GEOGRAFIA E PERCEPÇÃO: Merleau-Ponty e sua influência na Geografia Humana  

Marquessuel Dantas de Souza

Graduado em Geografia

Faculdades Integradas Tereza Martin (FATEMA) - SP

[email protected]

São Paulo

 2012

 

 

GEOGRAFIA E PERCEPÇÃO[1]: Merleau-Ponty e sua influência na Geografia Humana

 

 

Resumo

O presente artigo busca discutir brevemente a importância e a influência da fenomenologia do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty nas análises geográficas. Sumariamente, este pequeno esboço nos propõe, por assim dizer, uma reflexão compreensiva e fundamental da filosofia de Merleau-Ponty frente às pesquisas científicas em Geografia, muito embora sua contribuição não seja reconhecida por muitos profissionais geógrafos. Sobretudo, em se tratando da investigação espacial. Mas aqui, nos convém salientar o quanto a epistemologia deste filósofo é relevante à abordagem geográfica sob o prisma do espaço vivido e experienciado por quem o habita, independentemente de sua cultura. Três geógrafos serão considerados como os representantes dessa Geografia Humanista no Brasil, cuja metodologia está pautada na fenomenologia Merleau-Pontyana.

Palavras Chaves: Geografia; Fenomenologia; Merleau-Ponty; Percepção; Espaço.

GEOGRAPHY AND PERCEPTIONS: Merleau-Ponty and his influence in Human Geography

Abstract

This article briefly discusses the importance and influence of the phenomenology of the French philosopher Maurice Merleau-Ponty in geographic analysis. Summarily, this little sketch we propose, as it were, a reflection comprehensive and fundamental philosophy of Merleau-Ponty front of scientific research in Geography, although their contribution is not recognized by many professional geographers. Especially, when it comes to space research. But here, we want to emphasize how much of this philosopher's epistemology is relevant to the geographic approach through the prism of the space lived and experienced by their inhabitants, regardless of their culture. Three geographers will be considered as the representatives of this Humanist Geography in Brazil, whose methodology is based in the phenomenology Merleau-Pontyana.

Keyword: Geography. Phenomenology. Merleau-Ponty. Perception, Space.

Introdução

Por muito tempo, na história da humanidade, o homem se viu confuso por não saber o porquê das coisas, dos fenômenos que apareciam em sua frente e o mesmo ficava perplexo com tais situações. Desde os tempos remotos na história do homem sua intencionalidade fora relevante para desenvolver sua capacidade motora em relação aos fenômenos advindos da própria natureza. E, entretanto, usou de sua inteligência para assim sobressair-se em vantagem quando voltado para essas coisas fenomênicas. A urgência do homem em compreender tais manifestações concernentes ao que ele percebia o levou a utilizar uma ferramenta essencial para tal compreensão da realidade. A sua própria referencia através do ‘seu próprio corpo’. E esta capacidade corporal através de si mesmo fizera com que o filósofo francês Merleau-Ponty desenvolvesse sua filosofia fenomenológica partindo do corpo como princípio fundamental para a percepção do mundo.

É a partir desta contextualização que o presente texto pretende discutir brevemente a importância e a influência da fenomenologia de Merleau-Ponty na Geografia. Para tanto, três geógrafos brasileiros serão incorporados na temática a fim de mostrar que em suas pesquisas geográficas todos estes utilizam, por assim dizer, a epistemologia Merleau-Pontyana, principalmente na Geografia Humanista.

O trabalho está dividido em duas partes, no qual, a primeira parte objetiva trazer à luz um breve conhecimento sobre a fenomenologia de Merleau-Ponty, sua compreensão de corpo, de percepção e de experiência vivida. Na segunda parte busca-se relacionar sua filosofia às Geografias dos Geógrafos que serão considerados como os representantes da Fenomenologia Merleau-Pontyana no Brasil. Em síntese, o presente texto nos direciona para um debate em que o intuito é unir, por assim dizer, alguns Geógrafos que sofreram influência da Fenomenologia, em particular, de Merleau-Ponty. Em todo caso, estes trabalhos estavam isolados, grosso modo, porém, aqui houve a tentativa de aproximá-los em um único escrito.

