordinário aconteceu.

Em muitas curas que mostram a libertação do sintoma fica patente a “devolução” ao doente da sua autonomia. Não é exagero dizer que praticamente em todas as curas de Jesus há em comum a integração, a inclusão do “doente” ao convívio social, da comunidade, o restabelecimento de sua dignidade, a devolução de sua autonomia, isto é, tem como fim não simplesmente “curar” ou retirar sintomas como frequentemente se atribui e se compreende.  

Para Jesus, “curar” estava relacionado a tirar os “doentes” da exclusão do convívio social – o “doente” voltava a participar da comunidade, da vida. Muitas são as passagens de “cura” que mostram essa dinâmica. A “cura” do leproso; do cego na beira da estrada (que estava à margem) ilustram o que acabamos de comentar. Hoje, existe ainda em nossa sociedade preconceitos em relação a algumas doenças que excluem da vida social, da vida profissional. Lamentavelmente ainda não se pode falar que se superaram os preconceitos em relação a AIDS. Esta é apenas uma das muitas situações marcadas por preconceitos, sejam de cor; de sexo; de opção sexual, de religião, situação econômica e diversas outras. Portanto, podemos considerar que no sentido que comentamos acima o encontro com o Divino, os cuidados de Jesus permanecem necessários e atuais. Na psicoterapia se busca igualmente cuidar para que cada pessoa possa ser autônoma e livre, ser incluída em sua totalidade; então se pode dizer que quando cuidamos do outro em sua dignidade, estamos cuidando da espiritualidade e da saúde.

As “curas” de Jesus eram muito mais devolver a dignidade perdida do outro; e não pura reparação de qualquer “distúrbio” ou doença física; era uma busca de incluir, como já comentamos anteriormente. A “cura” do sintoma era a forma de ilustrar que algo diferente aconteceu; pois as pessoas “doentes” eram tidas como “desgraçadas”, ou seja, sua doença era um sinal de que não eram puros, que tinham pecados; que tinham recebido um castigo e que por isso estavam excluídas da comunidade, da cidade; isto é, do meio social.

O texto é do Evangelho de Marcos:

Um leproso chegou perto de Jesus e pediu de joelhos: “Se queres, tu tens o poder de me purificar”. Jesus ficou cheio de ira, estendeu a mão, tocou nele e disse: “Eu quero, fique purificado”. No mesmo instante a lepra desapareceu e o homem ficou purificado. (Mc. 1: 40-43).

            É interessante observar na descrição acima que, em se tratando de lepra, havia um evitar aproximar-se por medo de contaminação.  Jesus toca no leproso; estabelece com ele uma relação. Parece mostrar para todos os que ali se encontravam que a lepra não fazia “mal” algum, que ele podia conviver na comunidade. Jesus podia muito bem realizar a cura como muitas vezes fez: sem tocar. Mas aqui o milagre acontece no tocar; pois aqui a cura trata-se de demonstrar que o outro é digno de ser incluído na comunidade. Isto significa dizer que o enfermo entra, participa da relação Eu-Tu e Eu-Tu eterno. Antes ele só era colocado na relação do Eu Isso, estava excluído, não era tratado na sua dignidade de pessoa. Assim, no Evangelho não se pode reduzir o “curar” a retirar sintomas, mas sim incluir o excluído, como temos insistentemente chamado atenção. O leproso era marginalizado, devendo viver fora da cidade, longe do convívio social, por motivos higiênicos e religiosos. Jesus fica irado contra uma sociedade que produz marginalização.

            Sabemos que em muitas “patologias”, enfermidades, o grande sofrimento não é o sintoma em si, mas o que venha a lhe trazer na relação com os outros, com a sociedade. Ilustremos com enfermidades em que não há dor e, sim algum tipo de deformidade física. Numa sociedade que idolatra a beleza do corpo – uma pessoa com uma situação especial, portadora de qualquer deficiência em um membro do seu corpo, terá dificuldades em encontrar espaço nas diversas esferas da vida social. Tendo sido inclusive necessário o estabelecimento de leis que visam minorar os prejuízos no campo do trabalho, determinando as empresas uma quota mínima de pessoas com déficit.  Mesmo o envelhecer, em certos modelos de sociedade, em função das fragilidades da própria natureza deste processo biológico, condenam os idosos a um sentimento de inutilidade, de descarte, exclusão de participação da vida dos demais. Logo tendem ao isolamento e adoecem.

Outra passagem importante em que Jesus entra em relação com o enfermo através do toque e gera a inclusão é a cura de um cego de nascença. Aqui a inclusão social é um fator determinante – ele vivia em condição de pura exclusão, era pedinte. O texto é do Evangelho de João:

Ao passar, Jesus viu um cego de nascença. Os discípulos perguntaram: Mestre, quem foi que pecou, para que ele nascesse cego? Foi ele ou seus pais? Jesus respondeu: Não foi ele pecou, nem seus pais [...]. Jesus cuspiu no chão, fez barro com a saliva e com barro ungiu os olhos do cego. E disse: Vá se lavar na piscina de Siloé [...]. O cego foi lavou-se, e voltou enxergando. Os vizinhos e os que costumavam ver o cego, pois ele era mendigo, perguntavam: Não é ele que ficava sentado, pedindo esmola? [...]. As autoridades dos Judeus não acreditaram que ele tinha sido cego e que tinha recuperado a vista. Até que chamaram os pais dele e perguntaram. [...] Os pais do cego disseram isso porque tinham medo das autoridades dos Judeus, que haviam combinado expulsar da sinagoga quem confessasse que Jesus era o Messias.   (Jo. 9: 1-22).   

 

 É interessante perceber que Jesus entra na relação, vai ao encontro do cego e o toca, faz contato. Para o contexto da época não se podia aproximar de qualquer doente, pois estes eram impuros diante da lei; tocar era transgredir a lei dos homens e de Deus. Outra coisa importante a se observar é que em muitas enfermidades; os doentes eram excluídos e se tornavam pedintes: “Não era ele que ficava sentado, pedindo esmola”? Eram tirados da condição da dignidade. O texto mostra que ele vivia da “compaixão” e boa vontade de quem o ajudasse. Também eram expulsos da comunidade: “haviam combinado de expulsar”. Neste sentido, “curar” aqui vai muito além de uma questão de estado físico ou psicológico, mas tem muito a ver com inclusão, incluir o outro, dar-lhe condições de assumir sua vida e responsabilidade, como uma vez mais fazemos questão de ressaltar.

