A articulação entre Estado de direito e democracia anseia a efetivação de regras antecipadamente debatidas e aceitas pela sociedade. No que trata o conjunto de teorias penais e processuais penais, o garantismo não é apenas o legalismo, seu pilar de sustentação está no axioma de um Estado Democrático de Direito. Sobre a evolução dos direitos e garantias da norma penal ensina Coelho(2011): As funções do Direito Penal, assim, podem ser sintetizadas como, por um lado, o controle social, através de mecanismos simbólicos de prevenção. Por outro lado, paralela e paradoxalmente, a garantia do indivíduo frente ao Estado e suas pretensões de intervir sobre a liberdade individual. É no contraponto entre essas duas faces da esfera penal que se pode destacar que o Direito Penal contemporâneo caminha para ser uma esfera jurídica centrada no enaltecimento do ser humano como referência e razão principal das relações sociais. As características do sistema punitivo estão diretamente ligadas à exigência de limitações democráticas. O Direito Processual Penal estrutura preceitos para o exercício da mais violenta expressão do domínio estatal: O Direito Penal. Essas regras permitem que o indivíduo confronte o poder do Estado. Em largas linhas é possível identificar dois grandes arquétipos de Direito Processual Penal, o sistema inquisitório e o acusatório. A nós interessa o segundo, onde o acusado é um sujeito da relação processual em igualdade de condições com a parte acusatória. Esse sistema consolidado mantém a persecução penal como objetivo, todavia, incorpora como condição essencial que essa persecução seja realizada de maneira a proteger a liberdade jurídica do indivíduo face ao exercício de arbitrariedades. Esse modelo não retira a proteção jurídica ao acusado, seja ele culpado ou inocente. Diante dessa perspectiva, torna-se imprescindível a investigação que determina que elementos desempenham a função de estruturar o sistema punitivo, assumindo o papel de conceitos substanciais. Origem e Conceito do Instituto Há certa dificuldade em se precisar a origem do princípio. Para aperfeiçoar a definição e contornos do direito ao silêncio, além de demonstrar como está estruturado esse principio no Brasil, veremos no próximo capítulo que o mesmo encontrou guarita em outros ordenamentos jurídicos. Ainda que nos assemelhe ser um direito natural de todo indivíduo calar as próprias falhas, invocar o princípio em dada situação pode não ser uma tarefa tão simples, pois nenhum código conseguiria disciplinar todo o conjunto da vida social. Outrossim, não podemos falar em princípios absolutos, e embora o objetivo seja tecer conclusões somente ao final da exposição, uma podemos adiantar: Caso um princípio tivesse valor absoluto, supérfluo seria falar em limites. Sendo certo que todo cidadão tem o dever legal de colaborar com a justiça durante uma investigação de caráter penal, é igualmente verdade que isso não se aplica ao réu – indiciado, acusado ou suspeito. Em processo penal, o princípio da não incriminação assinala o direito que tem o acusado, pessoa física ou jurídica, de não produzir provas contra si próprio. É tradução do impulso natural do ser humano de buscar resguardar sua liberdade e rechaçar as acusações que lhe sejam imputadas, além de servir de garantia contra ingerências por parte do Estado e subsidiar a distribuição do ônus da prova, isto é, o dolo ou culpa do acusado ficam a cargo da acusação. Tal princípio possui relação intrínseca com o direito de defesa e a doutrina estrangeira usualmente o destaca como expressão da dignidade humana. As origens da vedação à auto incriminação são referendadas por Romeiro (1942, p.51), apontando as leis dos povos antigos como nascedouro da garantia: o Código de Hamurabi, em que o acusado não era obrigado a auto incriminar-se. Outros estudiosos abalizam origem hebraica ao instituto, Geral Prado(2005, p.72) e também Manuel da Costa Andrade(1992, p.121) indicam que a legislação mosaica tinha por princípio não submeter o acusado a interrogatórios ocultos e não condená-lo unicamente pela confissão. Conforme Pacelli, o direito ao Silêncio encontra origens na Idade Média e começo da Renascença , é a versão nacional do privilege against self incrimination do Direito anglo-americano. O princípio do direito ao silêncio é implicação de um dos desdobramentos da não autoincriminação