Com efeito, uma parte considerável dos estudos geográficos com perspectiva fenomenológica evidenciam, sobretudo, as filosofias ou, as epistemologias de outros autores fenomenólogos tais como Heidegger, Husserl, Sartre, e Bachelard, principalmente. Porém, esquecem que outro fenomenólogo (Merleau-Ponty) - cuja importância está direcionada quando de sua abordagem sobre o espaço vivido - tenha sua importância. Bem entendido, “dos principais autores da fenomenologia a partir de Edmund Husserl, Merleau-Ponty é o que menos se discute a respeito de sua epistemologia na geografia” (Souza, 2012:16). Desde então faz-se necessário colocar algumas questões, no entanto não iremos nos prender as mesmas, em virtude de não ser nosso objetivo aqui. Mas que certamente tais indagações irão suscitar polêmicas. Vejamos: porque se prioriza com maior importância - no seio da Geografia Humana - alguns fenomenólogos como Husserl, Sartre e Heidegger, por exemplo, e menospreza-se Merleau-Ponty? “Porque a um desinteresse deste último por parte dos geógrafos? Sua filosofia não tem mérito a tal ponto que seja rejeitada pelos próprios geógrafos?” (Souza, 2012:17).

Eis algumas questões que suscitarão polêmicas. Mas que não pretendemos respondê-las visto não ser nosso propósito. Para isto seria necessário outro escrito. Desde então nos limitaremos a tal abordagem. Doravante, o objetivo do presente artigo é mostrar a influencia de Merleau-Ponty na Geografia, em especial, na Geografia Humanista Cultural brasileira. Assim, as questões levantadas anteriormente apenas são como uma crítica à Geografia Humana, em particular à Geografia Humana no Brasil.

Merleau-Ponty, um filósofo da existência

Para Paulo Sergio do Carmo, “se quiséssemos dar uma das várias definições para a filosofia de Merleau-Ponty, poderíamos chamá-la de “filosofia do corpo”. É através dele que se estabelece a nossa existência no mundo” (Carmo, 2004:35). Fundamentalmente é a partir da noção de corpo junto à noção de percepção que a filosofia Merleau-Pontyana irá se pautar. Para tanto, conforme Elias Lopes de Lima “o maior mérito de Merleau-Ponty tenha sido inserir o homem - por meio da percepção, experiência, sensibilidade e outras afecções somáticas - no centro de uma contradição secular, com isso tornando o corpo perceptivo um mediador de tais antinomias” (Lima, 2007:66), tais como “sujeito e objeto, tempo e espaço” (Lima, 2007:66), entre outras.

Neste sentido, corpo e espaço apresentam-se simultaneamente como uma única ligação. Pois, “o corpo e o espaço implicam mutuamente uma relação de reciprocidade como um todo. O corpo é o meio pelo qual me comunico com o mundo, diz Merleau-Ponty” (Souza, 2012:102). Para tanto, ”longe de meu corpo ser para mim apenas um fragmento de espaço, para mim não haveria espaço se eu não tivesse corpo” (Merleau-Ponty, apud in Souza, 2012:43). Assim sendo, corpo e espaço não se separam, são unos.

Comumente, dividimos a mesma ideia com Elias Lopes de Lima de que, “nesse sentido, toda experiência corporal é por definição e princípio uma experiência espacial” (Lima, 2007:67). No mesmo sentido, para Merleau-Ponty “o corpo é nosso meio geral de ter um mundo” (Merleau-Ponty, 2006:203) e, para tanto, já que ele faz parte da existência “não se deve dizer que nosso corpo está no espaço nem tampouco que ele está no tempo. Ele habita o espaço e o tempo” (Merleau-Ponty, 2006:193).