            O rodapé da bíblia, edição Pastoral, sobre este texto também mostra que a cura não se limita à questão física quando diz: “O cego de nascença simboliza o povo que nunca tomou consciência de sua condição de oprimido, e por isso não chegou a ver a verdadeira condição humana”. A cura é levar o outro a se dar conta de sua existência, construir com o outro sua condição de pessoa; fazê-lo enxergar tudo aquilo que nele está sendo negado, alienado.

Outra passagem interessante que mostra muito claramente que o doente era um excluído é a do cego de Jericó. O texto narra que ele está à beira da estrada, é um pedinte. Está à beira do caminho como está a margem da sociedade; excluído: “Quando Jesus se aproximava de Jericó, um cego estava sentado à beira do caminho, pedindo esmolas [...] Então o cego começou a gritou: “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim”. As pessoas que iam à frente mandavam que ele ficasse quieto. Mas ele gritava mais ainda”. (Lc. 18: 35-39). Mais uma vez se percebe a relação entre “cura” e inclusão. O cego está à margem do sistema. É interessante observar também que neste sistema se retira inclusive o direito do outro falar, cobrar seus direitos, de manifestar seus sofrimentos.

 

3.5 “Fantasia” e “alucinação” religiosa genuína versus patológica

Chamamos de alucinação religiosa patológica a toda manifestação ou experiência religiosa que leva a pessoa a se isolar do mundo, dos outros, a não conseguir equilíbrio em suas experiências com o Divino, na qual o penitente não consegue transitar entre a experiência com o Divino e com a sua vida e obrigações corriqueiras. Pode acontecer um afastamento, um fechar-se em seu “mundo”, dificultando um contato próximo com os demais. Termina por evitar qualquer tipo de diálogo preso a sua própria fantasia. No entanto, a fantasia pode ser genuína, quando leva ao contato, ao encontro com a vida e as pessoas. Podemos encontrar esses dois tipos de fantasias na experiência do religioso.

Para a Gestaltterapia, a fantasia tem um grande poder – é transformadora. Assim nos fala Ervin Poster (2001):

A fantasia é uma força expansiva na vida de uma pessoa – ela alcança e se estende além das pessoas, do ambiente ou do acontecimento imediato que de outro modo poderiam restringi-la. Algumas vezes essas extensões podem ser pueris ou obsessivas, como em muitos dos devaneios. Mas algumas vezes podem reunir tanta força e agudeza que acabam por atingir uma presença mais intensa do que algumas situações da vida real. (p. 257).

            Estas palavras exemplificam uma fantasia positiva. Ora, o fantasiar é do humano.  As crianças “têm” muitas fantasias, “vivem” em um mundo de fantasias. Para a criança é saudável fantasiar.

William James (1995) no livro As Variedades da Experiência Religiosa nos apresenta um caso típico de uma alucinação patológica religiosa. Nestas formas de alucinação as pessoas se indispõem e são muito críticas umas com relação às outras, com o mundo; fogem de todos os compromissos sociais e tem dificuldades até mesmo de participar de atividades da própria Igreja, ou seja, se isolam. Ele cita um texto de Starbuck:

Os sinais de anormalidades exibidos por pessoas santificadas são de ocorrência frequente. Elas se indispõem com outras pessoas; muitas vezes, não querem saber de igrejas, que consideram mundanas; tornam-se hipercríticas em relação aos outros; descuram das obrigações sociais, políticas e financeiras. Como exemplo desse tipo pode-se mencionar uma mulher de sessenta e oito anos, sobre a qual o autor fez um estudo especial. Ela pertencera a uma das igrejas mais ativas e progressistas de um distrito movimentado de uma grande cidade. Seu pastor descreveu-a como tendo alcançado o estado sensório. Tendo-se tornado cada vez mais antipática à igreja, sua conexão com ela afinal, passou a consistir simplesmente no comparecimento às reuniões de orações, nas quais sua única mensagem era a de reprovação e condenação dos outros por viverem num plano inferior. Por fim, ela se afastou e cortou todas as relações que mantinha com qualquer igreja. O autor foi encontrá-la vivendo sozinha num cubículo, no ultimo andar de uma casa barata de pensão, praticamente desligada de todas as relações humanas, mas aparentemente feliz no gozo das suas bênçãos espirituais. Ocupava o tempo escrevendo folhetos sobre santificação [...]. Contou que o espírito lhe dissera: ‘Pare de ir à igreja. Parem de frequentar as reuniões da igreja da santidade. Vá para o quarto que eu a ensinarei’. Professa não dar a menor importância a colégios, igrejas, e só se interessa em ouvir o que Deus lhe diz [...]. (p. 222).

            Neste sentido, há uma fuga do encontro e do contato; um fechar-se à relação; há uma forma de viver uma “singularidade”, ou melhor, uma individualidade “ruim”. Também aqui ecoam as palavras de Richard Hycner (1997) quando nos diz que: “Uma perspectiva dialógica sustenta que a “individualidade” não é suficiente. Sustenta que a singularidade genuína nasce do relacionamento verdadeiro com os outros”. (p. 37).                                           

Edênio Valle (2005) comenta a dificuldade que alguns psicólogos têm diante de algumas modalidades da experiência religiosa:

Nem sempre os profissionais da psicologia percebem ou estão preparados para, permanecendo dentro de suas funções específicas, iluminar as crises e vacilações de um paciente que está construindo sua fé, seja em que nível for de sua maturidade existencial e religiosa. Não foram preparados para fazer “interpretações restauradoras” – que é de sua competência – de desconstruir e desmistificar as motivações neurótica e narcísica da religiosidade de seu cliente libertando a espiritualidade de seus aspectos ilusórios e direcionando assim o potencial vital para uma fé mais amadurecida. (p. 97)

Nestas palavras de Edênio Valle, temos algumas coisas importantes a serem levadas em consideração. Primeiro é a constatação de que há em algumas experiências religiosas trazidas pelos clientes, sinais de certo grau de “patologias”, tais como de neurose e de personalidade narcísica. Segundo, se percebe em muitos religiosos ainda uma fé não madura; adulta que tenha superado uma visão ilusória, fantasiosa e mítica. Daí a necessidade de “desmistificar” certa compreensão daquilo que se crê em relação ao Sagrado, ao transcendente. Uma terceira coisa é o despreparo, o desconhecimento do profissional de psicologia frente ao fenômeno religioso.

