Gênese Jurídica: Biossegurança e Aborto
Warley Belo
Professor de pós-graduação / UFJF
Mestre em Ciências Penais / UFMG
Advogado Criminalista em Belo Horizonte

"No princípio era o Verbo."
(João 1:1).

A Lei de Biossegurança (Lei Federal no. 11.105/05), em seu artigo 5º. , autoriza a utilização de células-tronco humanas para pesquisas científicas. Alega-se que o artigo em comento seria inconstitucional, pois a vida começaria na concepção. Nos próximos meses, o STF julgará essa importante questão e, em conjunto, construirá um novo paradigma ao definir o início jurídico da vida humana.
Existem dezenas de critérios para definir o início da vida, mas ressaltamos quatro correntes em particular: A primeira afirma que a vida tem início com a fecundação do óvulo. Essa é a posição da Igreja Católica que proibiria a “pílula do dia seguinte” e as pesquisas com os embriões. A segunda aponta o evento da nidação, que ocorre cerca de duas semanas após a fecundação, quando o embrião se fixa na parede do útero materno. A terceira é marca o início da vida para o décimo-quarto dia após a fecundação, quando se começa a formar o sistema nervoso. E a quarta corrente aponta o início da vida entre seis a oito semanas após a fecundação quando se iniciam as ligações entre os neurônios.
A terceira corrente vem ganhando adeptos, paradoxalmente, em razão do conceito jurídico de morte disposto na Lei dos Transplantes (Lei Federal n.º 9.434/97), cujo art. 3º. aponta que a retirada de órgãos humanos para fins de transplantes só pode ocorrer com a cessação da atividade encefálica.
Daí a inevitável analogia no que tange a outras questões: se já se constatou a ausência de atividade cerebral em pacientes (ortotanásia e eutanásia passiva) ou se o feto não possui cérebro (aborto eugênico) há morte jurídica.
Vejamos algumas conclusões que órgãos de especialistas já chegaram: O Conselho Federal de Medicina (Parecer n.º 1.752, de 8 de setembro de 2004) autoriza o transplante de órgãos do anencéfalo após o seu nascimento. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária foi favorável ao Projeto de Lei 4.403 que defende a legalização do aborto no caso de fetos anencéfalos sob os mesmos fundamentos. Igualmente o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (na sessão de 16/8/2004) decidiu considerar que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo não é prática abortiva, seguindo a mesma linha de raciocínio.
Ainda analogicamente, se o auto-aborto ou o aborto consensual forem praticados nas duas primeiras semanas, após a fecundação do óvulo, não se pode falar em agressão ao bem-jurídico vida, pois inexistente na concepção jurídica. Ora, se a morte é a ausência de atividade cerebral, a vida é a presença de atividade cerebral.
Assim, considerando o tratamento que o sistema jurídico pátrio confere à questão do fim da vida aliado ao provável desfecho pela constitucionalidade do art. 5º. da Lei de Biossegurança, o auto-aborto ou o aborto consensual, antes do décimo-quarto dia, não seria mais crime, esvaziado seu bem jurídico.
Não se poderá mais alegar que um embrião é uma criança e que, por isso, o aborto seria um assassínio. Se o embrião, por si só, é vida, não seria exagero encarar a masturbação masculina como um genocídio em potencial ou cada menstruação da mulher um desperdício de uma vida. A contrario sensu, seria possível descriminalizar até mesmo um homicídio porque, se o embrião é potencialmente uma criança, nós todos somos potencialmente mortos, o que é um absurdo.
Não propomos a legalização do aborto. O Brasil não pode e não deve legalizar o aborto. O que se pretende é a criação de novas eximentes em determinados casos do aborto. Isso não quer dizer que se poderá abortar porque a mulher o desejou, quando, por exemplo, a gestação já esteja com cinco meses. Isso nunca deverá acontecer. Mas, é possível regulamentar o aborto pela indicação econômica, por exemplo, quando a gestação não ultrapasse a duas semanas.
Nesta linha de pensamento, não se pode considerar um óvulo fecundado num tubo de ensaio como uma vida. Não se pode colocar em igualdade o óvulo fecundado com uma criança que está em uma cadeira de rodas à espera de resultados das pesquisas nos EUA, Israel ou Japão, onde é legal a experiência com células-tronco. Quem se opõe à pesquisa em células-tronco, em nome de uma pretensa defesa da integridade da vida, na verdade está agindo contra a vida porque impede que pessoas, vivas, tenham condições de defenderem-se de doenças gravíssimas, como o Mal de Parkinson e Alzheimer.
O tema gera polêmica atroz. Logo se vê. Mas que fique claro que esse problema vem ganhando contornos cada vez mais de cunho legal ou científico do que moral ou religioso.