Assim, “não estou no tempo e no espaço, não penso o espaço e o tempo; eu sou no espaço e no tempo, meu corpo aplica a eles e os abarca” (Merleau-Ponty, 2006:195). Quer dizer, meu corpo está ou, existe reciprocamente no espaço e no tempo. Por conseguinte, minha presença no mundo se efetiva através do meu corpo, e, estamos no mundo por intermédio do nosso corpo, enquanto percebemos o mundo com nosso corpo. E “se percebemos com nosso corpo” (Merleau-Ponty, 2006:278) ele “é um meio natural e como que o sujeito da percepção” (Merleau-Ponty, 2006:278). Em outros termos, é com o meu corpo que sou no mundo. Portanto, “cada um de nós está, de fato, esticado e extendido no espaço” (Relph, 1979:08), por intermédio do próprio corpo.

Para tanto, podemos dizer que o que é geográfico (o mundo) está para nós como o meu corpo está para mim. Isto é, não vivo sem o mundo e não vivo sem o meu corpo. Em outras palavras, percebo as coisas imediatamente por intermédio do meu corpo, de modo que estou envolvido no mundo. Neste sentido, aquilo que é geográfico existe por ser o suporte físico necessário à minha própria condição de ser existencial concreto no mundo. Espaço e tempo reciprocamente como instância maior da existência. Portanto, acreditamos que a referida percepção imediata vem antes da tomada de consciência, conforme a fenomenologia de Merleau-Ponty. Pois, antes de conscientizarmo-nos das coisas no mundo, temos primeiramente um corpo perceptivo no espaço-tempo existencial.

Diante o exposto, identificamos e inferimos uma semelhança entre as ideias de Merleau-Ponty com as análises de Schopenhauer. Pois, para este último filósofo, primeiramente eu percebo o mundo através de meu corpo (como uma vontade cega), em seguida conscientizo-me deste mundo por meio da representação que faço do mesmo. Assim sendo, grosso modo, façamos os seguintes questionamentos: esta aproximação de Merleau-Ponty com Schopenhauer não teria algo em comum? Em outros termos, não teria Merleau-Ponty lido Schopenhauer em algum momento de sua vida? O filósofo francês sofreu influencia do filósofo alemão? Eis algumas indagações interessantes, contudo, não iremos discorrer sobre as mesmas, pois essas não são nosso objetivo neste momento. Apenas colocamos de passagem como uma simples observação de nossa parte. – Seguiremos com nossa discussão.

A questão da percepção na filosofia Merleau-Pontyana é de primeira ordem, haja vista ser a percepção a instância que nos coloca em contato com o mundo. Deste modo, a filósofa Marilena Chauí nos chama atenção dizendo-nos que “a percepção situa-se no campo aberto do possível” (Chauí, 2002:225). E para tanto, “o sujeito de percepção é antes o corpo, não uma consciência” (Moutinho, 2006:181), de modo ser o corpo que primeiro capta a percepção e só depois esta passa à consciência. Para Merleau-Ponty a consciência é “como algo atravessado pela intencionalidade, resultante da integração do sujeito a determinadas vivências, todo um processo encarnado pela subjetividade” (Pereira et al., 2010:174). Em todo caso, “a percepção, de uma vez por todas, não é um ato pessoal” (Moutinho, 2006:185). Ela é espontânea na maneira própria de ser.

Entrementes, buscando compreender nossa discussão relacionada ao corpo perceptivo e ao mundo, resta-nos ressaltar a proposta Merleau-Pontyana de corpo no mundo. Ou seja, diferentemente do que afirma Schopenhauer, que concebe o mundo como representação[2], Merleau-Ponty procura rejeitar essa ideia sobre o mesmo mundo no qual Schopenhauer faz referência[3]. Para Merleau-Ponty “o mundo não é minha representação, ele é nosso mundo ou, enquanto mediatiza os intercâmbios entre os sujeitos, um intermundo” (Dartigues, 1992:62). Pois “o mundo não é um objeto no qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas” (Merleau-Ponty, 2006:06). Destarte, “o mundo é aquilo mesmo que nós nos representamos, não como homens ou como sujeitos empíricos, mas enquanto somos todos uma única luz e enquanto participamos do Uno sem dividi-lo” (Merleau-Ponty, 2006:07-08). Por conseguinte, para Merleau-Ponty “o corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles” (Merleau-Ponty, 2006:122). De todo modo, “o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável” (Merleau-Ponty, 2006:14).