Conhecem-se muitos profissionais na área que, em matéria de conhecimento religioso, estão aquém até mesmo de pessoas comuns, simples; ou seja, tem uma compreensão da fé muito infantilizada. Em uma situação na clínica em que houvesse a necessidade de uma “desconstrução” e de uma “desmistificação” poderia haver o reforço de aspectos doentios da personalidade do cliente. Nestes casos se requer prudência do profissional em não “desrespeitar” a forma de compreensão do cliente, deve-se ter uma atitude respeitosa, porém questionar os supostos mandatos de Deus. As respostas são quase sempre: o dirigente, o padre, o pastor; ou, todo mundo diz que é assim! Então, perguntamos: “mas você já perguntou isso a Deus; ele já lhe falou”?  Claro que aqui estamos nos referindo a clientes com um estado de “patologia” com menor gravidade; e não no caso de psicose. As respostas comuns: nunca tinha pensado assim; o que eu penso de Deus é o que outros dizem Dele. Percebe-se assim que em muitas formas de entender e viver a crença é muito do ouvir dizer, e não aquilo que ele poderia experimentar; de sua própria experiência. 

Edênio Valle (2005) afirma que compete ao profissional de psicologia mostrar a sua impossibilidade ou a insuficiência de penetrar na experiência sui generis da religião que é Deus. Isto não significa dizer que não se pode penetrar na experiência de Deus do cliente; e de poder entender que tal modalidade religiosa o está impedindo de crescer e desenvolver-se. Deve-se igualmente evitar uma “neutralidade” em tal questão, compreendida no sentido das ciências positivas, que hoje são muito questionadas. Mas compreender que o Divino, o numinoso vai estar sempre diante de nós como este “Outro” que é também sempre “mistério”; como também somos um mistério. Diz ele:

Ao psicólogo compete penetrar essa experiência sui generis com os instrumentais teóricos e metodológicos de sua ciência. Ele o faz sabendo que uma abordagem verdadeira do religioso pede uma aproximação bem mais complexa e, no fundo, sempre insuficiente no que se refere ao objeto ultimo da re-ligio, que é “Deus”. Ao psicólogo da religião cabe sondar as motivações, os sentimentos, os desejos, as compreensões e as atitudes expressos nos comportamentos religiosos. Em última análise, ele estuda como e por que o homem se re-liga ao sagrado, como sua realidade espiritual se representa e se expressa nos limites de um determinado espaço e no tempo. Seu interesse e objetivo é o de compreender dinamicamente a experiência e o comportamento religioso da pessoa enquanto uma vivência que influencia de modo único o seu desenvolvimento pessoal e sua vida. (p. 95).

Não se pode negar que cada profissional tem uma compreensão do Divino, assim como sua forma de crer. Isto será também percebido quando o autor se posiciona quanto a esta questão; ele apresenta sua própria compreensão como veremos. Da mesma maneira também assumimos uma posição, uma maneira de viver nossa fé em que acreditamos deve o homem assumir responsabilidades diante da vida, de suas decisões. Nossa maneira de entender o Sagrado, o numinoso diz respeito a não haver alteridades absolutas; não há a nulidade de uma das partes; a participação do humano não é de submissão; pode-se estabelecer reciprocidade; há relação dialógica. O que não cabe é fazer juízo de valor ou proselitismo.

 Edênio Valle (2005) a partir das reflexões de Fowler nos mostra à qual compreensão de fé nos referimos; trata-se de uma vivência religiosa madura, adulta. Assim nos fala ele:

Para ele a fé “não é uma dimensão separada da vida, uma especialidade compartimentada. A fé é uma orientação da pessoa total, dando propósito e alvo para as lutas e esperanças, para os pensamentos e ações da pessoa [...] é uma forma ativa de ser e comprometer-se, um meio para adentrarmos e modelarmos novas experiências de vida [...] é sempre relacional, sempre há um outro na fé. (p. 96).

Neste sentido, é importante ressaltar uma crença que não esteja dentro de uma compreensão fantasiosa e mítica. Portanto, nem todos estão preparados para um encontro verdadeiro; maduro; há crenças que reforçam ainda mais certas “patologias”, como já comentamos anteriormente.  Richard Hycner (1997) nos lembra de que há limites para o diálogo, referindo-se a Buber que os denomina “problemas de limite”, com alguns tipos de clientes. Estes limites acontecem na mutualidade entre o terapeuta e o cliente; já que em alguns estados “patológicos” há um limite de abertura por parte do cliente. Este limite pode acontecer também com pessoas saudáveis. Comenta o autor Hycner:

Os limites dialógicos específicos são diferentes quando se trabalha com personalidades narcisistas ou com uma pessoa obsessivo-compulsiva. Há também diferenças significativas no trabalho com neuróticos comparado àquele com pessoas com traços psicóticos [...] Mesmo com indivíduos saudáveis, há certos níveis além dos quais eles não estão prontos para ir ao momento. Intuitivamente, alguma parte deles sente que ainda não tem suporte para entrar em um diálogo mais pleno com os outros. (p. 49). 

No entanto, podemos falar de alucinação numa dimensão positiva: aquela que facilita ou busca entrar em contato; que leva o indivíduo a se colocar frente ao mundo para procurar possibilidades de saídas para o que lhe está impedindo de entrar em relação.

 

3.6 Alucinação religiosa genuína

Alfred Adler (1967) acredita que as alucinações são uma criação artística da mente e estão de acordo com o propósito de cada indivíduo que as tem. Diz ele: “Cada alucinação é uma criação artística da mente, modelada de acordo com os objetivos e propósitos do indivíduo que a tem” (p. 56). A partir daí não se pode compreendê-la como simplesmente patológica; como fuga da realidade. Para ele, a alucinação não se reduz à pura imaginação, como devaneio; ela influencia o procedimento, mobiliza, induz o indivíduo para sua meta desejada, almejada, o impulsiona para superar e alcançar aquilo que deseja.

Tais visões se delineiam tão vivas que não tem apenas o valor de produtos imaginários – e sim influenciam o procedimento de um indivíduo como se o objeto estimulante ausente estivesse à sua vista. Chamamos-lhes alucinações, quando as fantasias aparecem como se fossem o resultado de um estímulo realmente presente (p.56).