e do Nemo tenetur se detegere (ninguém é obrigado a se descobrir). Foi uma das grandes conquistas da processualização da jurisdição penal, consolidada no século XVIII, com a queda do Absolutismo . Também de acordo com Pacelli, o direito ao silêncio não se confunde com um suposto direito à mentira, como ainda se nota em algumas doutrinas e cuja desmitificação faremos adiante, mas a proteção contra as hostilidades e as intimidações historicamente praticadas contra os réus pelo Estado. Primitivamente, nas jusrisdições eclesiásticas; depois, no Estado Absolutista, e, mesmo na atualidade, pelas autoridades responsaveis pelas investigações criminais . Ada Pellegrini Grinover (1976, p. 15-31) assinala, com muito domínio, o porquê do imperativo de ser garantido ao acusado o direito ao silêncio: O réu, sujeito da defesa, não tem obrigação nem dever de fornecer elementos de prova que o prejudiquem. Pode calar-se ou até mentir. Ainda que se quisesse ver no interrogatório um meio de prova, só o seria em sentido meramente eventual, em face da faculdade dada ao acusado de não responder. A autoridade judiciária não pode dispor do réu como meio de prova, diversamente do que ocorre com as testemunhas; deve respeitar sua liberdade, no sentido de defender-se como entender melhor, falando ou calando-se, e ainda advertindo-se da faculdade de não responder. Seguindo a mesma linha de pensamento, acrescenta que (1978, p.111): O retorno ao direito ao silêncio, em todo o seu vigor, sem atribuir-lhe nenhuma consequência desfavorável, é uma exigência não só de justiça, mas sobretudo de liberdade. O único prejuízo que do silêncio pode advir ao réu é o de não utilizar a faculdade de auto defesa que se lhe abre durante o interrogatório. Mas quanto ao uso desta faculdade, o único árbitro deve ser sua consciência, cuja liberdade há de ser garantida em um dos momentos mais dramáticos para a vida de um homem e mais delicado para a tutela de sua dignidade. Como infere a autora, muitas vezes o silêncio traduz mais benesses ao acusado do que a autodefesa, sendo assim a CR/88 sagrou o direito ao silêncio como um direito constitucional e uma alternativa do acusado ou do réu. Significa: ele não é obrigado a conservar-se em silêncio e, muito menos, pode ser constrangido ou obrigado a falar. A Tutela do Processo Penal na Constituição Para uma escorreita aplicação do direito é imprescindível que se passe pelas vias constitucionais e principiológicas. A Constituição da República Federativa do Brasil, como norma fundamental da estrutura jurídica, deve subsidiar a tarefa do interprete, seja a demanda civil, seja penal. Do contrário, toda pesquisa feita ao nível de teoria processual, estará sujeita ao fracasso e ao forçoso questionamento da pertinência de seus objetivos, ainda que no plano puramente teórico. Nesse desiderato, não é razoável desenvolver qualquer investigação dogmática distinta do conteúdo constitucional. Toda a construção legal de nossa República é abraçada pela Constituição, não haveria motivo para admitir que o processo penal tivesse tratamento distinto. Como bem observa Nucci (2006, p. 74): “Logo, não se pode visualizar a relação que o Processo Penal possui com o Direito Constitucional, como se fosse uma ciência correlata ou um corpo de normas de igual valor, o que não ocorre. Devemos partir da visão constitucional de direito e democracia, diferençando direitos e garantias fundamentais, bem como os direitos e garantias humanas fundamentais, para atingir, a partir disso, uma correta e ampla visão do processo penal.” Com isso, não dizemos que a vontade do legislador é imperativa. Contudo, o órgão legiferante deve buscar aproximar-se ao máximo do desígnio arquitetado primordialmente pelo legislador. Incabível, por conseguinte, a interpretação conforme a Constituição que tenha como implicação uma ordem contra o texto e o sentido legais, ou contra essa intenção legislativa. Nesta fenda, cabível é o arremate de José Frederico Marques (2003, p. 78): “o que se nos afigura necessário, para que o Direito Processual Penal consiga galgar as altitudes que deve atingir, é que se construam suas categorias jurídicas dentro de postulados estritamente processuais, com a necessária base jurídico-constitucional que lhe dê conteúdo político para ser instrumento eficaz de tutela da ordem jurídica, dentro de preceitos que assegurem à