Em todo caso, a filosofia fenomenológica de Merleau-Ponty está engajada num projeto existencial preponderantemente em que valoriza o homem e seus sentimentos, suas ações ontogenéticas e filogenéticas no sentido filosófico-cultural. Sem, contudo, deixar de ser fundamental para a análise geográfica, sobretudo, para com a Geografia Humanista Cultural. Assim, cumpri-nos compreender qual o seu valor nas análises geográficas.

A filosofia Merleau-Pontyana na Geografia

Como fora brevemente constatado na primeira parte do presente texto, foi possível, por assim dizer, termos uma breve noção da epistemologia fenomenológica Merleau-Pontyana. Haja vista a filosofia de Merleau-Ponty

Está centrada na ideia de Percepção como ato primeiro de todo conhecimento humano. Doravante, sua filosofia culminou por influenciar alguns geógrafos - não apenas de sua época como também, posteriormente - e os usuários, por assim dizer, de sua filosofia passou a aplicar a fenomenologia Merleau-Pontyana em suas análises geográficas. Como pioneiro a fazer uso dessa filosofia fenomenológica de Merleau-Ponty temos o exemplo da Geografia de Éric Dardel que utilizando a fenomenologia como base para suas pesquisas (Souza, 2012:115-116) primava por essa compreensão: pensar a Terra, o lugar, a partir da percepção de quem a vive. Das coisas que parecem óbvias (Nogueira, 2004:214).

Não obstante, “a geografia de Dardel buscou estes princípios, vendo a Terra, o lugar, a partir da percepção de quem a habita. A partir das relações dos homens com as coisas dos lugares que conhecem, que vivem” (Nogueira, 2004:216), dando importância ao estudo do espaço. Em particular, o espaço geográfico. Pois, para Dardel “l'espace “pur” du géographe n'est pas l'espace abstrait du géometra: e'est le blue du ciel, frontière entre le visible et l'invisible...” (Dardel, 1952:10)[4].

Bem entendido, outros geógrafos também fizeram uso dessa fenomenologia Merleau-Pontyana. Entre estes, por exemplo, no Brasil temos três autores no qual estudamos as teses de doutorado dos mesmos e interpretamo-las com o objetivo de trazê-las a público. Estes geógrafos brasileiros desenvolveram suas pesquisas com base na epistemologia e ontologia de Merleau-Ponty. São: a Profª Drª.  Amélia Regina Batista Nogueira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), o Profº Dr. Samarone Carvalho Marinho da Universidade de São Paulo (USP) e o Profº Dr. Ulisses da Silva Fernandes da Universidade Federal Fluminense (UFF). Muito embora a Profª Amélia Nogueira (UFAM) tenha defendido sua tese na USP.

Nestas teses, todos os autores evidenciam a fenomenologia como metodologia de pesquisa. Em especial a fenomenologia Merleau-Pontyana. As três teses de doutoramento no qual estamos referenciando-as estão reunidas em um trabalho de pesquisa cujo título apresenta-se: Geografia e Percepção: uma interpretação introdutória a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty. São Paulo: Biblioteca 24 horas, 2012. De autotia do autor do presente texto. Não obstante, esses trabalhos estavam isolados no sentido de estarem nas prateleiras ou nos bancos de dados das bibliotecas das referidas universidades. Entretanto, no trabalho citado anteriormente procuramos reuni-las (as teses) em um único trabalho e mostrar a influência da filosofia de Merleau-Ponty nas três teses defendidas no Brasil num intervalo de uma década, e aqui estamos buscando o mesmo, porém, com breves alterações e adaptações concernentes ao tema em questão.