 

Chama-nos a atenção: “não tem apenas o valor de produtos imaginários – e sim influenciam o procedimento de um indivíduo”; ou seja, aquilo que podemos condenar ou rejeitar como pura imaginação ou fantasia tem um potencial de transformação para o sujeito, capaz de mobilizá-lo. É um estímulo para a pessoa em sua superação. O mais intrigante é que no caso colocado por Adler trata-se de uma “alucinação” com características religiosas. Não vamos colocar todo o caso, mas um recorte que nos ajuda a perceber sua dinâmica segundo Adler:

A situação é a seguinte: uma jovem muito ambiciosa e, segundo revelou o exame, com tendências a dominar todos, rompe com os pais e encontra-se na pobreza. Compreende-se que um ser humano em esforço para tudo conquistar no ambiente material em que vive se dirija a Deus e lhe enderece suas orações para lhe ter o amparo. Se a Virgem Maria se conservasse apenas como figura imaginária (como é o caso na prece) nada se acharia de particularmente notável nesta ocorrência; mas a jovem em questão precisava de um estimulo mais forte para as pazes com os pais. O fenômeno perde todo o mistério quando compreendemos a quantos ardis a alma é capaz de recorrer. (...) As duas mães deveriam ficar em certo contraste uma com a outra. A Mãe de Deus aparecia-lhe porque sua própria mãe não a ia procurar. A aparição constituía uma acusação contra a mãe dela pelo seu pouco amor à filha. (...) A coisa estranha nesta alucinação parece ter sido a circunstância de dar-lhe a Mãe de Deus, naquela amistosa visita, a má noticia da morte próxima da jovem. (...) A notícia desta profecia se espalhou com rapidez no estreito circulo da família e o médico no dia seguinte também soube; foi assim muito simples fazer com que a mãe a fosse visitar. (p. 57-58).

 Neste momento se coloca a questão: Como superar a dicotomia? Para Yontef, podemos superar a dicotomia pelo diálogo. Diz ele: “Com o diálogo pode haver integração das partes, em uma nova totalidade, na qual existe uma unidade diferenciada” (1998, p. 35).  

 

3.7 Alucinações no Antigo Testamento:

O Antigo Testamento está repleto de passagens em que são muitas as visões, sonhos e alucinações mobilizadoras, transformadoras; são estímulos fortes na confiança, na crença em Deus, na divindade que levou pessoas e povos tanto a superar situações pessoais como sociais.

Alucinação de Moisés

Moisés é um dos grandes patriarcas da história do povo de Israel, do povo de Deus, da tradição judaico-cristã. É ele quem conduz o povo para fora do Egito; terra onde o povo Hebreu era escravo: “O rei do Egito morreu. Os filhos de Israel gemiam sob o peso da escravidão, e clamaram; e do fundo da escravidão, seu clamor chegou até Deus”. (Ex. 2: 23). Neste texto se apresenta a situação social de um povo, isto é, situação de escravidão. É neste contexto que Moisés tem uma visão, “alucinação”: estar frente a frente com Deus que o convida para libertar seu povo da escravidão. O texto narra assim esse encontro:

Moisés estava pastoreando o rebanho de seu sogro Jetro, sacerdote de Madiã. Levou as ovelhas além do deserto e chegou ao Horeb, à montanha de Deus. O anjo de Javé apareceu a Moisés numa chama de fogo do meio de uma sarça. Moisés prestou atenção: a sarça ardia no fogo, mas não se consumia. Então Moisés pensou: ‘Vou chegar mais perto e ver essa coisa estranha: por que será que a sarça não se consome?’. Javé viu Moisés que se aproximava para olhar. E do meio da sarça Deus chamou: ‘Moisés, Moisés!’ Ele respondeu aqui estou’. Deus disse: ‘Não se aproxime. Tire as sandálias dos pés, porque o lugar onde você esta pisando é sagrado’. E continuou: ‘Eu sou o Deus de seus antepassados, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó’. Então Moisés cobriu o rosto, pois tinha medo de olhar para Deus. Javé disse: ‘Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-los subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel, o território dos cananeus, heteus, amorreus, ferezeus, heveus e jebuseus. O clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e eu estou vendo a opressão com que os egípcios os atormentam. Por isso, vá. Eu envio você ao Faraó, para tirar do Egito o meu povo, os filhos de Israel. (Ex. 3: 1-10).

É muito interessante perceber algumas coisas do contexto da visão de Moisés. Ele está no deserto que tem um grande simbolismo para o povo da bíblia. Representa uma situação de total falta; condição de absoluta adversidade; não há rumo, caminho, sentido, esperança, não há nenhuma certeza: é a situação de pura possibilidade. A presença da morte se faz constante. Mas também é lugar do encontro com Deus.  Moisés recebe uma missão para realizar que tem objetivo concreto, tem lugar concreto, tem personagens concretos e fim concreto; ou seja, libertar o povo Hebreu do Egito, por causa da escravidão e levá-los “para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel, o território dos cananeus, heteus, amorreus, ferezeus, heveus e jebuseus”.

A alucinação de Moisés lhe mobilizou para uma ação concreta; sua crença em Deus foi o estímulo exterior que o fez agir para libertar o povo da escravidão. Sua alucinação, sua crença o levou a um estado de confiança capaz de enfrentar a realidade; sem ela não haveria “possibilidade”; ele se valeu desse estímulo exterior para enfrentar a missão que se viu convidado a assumir. Como diz Adler “Tais visões se delineiam tão vivas que não tem apenas o valor de produtos imaginários – e sim influenciam o procedimento de um individuo”. (1967, p. 56).

Alucinação do Profeta Elias

O modelo ou perspectiva de “alucinação” genuína, saudável e adulta pode ser encontrada em muitas passagens bíblicas judaico-cristãs. Uma passagem que nos chama muito atenção é a do profeta Elias. Ela é exemplar para mostrar a força mobilizadora, que influenciará o procedimento dele para alcançar sua meta. Conta assim o texto:

Acabe contou a Jezabel o que Elias tinha feito e como tinha matado a fio da espada todos os profetas. Então Jezabel mandou um mensageiro a Elias, com este recado: ‘Que os deuses me castiguem se amanha, à esta hora, eu não tiver feito o mesmo que você fez com os profetas’. Elias ficou com medo, levantou-se e partiu para se salvar. Chegou a Bersabéia, em Judá, e aí deixou o seu servo. E continuou a caminhar mais um dia pelo deserto. Por fim, sentou-se debaixo de uma árvore e desejou a morte, dizendo: “Chega, Javé! Tira a minha vida, porque eu não sou melhor que meus pais”. Deitou-se debaixo da árvore e dormiu. Então um anjo o tocou e lhe disse: “Levante-se e coma”. Elias abriu os olhos e viu bem perto da cabeça um pão assado sobre pedras quentes, e uma jarra de água. Comeu, bebeu e deitou-se outra vez. Mas o anjo de Javé o tocou de novo, e lhe disse: “Levante-se e coma, pois o caminho é superior as suas forças”. Elias levantou, comeu, bebeu e, sustentado pela comida, caminhou quarenta dias e quarenta noites até o Horeb, a montanha de Deus. (1 Rs. 19: 1-8).