pessoa humana a defesa de seus valores supremos e primaciais”. Conjectura-se um novo rumo no processo penal, sempre congregado à Carta Maior, visando à salvaguarda dos direitos e garantias individuais frente às alterações de um Estado opressor e discricionário, comportando a plenitude do exercício de defesa daqueles sujeitos que estão sendo investigados ou acusados, adjudicando aos cidadãos maior garantia jurídico-processual, em respeito aos princípios constitucionais do processo penal. A ordem constitucional do Estado Brasileiro é estabelecida e caracterizada na instituição de amplas garantias e direitos individuais, positivados e direcionados como basilares. Com muita acuidade coloca Lopes Jr. (2005, p. 39) que devemos observar o seguinte: “Num Estado Democrático de Direito, não podemos tolerar um processo penal autoritário e típico de um Estado policial, pois o processo penal deve adequar-se a Constituição e não vice-versa.” Toda incriminação penal, seja qual for o tipo de sua persecução em juízo, há de manifestar uma infração de natureza grave a bens juridicamente resguardados. A consideração e o estabelecimento de proteção a direitos fundamentais abrangem necessariamente a afirmação da tutela das diferenças individuais e das disparidades entre os variados interesses coletivos. Cumpre anotar que a aplicação do Direito na hipótese de conflito entre princípios não se resolve pelo reconhecimento de validade em detrimento de outro, pelos clássicos critérios da hierarquia, da especialidade e da cronologia das normas, mas por um julgamento de adequabilidade, dirigido pelo maior ou menor peso de cada um para a solução particular do caso. Por conseguinte tanto as regras como os princípios instituem normas jurídicas; contudo, fortuito contrassenso entre regras se delibera pelo exame de sua validade do grau hierárquico normativo; enquanto entre princípios, pela ponderação conforme a totalidade e conforme a integridade dos princípios e regras jurídicas do Direito. É imprescindível que o bem jurídico tutelado pela norma penal tenha caráter constitucional. Implicação da própria observância dos princípios constitucionais estruturantes. Com efeito, se tais princípios são o quadro de lastro normativo, e também, critério regulador da atividade punitiva do Estado, com eficácia normativa limitadora e ordenadora, não se pode aludir que sejam sacrificados em prol da tutela de um bem jurídico infraconstitucional. Exclusivamente por intermédio da Constituição será razoável incluir um bem jurídico como fundamental. Se não há a triagem da proteção constitucional, não há que se falar em bem jurídico considerado fundamental a ponto de desculpar uma intervenção na liberdade individual constitucionalmente afiançada. É reconhecida a importância do Direito Constitucional para os estudos do processo penal. Verifica-se que o processo penal brasileiro estrutura-se a partir do devido processo constitucional. Se tratando da estrutura constitucional do processo penal, reiteramos que na contemporaneidade não é mais concebível desenvolver qualquer pesquisa dogmática, conexa à ciência do processo penal brasileiro, sem que exista um referencial constitucional. Princípios Básicos de Proteção ao Condenado Como pudemos averiguar anteriormente, o acusado, sujeito de direitos e deveres processuais, tem resguardado uma gama de disposições legais que visam lhe garantir uma posição processual compatível com a do detentor da ação penal. Desta feita, os instrumentos legais que lhes são facultados permitem ao acusado contribuir com a decisão judicial no processo. Decerto, mesmo quando o cidadão é acusado pela prática de um ilícito penal, o atual estado democrático pressupõe garantias mínimas de proteção ao cidadão. Assegurou Schaefer (1995, p. 64.): “A qualidade da civilização de uma nação pode ser largamente medida pelos métodos que usa na aplicação da sua lei penal”. Em linhas gerais, os direitos e deveres dos acusados têm origem constitucional, porquanto, como já esboçado anteriormente, “os modelos democráticos de processo penal assumem diretamente uma intrínseca conformação constitucional”. Assim, progredimos com a explanação tratando dos princípios constitucionais que consideramos mais proeminentes no que tange à proteção do acusado e à garantia de um andamento processual penal justo e equânime. Ressalvamos que há numerosos