Bem entendido, a Profª Drª Amélia R. B. Nogueira (UFAM) desenvolveu sua pesquisa em 2001, cujo título: Percepção e Representação Gráfica: AGeograficidadenos Mapas Mentais dos Comandantes no Amazonas. O Profº Dr. Ulisses S. Fernandes (UFF) em 2009, cujo título: Paisagem: uma prosa do mundo em Merleau-Ponty. E o Profº Dr. Samarone C. Marinho (USP) em 2010, cujo título: Um homem, um lugar: geografia da vida e perspectiva ontológica. - Todas as defesas efetuadas nos respectivos trabalhos buscam discutir a perspectiva fenomenológica no âmbito geográfico, porém, sempre considerando os conceitos e categorias que permeiam o cerne da Ciência Geográfica. Para isto, os três autores discorreram sutilmente sobre um tema em particular. A Profª Drª Amélia R. B. Nogueira (UFAM) discutira a respeito do conceito de lugar, bem como o conceito de mapas mentais nos comandantes de embarcações no Rio Amazonas. Pra isto, considerando as contribuições da noção de espaço na fenomenologia de Merleau-Ponty. Já o Profº Dr. Ulisses S. Fernandes (UFF) discutira sobre o conceito de Paisagem em Merleau-Ponty. Principalmente quando este filósofo trata da arte pictórica de Paul Cézanne. E o Profº Dr. Samarone C. Marinho (USP) desenvolvera sua pesquisa em torno da noção de corpo e espaço (lugar) em Merleau-Ponty. Dialogando sobre a poética de Ferreira Gullar, em particular, na obra Poema Sujo. De todo modo, após termos estudado essas teses identificamos o que Edward Relph chamou de As bases fenomenológicas da Geografia. Pois, para Relph “as bases fenomenológicas da realidade geográfica consistem de três pilares: de espaço, paisagens e lugares, na medida em que são diferentemente experienciados como atributos do mundo-vivido” (Relph, 1979:18). Isto quer dizer que, as três teses dos geógrafos brasileiros discutem realmente estas três noções geográficas apontadas por Relph. Enfatizando assim o valor do espaço geográfico.

Geografia e Fenomenologia

 A fim de evidenciarmos o que estamos discutindo, somos exigidos a dizer que: quando falamos - em momento anterior - de Dardel, fora apenas por ser este o geógrafo pioneiro que introduziu a fenomenologia na Geografia[5]. Sobretudo a fenomenologia Merleau-pontyana[6]. Muito embora Dardel tenha sofrido influência de outros autores fenomenológicos, tais como Heidegger e Bachelard, por exemplo. Não obstante, em sua obra O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica, Dardel quando fala do espaço se aproxima muito do pensamento de Merleau-Ponty. Principalmente quando aborda sobre o espaço geométrico. Por sua vez, este geógrafo (Dardel) demonstre não ter a preocupação desse diálogo com o filósofo. Por conseguinte, “o livro de Dardel [...] é sem dúvida o melhor tratado de geografia fenomenológica que foi até hoje escrito” (Holzer, 2011:114). Por isso temos evidenciado este geógrafo como o pioneiro em utilizar a fenomenologia como base metodológica para as análises de cunho geográfico.

Doravante, para uma abordagem mais aprofundada sobre a filosofia de Merleau-Ponty na Geografia ou, a influência que este filósofo fez sofrer especificamente na Geografia Humana remetemos o leitor a consultar: Uma interpretação fenomenológica na Geografia. Porto Alegre: Sulina, 2004. Texto da Profª. Drª Amélia Regina Batista Nogueira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Apenas como clareza do assunto, o referido texto original encontra-se na tese de doutorado da referida autora.

Pois bem, continuemos com nossa discussão sobre a importância de se estudar a epistemologia de Merleau-Ponty quando da relação homem como ser-aí do ente[7] existencial no espaço-tempo concreto para a Geografia Humana. Entrementes, no início do prefácio da obra Fenomenologia da Percepção (1945) Merleau-Ponty aponta para a importância do conhecimento face à experiência e cita um exemplo geográfico dizendo-nos que

Retornar às coisas mesmas é retomar esse mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e é em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem – primeiramente nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho (Merleau-Ponty, 2006:04).