Muitos são os detalhes aqui apresentados sobre a nossa condição humana em suas variadas experiências. A tensão psíquica surge e, através do mecanismo da alucinação, as saídas são encontradas; encontra-se a superação. Elias se encontra neste estado de tensão psicológica: desespero, angústia, medo, fome, desilusão, falta de sentido (não quero mais viver); desesperança diante das dificuldades. A história é contada num contexto de deserto. O texto mostra o desespero de Elias que pede a morte: “desejou a morte, dizendo: “Chega, Javé”! “Tira a minha vida”. Mostra também que Elias tem que levantar; que deve decidir, precisa assumir a responsabilidade e fazer o caminho que é seu. A alucinação é o mecanismo mobilizador, a mensagem é que ele deve levantar e caminhar: “Levante-se e coma, pois o caminho é superior às suas forças”.

Aqui se pode perceber que na crença de Elias em Deus, ele encontra aquilo que Adler nos diz que acontece na alucinação: um estímulo mais forte. É isso que Elias encontra na sua crença; e isso o leva a assumir as responsabilidades diante da situação em que se encontra. Elias está na condição de desamparo e diante da decisão que muitos filósofos existencialistas consideram o fundamento do humano.  Portanto, na alucinação de Elias encontramos o que Adler nos diz: “A miragem representa uma nova situação que pode encorajar os fatigados, retemperar as fraquejantes forças dos irresolutos, tornar os viajantes mais fortes”. (1967, p. 59).     

Esta “alucinação” de Elias poderia ser enquadrada em uma alucinação mais ampla de que o próprio Adler nos fala, ou seja, em alucinações que estão fora dos quadros e ambientes religiosos. O que diferencia uma da outra é que uma se dá em um ambiente de fé e crença religiosa e a outra em condições diversas. Seria a distinção, em duas formas de estar no mundo como Mircea Eliade nos fala: um modo sagrado e outro profano. Elas se diferenciam enquanto conteúdo, características, mas têm em comum o objetivo, a meta, ou melhor, elas são mobilizadoras; tem como papel mobilizar a pessoa na busca da superação. Adler nos fala em miragens de viajantes do deserto como iguais às alucinações. Diz ele:

São muito conhecidas as descrições de alucinações nas narrativas dos viajantes. Excelentes exemplos são as miragens vistas pelos que jornadeiam no deserto e se vêem extraviados, sofrendo fome, sede e fadiga. (...) A miragem representa uma nova situação que pode encorajar os fatigados, retemperar as fraquejantes forças dos irresolutos, tornar os viajantes mais fortes ou de sentidos mais apurados: ou, por outro lado, pode operar como um bálsamo ou narcótico, subtraindo-os a sua miséria e horrores. (Ibid.1967, p.59).

     

Em nossa vivência conhecemos muitas situações semelhantes, pessoas que se encontravam em um estado de grande tensão psicológica e a “alucinação” religiosa permitiu  um estado de superação do medo e a assunção  da responsabilidade. A crença em algo mais forte as mobiliza. Como disse Adler no caso narrado: “Mas a jovem em questão precisava de estímulo mais forte para fazer as pazes com os pais”. (1967, p. 57). Nas pessoas religiosas este “estímulo mais forte” está sempre ligado às imagens de divindades, forças e energias divinas.

Ainda para Adler, há do ponto de vista psicológico uma estrita ligação entre a orientação religiosa e outros esquemas de nível elevado, superior que influenciam no curso do desenvolvimento humano, da personalidade. Mostra que o ser humano tem suas crenças e que as utiliza para sua vida e que as mesmas são necessárias e verdadeiras para eles. Mostra-nos assim que precisamos de “religiões”, transformando nossas teorias em verdades. Diz ele:

Cada homem tenha inclinações religiosas ou não, possui suas próprias pressuposições definitivas. Acha que não pode viver sua vida sem elas e para ele são verdadeiras. Tais pressuposições, quer as denominemos ideologias, filosofias, noções, quer simples ideias acerca da vida, exercem uma pressão criativa sobre toda a conduta que delas decorre (o que quer dizer sobre toda conduta de um homem). (Ibidem, p. 128).

O novo Testamento nos apresenta uma experiência de encontro com o numinoso em que a fronteira de contato pode se dar em sua forma mais adequada; isto é, o transitar entre o self e o outro permitem se estabelecer uma clara distinção, diferenciação na qual se vive polaridades entre o momento de experiência com o numen sem se perder, sem negar partes, alteridades. Queríamos trazer uma experiência de Jesus e seus discípulos na montanha; conhecida como a passagem da transfiguração. Para muitos estudiosos, isto aconteceu onde hoje é conhecido como Monte Tabor. A passagem, retirada do evangelho de Mateus, narra o seguinte:

Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, os irmãos Tiago e João, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E se transfigurou diante deles: o seu rosto brilhou como o sol, e suas roupas ficaram brancas como a luz. Nisso lhes apareceram Moisés e Elias, conversando com Jesus. Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: Senhor é bom ficarmos aqui. Se quiseres, vou fazer três tendas: uma para ti, outra para Moises, e outra para Elias. Pedro ainda falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra, e da nuvem saiu uma voz que dizia: Este é meu filho amado [...] Jesus aproximou, tocou neles e disse: Levantem-se, e não tenham medo. [...] Ao descerem da montanha [...]. (Mt. 17: 1-9).

Neste texto se pode perceber como a experiência fascinante diante do numinoso pode paralisar, nos deixar num estado de muita dificuldade para voltarmos à nossa “realidade”, a nossa verdade dos dois modos de estarmos no mundo: a realidade da relação Eu Tu e Eu Isso. É o que Buber nos adverte como já foi citado: “Para que este “prazer de Deus” em uma vida dividida em dois? Se este momento celestial de abundante riqueza nada tem em comum com o meu pobre momento terrestre”. Esta é a experiência vivida por Pedro que podemos dizer – representa o desejo de muitos que passam por ela. O acontecimento é tão forte para Pedro que faz com que  ele expresse seu desejo dizendo: “Senhor é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer três tendas: uma para ti, outra para Moises, e outra para Elias”. Pedro não quer voltar a “realidade” do cotidiano; à realidade terrestre. Mas Jesus vive numa relação de boa fronteira, ele sabe transitar nas experiências com o numinoso; não se aliena. Diante do pedido de Pedro sua resposta é: “Jesus aproximou-se, tocou neles e disse: Levantem-se, e não tenham medo. [...] Ao descerem da montanha”.