Bem entendido, a partir de nós mesmos é que iremos compreender essencialmente o mundo que nos circunda com seu invólucro permeado de enigmas (por meio de nosso corpo no mundo iremos explorar a existência real e concreta). Muito embora, em outros momentos desta mesma obra (Fenomenologia da Percepção - 1945) do supracitado autor (Merleau-Ponty), o mesmo faz outras citações acerca da Geografia. Todavia, desde já convém explicitar o quão esta obra é importante para a Geografia, não somente por tais citações apontadas (bastantes reduzidas), mas pelo fato evidenciado por Dardel - cuja análise estamos considerando aqui como o pioneiro a utilizar a fenomenologia como base filosófica na Geografia - dizíamos, quando este (Dardel) levanta a importância das vivências experienciadas por aqueles que vivem em um determinado lugar. Pois estas observações estão presentes na obra de Merleau-Ponty Fenomenologia da Percepção (1945). Por sua vez, os três geógrafos brasileiros que relatamos rapidamente poucas linhas passadas, também levantam a importância das vivências experienciadas por aqueles que vivem num determinado lugar.

Como já citado anteriormente, outros geógrafos também fizeram e fazem uso dessa fenomenologia como metodologia de pesquisa. No entanto, Nogueira (2001, 2004) nos proporcionou o conhecimento de Dardel “e outros mais, no qual são desconhecidos no âmbito da própria geografia” (Souza, 2012:117)[8]. Entre estes eminentes estudiosos geógrafos que fazem uso da fenomenologia temos aqui no Brasil, principalmente, assim consideramos, além dos três autores enfatizados anteriormente: Werther Holzer da Universidade Federal Fluminense (UFF), Eduardo Marandola Jr da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Lívia de Oliveira da Universidade Estadual Paulista (UNESP- Rio Claro) e Lúcia Helena Batista Gratão da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Isso, sem falar de muitos outros profissionais que atuam na mesma área (com a mesma perspectiva fenomenológica).

A partir deste momento o conceito de espaço como a máxima conceituação para o estudo da Geografia nos surge frente nossas observações acerca da filosofia. O conceito de espaço passa a ganhar terreno no pensamento de Merleau-Ponty. Para este o espaço é algo diferente dos demais filósofos preocupados com essa temática. De certo, este buscou “desvendar a evolução do conceito de espaço enquanto uma pesquisa filosófica”[9] e não do ponto de vista geográfico. - É bom esclarecer este ponto para que assim possamos evitar equívocos. Em outras palavras, poderíamos desenvolver aqui uma discussão em torno do conceito de espaço na Geografia, entretanto, não faremos isto em vista de nossa preocupação ser mostrar a influência Merleau-Pontyana na Geografia e como o conceito de espaço, por exemplo, é trabalhado por Merleau-Ponty e como podemos utilizá-lo nas abordagens geográficas, relacionado à ideia de espaço vivido e experienciado por aquele que vive num determinado lugar.  Portanto, no presente texto nossa intenção se direciona para a discussão da noção de espaço em Merleau-Ponty. Bem entendido,

Tentando romper com a ideia de um espaço único e absoluto, propondo um espaço como superfície da existência, apreendido por meio da experiência perceptível (Lima, apud in Souza, 2012:102), Merleau-Ponty compreende o espaço de três maneiras, no qual, dois são apreendidos diferentemente e um apreendido mutuamente (Souza, 2012:102).

“Para Merleau-Ponty há três maneiras de perceber o espaço” (Souza, 2012:103), cuja importância nos convém analisar por ser um conceito fundamental para a Geografia. Salientemos que, ao discutir sobre o espaço geométrico este filósofo nos deixou traços visíveis para interpretarmos que Dardel realmente utilizou-se dessa fonte para desenvolver sua geografia fenomenológica, conforme Holzer (2011). Por sua vez, como já defendido anteriormente, Dardel em sua obra O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica em algum momento cita Merleau-Ponty, muito embora sem demonstrar preocupação em dialogar com o filósofo. 

Dizíamos, Merleau-Ponty considera o espaço por três pontos de vista distintos. Para o mesmo, o primeiro é o espaço espacializado, representado pelo “meu corpo e as coisas, suas relações concretas segundo o alto e o baixo, a direita e a esquerda, o próximo e o distante, podem me aparecer-me como uma multiplicidade irredutível” (Merleau-Ponty, 2006:328). “Este seria o espaço físico” (Nogueira, 2004:217) e, podemos inferir que “natural”.

O segundo é o espaço espacializante, “descubro uma capacidade única e indivisível de traçar o espaço” (Merleau-Ponty, 2006:328), ou seja, “este só vive por um sujeito que o trace, é o espaço traçado, geométrico, é a espacialidade homogênea e isotrópica” (Nogueira, 2004:217) e, podemos dizer que é construído pelo homem.

E, “finalmente a terceira espacialidade, a da experiência do espaço, aquela dada na relação do meu corpo com o mundo e com os outros a partir de uma relação intersubjetiva” (Nogueira, 2004:217). Em outros termos, é na relação de afetividade e das experiências vividas que os homens têm com o lugar onde habitam que os mesmos vivem em sociedade. 

Desta exposição, grosso modo, Eric Dardel soube colher suas significações para além de suas análises geográficas. Por sua vez, o mesmo buscou suas significações não apenas através da filosofia de Merleau-Ponty. Dardel se fundamentou também em outros autores da fenomenologia, como dito anteriormente.

Conforme Nogueira (2004:19), “Dardel foi sem dúvida o representante do pensamento geográfico que trouxe essas discussões tomando como referência a visão fenomenológica de compreensão do mundo”. Foi esse geógrafo que buscando entender a relação existencial do homem com o mundo, absorveu isso como geograficidade[10]. Um relacionamento que liga o homem a terra - “uma geograficidade do homem é seu modo de existência e seu destino” (Nogueira, 2004:223). Portanto, “Dardel inaugura, deste modo, uma geografia existencial” (Nogueira, 2004:220). Evidenciando entre o mundo e os homens, uma relação intrínseca. Assim sendo, “o mundo é aquilo que eu experiencio e é experienciado pelo outro” (Nogueira, 2004:224). Para tanto, “Merleau-Ponty não fala de lugar, mas de um mundo vivido, porém deixa claro que este mundo vivido é o lugar onde habitam os homens” (Nogueira, 2004:224). Todavia, “o mundo vivido[11] é, portanto, entendido como lugar vivido, lugar de vida, lugar de existência” (Nogueira, 2004:225). E para tal, este mundo é o mundo onde estamos inseridos inegavelmente, por todas as nossas ações como ser existencial.

Como bem colocou Nogueira (2004:225), “a partir das proposições de Merleau-Ponty muitos estudiosos em ciências humanas fundamentaram seus trabalhos: filósofos, psicólogos, sociólogos, historiadores e geógrafos”. Isto em virtude, principalmente, de suas noções de corpo, percepção e de experiências vividas. Particularizando seu campo de atuação. Dentre estes estudiosos, a mesma autora destaca Eric Dardel na Geografia. E salienta como tínhamos dito anteriormente, que, após Dardel, outros autores se empenharam nessa mesma discussão tendo como base a Fenomenologia. Entretanto, partindo das noções de percepção, experiência, lugar e espaço vivido. Para assim interpretar e explorar a realidade do mundo. A relação Homem-Terra.

Os autores geógrafos posteriores a Dardel, cuja a base de estudos estão pautados na fenomenologia,  são aqueles de cunho humanista, todos preocupados com a mesma perspectiva: a cultura.  Muitos destes preocupados em compreender as possibilidades do envolvimento do homem com a terra. Todos demonstram interesses profundos para com a geografia do homem. Além dos geógrafos brasileiros relatados anteriormente e de Jean-Marc Besse e Philippe Pinchemel, temos Edward Relph, Anne Buttimer, David Lowenthal e Yi-Fu Tuan, ao menos, assim consideramos. 

 

Considerações Finais

Bem entendido, considerações finais esta para não finalizar. Haja vista não termos concluído nada a respeito da temática colocada. Isto em virtude de que simplesmente fizemos apontamentos breves sobre a influência de Merleau-Ponty na Geografia Humana.