É interessante perceber que Jesus os manda levantar, para não ter medo e descer da montanha. Descer da montanha para encarar a realidade que precisa ser vivida. Outra coisa importante é a sequência, o que vem a seguir logo após a experiência com o numinoso, quando descem da montanha. Cabe a nós indicar qual o sentido da experiência com o Divino, assim como, nos fazer ver que na mística de Jesus não há a perda da relação de fronteira de um Eu e Tu. Vejamos como o texto segue: “Eles foram em direção à multidão. Um homem aproximou-se de Jesus, ajoelhou-se e disse: Senhor, tem piedade do meu filho. “Ele é epilético, e tem ataques fortes”. (Mt. 17: 14). Ou seja, a experiência não os tira de viver a sua missão, ir ao encontra das misérias terrestres, pelo contrário, leva-o a assumir um compromisso com a dor, a miséria e os sofrimentos da nossa realidade existencial.

            Buber também compreende desse modo a relação de fronteira no encontro entre Deus e homem. Diz ele: “O encontro com Deus não acontece ao homem para que ele se ocupe de Deus, mas para que ele coloque à prova o sentido da ação no mundo. Toda revelação é vocação e missão”. (2001, p. 126). Podemos dizer que no Novo Testamento os encontros com Deus levam sempre a tomarmos uma decisão frente ao mundo. Não é nosso objetivo trazer aqui as várias passagens que nos mostram essa dinâmica, apenas colocarmos algumas delas para fundamentarmos a nossa posição. A estrutura dos encontros entre Deus e o homem traz uma estrutura de missão: Deus que chama; o homem que escuta o chamado, aceita, e é enviado em missão.

 

 

3.8 Experiência religiosa e Neurose: distúrbios na fronteira de contato

           

            Como já falamos anteriormente, um bom contato é resultado de um bom funcionamento da fronteira. A Fronteira deve ser mantida permeável para permitir trocas e manter a autonomia.

           

Projeção

É um dos conceitos fundamentais para a Gestaltterapia. Segundo Yontef (1998) a “Projeção é uma confusão de self e outro, que resulta em atribuir ao meio externo algo verdadeiramente do self. Um exemplo de projeção saudável é a arte. A projeção patológica resulta de não perceber o que está sendo projetado e de aceitar responsabilidade por ela”. (p. 29). Aqui nos interessa refletir sobre a questão da responsabilidade. Percebe-se em muitas pessoas religiosas uma forte tendência para transferir responsabilidade a outrem; sejam coisas positivas ou negativas. É uma constante nas pessoas religiosas essa tentativa de transferir responsabilidade para algo fora dele.

Podemos perceber em discursos do tipo: “Eu sei que tudo que estou sofrendo agora na relação é da vontade de Deus. Que Deus me colocou na vida de “fulano” foi para poder ajudar a ele; para poder resgatá-lo do vício que tem”. Nestas palavras se esconde muitas vezes a falta de coragem para decidir dar fim a uma relação que já não tem mais sentido.

Outra forma de discurso é “Tudo está nas mãos de Deus; Ele vai me dizer o que devo e o que não devo fazer. Espero Nele; Ele vai me dizer o que devo decidir”. Aqui não se questiona que se deve “esperar em Deus”, porém não confundir com uma atitude de passividade e deixando que Deus venha resolver o que é de sua responsabilidade: continuar ou não em uma situação que depende de uma decisão minha. Exemplo: continuar ou não em uma união; se devo ou não continuar neste ou naquele trabalho; de viajar ou não.

Encontramos casos assim. Às vezes até esperar que Deus “fale”. Para nossa compreensão “esperar em Deus”, deve ser um estado de “espírito” em que nos colocamos sempre em movimento, em uma confiança naquilo que estamos fazendo. É uma confiança interior em minha capacidade de decidir bem. É igualmente não ser orgulhoso e achar que tenho plena certeza naquilo que estou decidindo, mas se colocar em possibilidade; acreditar que estamos fazendo o melhor. É ser confiante e não prepotente. Esperar em Deus é dizer: vou; mesmo sem certeza de chegar. Pois se você já tem certeza você não está esperando em Deus, mas em você mesmo ou em alguém que lhe levou a criar essa “certeza”.

Em muitos discursos de pessoas religiosas, há generalizações de impessoalidade na qual a pessoa se coloca distante, fora da responsabilidade daquilo que está dizendo e vivendo. Exemplo ilustrativo:

Cliente: Mas não é assim que Deus quer que a gente viva; Ele não disse que a gente deve fazer assim?

Terapeuta: Mas quando foi que Ele lhe disse que você devia fazer assim? O cliente expressa uma cara de surpresa e responde.

Cliente: Mas eu não disse que Deus tinha falado comigo?

 Terapeuta: (Então, eu faço o cliente se dar conta) e lhe indago: Mas não foi você quem disse que Deus falou que a gente deve fazer assim? (Nesta situação o cliente fica um pouco embaralhado e usa aquela expressão indefinida e responde).

Cliente: É, Sim, talvez seja isso; é nunca tinha pensado assim. È que todo mundo fica falando que Deus quer assim, mas a gente nunca nem perguntou para saber o que Ele quer mesmo. Agora estou percebendo que sou eu que preciso fazer; decidir, pois não é Deus que tem essa obrigação; mas minha. Agora estou pensando o quanto eu já coloquei a responsabilidade em Deus em coisas que diz respeito a mim. 

Terapeuta: (O cliente ainda usa a gente). Como estou diante de uma pessoa religiosa lhe pergunto: você não acha importante você mesmo perguntar a Ele o que Ele realmente pede a você?

 Cliente: Nunca tinha pensado assim, mas confesso que eu gostei – penso que vou agora estar atento para saber o que Ele quer de mim.

 Terapeuta: E se você se perguntasse também o que você quer com Deus e Dele?

Dessa forma tentamos colocar no cliente awareness a respeito de assumir sua responsabilidade diante da vida, das decisões que tem que fazer; e que muito daquilo que faz e vive é de outros e não seu. O seu discurso do “a gente”, “todo mundo diz” assim; tira-lhe a responsabilidade diante do seu destino.    

 

Confluência

A confluência é um dos mecanismo da neurose para a gestaltterapia. Fritz Perls (1998) nos diz que: “Quando o indivíduo não sente nenhuma barreira entre si e seu meio, quando sente que ele próprio e o meio são um, está em confluência com este meio. As partes e o todo são indistinguíveis entre si.” (p. 51).

No entanto, podemos distinguir a partir de Fritz Perls (1998) que a confluência pode ser geradora de neurose, mas também ser saudável. Ele lembra estas duas dimensões se referindo mesmo nos casos da experiência religiosa:

Os rituais exigem este sentido de confluência, no qual as barreiras desaparecem e o indivíduo sente-se mais ele mesmo porque está estreitamente identificado com o grupo. Um dos motivos pelos o ritual produz um sentimento de exaltações experiência intensa é que normalmente sentimos muito agudamente a barreira entre nós e o outro, e sua dissolução temporária é sentida. (p. 51).

Aqui vemos a confluência como esta dimensão saudável em que permite ao indivíduo se sentir como um todo, e não do contrário uma parte isolada. No entanto, a confluência pode manifestar o mecanismo neurótico como nos diz Fritz Perls (1998): “Mas quando este sentimento de completa identificação é crônico e o indivíduo torna-se incapaz de ver a diferença entre si mesmo e o resto do mundo, está doente psicologicamente”. (p. 51-52).

Podemos identificar essa dificuldade para algumas modalidades de experiência religiosa em que se busca uma confluência, isto é, uma busca de ser igual ao outro, de se assemelhar em tudo ao outro, de responder em tudo ao que o outro espera. Muitas pessoas que vivem em um credo religioso, uma denominação religiosa são levadas a corresponder às exigências externas, aos “mandatos” de seu Grupo. Tal compromisso, com o passar do tempo, pode fazer com que ele já não consiga mais distinguir o que é necessidade sua ou do outro. Podemos dizer que nestes estados a fronteira de contato já não consegue mais distinguir, não há mais fronteiras.

Yontef (1998), nos adverte desse perigo quando a confluência impede, inviabiliza um bom funcionamento na fronteira de contato na qual não há distinção entre o sujeito e o ambiente. Ele classifica esse conflito de “Distúrbio da fronteira de contato”. Diz ele: “Na confluência (fusão), a distinção e separação entre o self e o outro perde tanta nitidez que a fronteira é perdida”. (p. 28-29).

Fritz Perls (1998) nos diz que: “quando o indivíduo não sente nenhuma barreira entre si e seu meio, quando sente que ele próprio e o meio são um, está em confluência com este meio. As partes e o todo são indistinguíveis entre si.” (p. 51). Este tipo de modalidade da experiência religiosa é muito comum, ocorre em praticamente todas as religiões. Os nomes dados a esse tipo de “manifestação” variam de acordo com cada denominação. Pode ser chamada como: “Repouso no Espírito”, “incorporação”, “Manifestação do Espírito”. Porém em todas elas pode acontecer em estado patológico. Estes casos “crônicos” podem ser encontrados em situações de psicoses como na esquizofrenia na qual o sujeito se identifica com a própria divindade; as vozes do próprio interior são interpretadas como sendo do “além”, de Deus.

Fritz Perls (1998) quando o indivíduo não consegue distinguir entre ele e o outro, ou seja, entre ele e o Sagrado, entre ele e as pessoas, esta confluência é patológica: “A pessoa em quem a confluência é um estado patológico, não pode discriminar entre o que ela é e o que as outras pessoas são. Não sabe onde ele termina e começam os outros. Como não sabe da barreira entre ele e o outro não pode entrar em bom contato com ele”. (p. 51). Ainda para Perls: “A confluência patológica também tem sérias consequências sociais. Em confluência, a pessoa exige semelhança e recusa tolerar quaisquer diferenças”. (p .53).

Dessa dificuldade, Buber já nos lembra quando fala da modalidade da experiência religiosa no misticismo quando diz: “A relação com Deus, como é pensada pelo misticismo, é, como sabemos, o “desaparecimento” do Eu, e o indivíduo cessa de existir quando, mesmo no abandono, não é mais capaz de dizer Eu”. (1982, p. 83).

            Não se pode negar que há em muitos religiosos uma busca persistente de ser o mais fiel seguidor das normas, das orientações, dos preceitos do grupo a que pertence. Falamos em pessoas religiosas porque fazem parte da nossa temática. Isto não quer dizer que não haja em outras relações sociais, políticas e culturais tipos de confluências patológicas. Todas as vezes em que nos anulamos em função do grupo, da comunidade temos uma confluência  “patológica”. Do time de futebol à relação homem-mulher, ou mesmo, entre pessoas do mesmo sexo, há confluência patológica. Isto pode acontecer todas as vezes que alienamos partes de nós para “agradar” a outros; estamos nos negando, nos impedindo de viver nossos desejos, nossas emoções em função de outro; vivendo assim confluência patológica. Assim nos diz Perls: “O homem que está em confluência patológica amarra suas necessidades, emoções e atividades num amontoado de completa confusão até que não mais se dá conta do que quer fazer e de como está se impedindo de fazê-lo”. (Ibid., p. 52).

No entanto, pode-se falar do lado positivo da confluência e não só de sua condição patológica. É o próprio Perls que nos fala dessa dimensão positiva mesmo no espaço religioso. Diz-nos ele: “Um dos motivos pelos quais o ritual produz um sentimento de exaltação e experiência intensa é que normalmente sentimos muito agudamente a barreira entre nós e o outro, e sua dissolução temporária é sentida”. (Ibid., p.51).

             Erving Poster (2001) nos mostra que a confluência pode se prestar a um propósito positivo quando o individuo tem consciência daquilo que está buscando, que sabe de seus objetivos; ou seja, sabe ainda distinguir seus interesses e os do grupo. Assim nos diz:

Um indivíduo pode optar propositadamente por diminuir as diferenças para permanecer na direção de um objetivo mais importante e para resistir a uma estática irrelevante. Submeter o estilo individual próprio para desempenhar um papel designado numa tentativa em equipe, como time de futebol [...] uma campanha política, é uma doação temporária do eu para uma unidade mais ampla. Isso difere da confluência porque o senso de eu do individuo mantém-se como figura [...] Mas se a vida dele estiver abarrotada de exigências de concessões pessoais, quer ele goste ou não disso, obviamente essa situação será frustrante, e não nutridora. (p. 105). 