Assim, para que possamos evidenciar a fenomenologia de Merleau-Ponty na Geografia, de modo cuja importância sumariamente buscou-se demonstrar aqui, resta-nos enfatizar suas análises principalmente relacionadas à percepção, ao corpo, às experiências vividas e ao espaço como “o meio homogêneo onde as coisas estão distribuídas segundo três dimensões e onde elas conservam sua identidade, a despeito de todas as mudanças de lugar” (Merleau-Ponty, 2004:10). Porém, sempre buscando compreender tal dinâmica por quem o vivencia na maneira própria de ser. Para tanto, não podemos deixar de colocar como sua filosofia não deve ser ignorada e/ou rejeitada no cerne da Geografia Humana. Por conseguinte, suas contribuições são essenciais às análises geográficas. Isto, se assim quisermos atingir verdadeiramente a ontologia do espaço. Não obstante, podemos dizer - ousadamente - que Eric Dardel fundou uma Geografia Fenomenológica.

Enfim, a Geografia como Ciência requer um pouco mais de atenção por parte de seus estudiosos a fim de evitar crises mais acentuadas. Bem entendido, a Filosofia como parte da interdisciplinaridade deve ser considerada preponderantemente, pois que a Geografia surgiu das discussões filosóficas. Todavia, para fundamentar a aproximação entre Geografia e Filosofia devemos nos lembrar da Geografia de Estrabão, cuja mesma no início há uma verdadeira referência da Geografia como estudo filosófico. Do mesmo modo, devemos nos lembrar da obra Geographie Physische de Kant. Filósofo que durante muito tempo fora professor de Geografia Física na Universidade de Königsberg. Por ora é isso o que consideramos.

Referências

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Souza, Marquessuel Dantas de (2012). Geografia e Percepção: uma interpretação introdutória a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty, Biblioteca 24 horas, São Paulo.     

 Notas


[1] O presente texto faz parte do corpo expressivo do trabalho intitulado Geografia e Percepção: uma interpretação introdutória a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty. São Paulo: Biblioteca 24 horas, 2012 (do mesmo autor), muito embora com algumas alterações e adaptações que foram efetuadas para compor este escrito.

[2] “O mundo é portanto representação” (Schopenhauer, 2001, § 1:09).

[3] Muito embora existam semelhanças de pensamentos entre ambos, neste ponto eles diferem.

[4] “O espaço “puro” do geógrafo não é o espaço abstrato do geômetra: é o céu azul, a fronteira entre o visível e o invisível” (Dardel, 2011:08).

[5] Pois “a perspectiva fenomenológica enriquece a Geografia” (Silva, 1986:56).

[6] Pois, “essa fenomenologia é a que Dardel mais aproximou seus trabalhos. Aquela que vai valorizar as experiências vividas, onde a descrição desse mundo, por quem a vive, vai ser a fundamentação e a compreensão da realidade” (Nogueira, 2004:223). Em todo caso, em sua obra O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2011, o próprio Dardel cita Merleau-Ponty. Muito embora este filósofo não seja o único tratado por Dardel. Heidegger e Bachelard também são citados. Para tanto, apenas fizemos referencia a Merleau-Ponty por ser o tema deste texto, ou seja, mostrar a influência de Merleau-Ponty na Geografia.

[7] No sentido Heideggeriano.

[8] Esses outros autores geógrafos que enfatizam a Fenomenologia e referenciam Dardel são: Jean-Marc Besse e Philippe Pinchemel, principalmente.

[9] Informação fornecida pela Profª Drª Glória da Anunciação Alves da Universidade de São Paulo (USP) (informação verbal). Junho de 2012.

[10] “Geograficidade refere-se às várias maneiras pelas quais sentimos e conhecemos ambientes em todas as suas formas, e refere-se ao relacionamento com os espaços e as paisagens, construídas e naturais, que são as bases e recursos das habilidades do homem e para as quais há uma fixação existencial” (Dardel, apud in Nogueira, 2001:24).  “Isto é, uma manifestação direta do ser na existência” (Souza, 2012:71).

[11] Se referindo à ideia de Geograficidade de Eric Dardel.