           

 Com estas observações, pode-se afirmar que há confluências que nada têm de “patológico”, porém que servem como uma energia investida de forma positiva para um bem -estar da pessoa; que lhe permite crescimento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Ao término deste trabalho, feita a análise do material consultado e consequentes discussões, considerou-se que, quanto ao objetivo de delinear as vicissitudes da Gestaltterapia e da religião verificou-se a amplitude e eficácia de ambas em seus campos específicos.

Ressalta-se a importância da Gestaltterapia dialógica como instrumento para auxiliar o ser humano em suas dinâmicas relacionais. Ela nos ajudaria a enfrentar os grandes sofrimentos e angústias próprias do humano e que hoje são mais presentes por vivermos em uma sociedade tão egoísta, hedonista, calcada em valores que não privilegiam o encontro, o contato e a relação como possibilitadora da saúde.

No tocante a religião, destaca-se sua importância como instrumento que auxilia o humano para viver de forma plena sua relação entre homens e mulheres; consigo mesmo e com Deus a partir da integração das partes num todo; em que polaridades são acolhidas; ou seja, quando não se cria dicotomias de mundos: sagrado e profano.

Que não se pode ignorar a importância da espiritualidade religiosa para a saúde geral e mental. No entanto, é necessário distinguir que algumas modalidades da experiência religiosa não ajudam ao cliente encontrar a “saúde”, pois nem todas possibilitam uma dinâmica integrativa, mas, ao contrário, são geradoras de dicotomias, de alienação e exclusões das partes.

Associando o conhecimento oriundo da prática clínica em psicologia ao conhecimento religioso, acredita-se que haveria uma maior clareza no trato com tais demandas, além da possibilidade de uma atuação mais consistente e ligada à atualidade em que o espiritual aflora com tanta força. Assim, aponta-se a necessidade dos novos alunos de psicologia receber uma formação mais profunda, que lhes forneça instrumentos ao desenvolvimento de sua capacidade de uma melhor compreensão do fenômeno religioso.

É necessário extinguir os preconceitos de alguns psicólogos com relação à religião, à fé, e da mesma forma, de alguns setores das instituições, grupos e pessoas religiosas com relação à psicologia não vendo esta como inimiga da religião. Tendo em vista que ambas as práticas têm como objetivo acolher o homem em seu sofrimento existencial, acredita-se que suas possíveis intercessões se transformariam em ganhos para os que estão procurando ajuda. Que mesmo com suas metodologias diferentes, não precisam tornar-se divergentes, antagônicas e excludentes.

Não se pretende com a presente pesquisa, afirmar que os profissionais de psicologia tenham obrigatoriamente que cursar teologia, mas que seria valioso para os mesmos se apropriarem de algumas teorias; terem, enfim, uma formação mais profunda nesta direção. Posto que diante dos desafios presentes, não se pode dar ao luxo de dispensar um maior conhecimento tão importante como suporte para a compreensão e ajuda para aqueles que necessitam e que nos procuram na clínica psicológica.

Sugere-se que para suprir a “carência” de estudos nesta área, novas pesquisas sejam realizadas, e, além disso, que se desenvolvam programas de formação dos futuros profissionais, que se incluam nos currículos das academias disciplinas voltadas para a temática da espiritualidade, e que possibilitem uma visão ampla das questões que agora se apresentam. Espera-se que este trabalho gere novos questionamentos e estimule ações cada vez mais adequadas e capazes de atender a esta demanda de nossa sociedade.

Diante do exposto é importante considerar algumas coisas que não se pode esquecer.

Que a experiência religiosa de alteridade nos indica que somos uma singularidade, somos seres únicos, mas, no entanto, não somos seres isolados; fazemos parte de um Todo, de uma totalidade. Que, enquanto totalidade, estamos necessariamente sujeitos a viver em relação sob pena de adoecer.

Que o Sagrado como sendo nossa alteridade; este “Totalmente Outro”, mas não o estranho e distante nos leva a abrir-se para as alteridades dos entes existentes de sua criação no mundo, na natureza e entre homens e mulheres; ou seja, buscar integrar-se no todo, na totalidade.

Como uma totalidade, o ser humano necessita integrar, incluir as partes e não rejeitá-las, alienar as mesmas, inviabilizando um viver pleno, completo.

Como alteridades em relação com outras alteridades: é necessário um olhar sobre o mundo como polaridades e não em dicotomias que se rejeitam partes e assim excluem e não integram;

Que as relações, como um evento que acontece no encontro entre alteridades, são conflituosas; elas se desenvolvem num espírito de abertura para o outro; em um espírito de reciprocidade. No entanto, se requer coragem; pois nelas acontecem o transitar em possibilidades de um viver Eu Tu e um Eu Isso. Dessa forma, acolher também o desencontro é caminhar para a saúde e bem-estar. É isso que podemos compreender quando Buber nos fala de que nossa grande angústia é que o Tu venha a se transformar num Isso.

Que algumas modalidades da experiência religiosa dificultam uma visão ou um viver de forma a integrar, incluir, pois geram dicotomias; as partes são vistas como antagônicas.

Que no tocante à temática aqui discutida, ou seja, a clínica psicológica e a religião; não se pode fechar em “verdades”, mas apenas caminhos possíveis que facilitam um diálogo.

Que a Gestaltterapia, como uma terapia do diálogo, da totalidade e da inclusão, permite o espaço de acolhimento do espiritual.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

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RODRIGUES, Hugo Elidio. Introdução à Gestalt-terapia: conversando sobre fundamentos da abordagem gestáltica / Hugo Elidio Rodrigues. – Petrópoles, RJ: Vozes, 2000.

VERÍSSIMO, Luiz José. A ética da reciprocidade: diálogo com Martin Buber/Luiz José Veríssimo. – Rio de Janeiro: Uapê, 2010.

YONTEF, Gary M. Processo, diálogo, awereness. [tradução de Eli Stern]. – São Paulo: Summus, 1998.

b) Site:

BARBOSA, Onildo: www.letras.com.br/onildo-barbosa-e-seus-cabras-da.../deus-(poema)‎.

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[1]A palavra alteridade tem sua raiz no latim: “Alter” quer dizer “outro”. Dicionário Aurélio