princípios constitucionais que concorrem para a proteção da pessoa humana e do cidadão, assegurando-lhes uma ampla gama de direitos e garantias individuais. Entretanto, o estudo de todos esses princípios poderia ocupar centenas de páginas, o que desvirtuaria aos fins deste trabalho. Nesse ínterim, pelo menos cinco princípios serão tratados, quais sejam: a) a dignidade da pessoa humana; b) a presunção de inocência; c) a ampla defesa e o contraditório; d) o devido processo legal e; e) o direito ao silêncio. A dignidade da pessoa humana No Brasil, país que experimentou períodos ditatoriais poucas vezes abrandados, o ideal de proteção da dignidade da pessoa humana somente foi formalmente reconhecido, após uma trajetória constitucional bastante perturbada, com a promulgação da Constituição de 1988. Carlos Roberto Siqueira Castro citado por Sarlet (2011, p.79) ensina que: ”O Estado Constitucional Democrático da atualidade é um Estado de abertura constitucional radicado no princípio da dignidade do ser humano.” O advento da nossa Constituição alçou o valor da dignidade da pessoa humana a princípio máximo e o consagrou, de maneira inconteste, à uma hierarquia superlativa em nosso ordenamento, na categoria de norma jurídica fundamental. Múltiplas são as passagens na Constituição Federal que enfatiza a dignidade da pessoa humana, como no artigo 5º, incisos III (não submissão a tortura), VI (inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença), VIII (não privação de direitos por motivo de crença ou convicção), X ( inviolabilidade da vida privada, honra e imagem), XI (inviolabilidade de domicílio), XII (inviolabilidade do sigilo de correspondência), XLVII (vedação de penas indignas), XLIX (proteção da integridade do preso) etc. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana visa proteger todos os direitos intrínsecos a qualquer cidadão, é a base a partir da qual se interpreta todo o sistema penal e demais princípios. Consiste na reverência a integridade do homem, absoluto, irrenunciável e inafastável. Uma dos desdobramentos práticos do caráter dirigente da Constituição é que diretrizes, a exemplo da proteção da dignidade humana, deixam de ser meras sugestões filosófico-axiológicas para se transformar em imperativos fáticos em toda vastidão do Direito projetado na sociedade. Não se pode arquitetar um processo penal que não tenha como base a ideia de deferência à dignidade da pessoa humana, posto que pessoa humana é sujeito do processo e não seu objeto. A resposta penal do Estado, conduzida por meio do processo, deve buscar a recuperação do condenado e sua inclusão social, tarefa que não pode ser executada unicamente pelo Direito. Com efeito, a dignidade do homem e os direitos humanos não são antíteses do sistema penal. É um equívoco colocar o paradigma humanitário como oponente da persecução punitiva. Essa função do Estado deve se realizar plenamente e alcançar sua finalidade, sem ofensa aos valores jurídico-políticos máximos, posto que são seu alicerce. A presunção de inocência O arcabouço das garantias constitucionais, dentre as quais o princípio da inocência presumida, afiança ao acusado pela prática de uma infração penal um julgamento reto, conforme o espírito de um Estado Democrático de Direito. A CF/88 expõe o princípio da presunção de inocência em seu rol de direitos e garantias constitucionais de maneira positivada, não obstante já fosse arrolado pela doutrina pátria dentre os princípios gerais que regiam o direito processual penal . Vejamos: Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.(EC nº 45/2004) LVII- ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; O bom emprego do princípio em exame minimiza a probabilidade do exercício de uma justiça imprudente e arbitrária. O Estado juiz deve ser técnico na análise de um fato para ser justo e apor a norma jurídica conforme seu espírito, e desta maneira expressar a pretensão popular que foi positivada por meio de seus representantes. Ressalte-se que o princípio da presunção de inocência não se aplica somente no campo probatório, o in dubio pro reo é só uma de suas repercussões. Deve ser franqueado tanto ao investigado quanto ao réu tratamento compatibilizado com sua condição de inocente. O estado de investigado e de réu em processo criminal já traz, por si, irrefutável constrangimento. Assim sendo, todas as medidas restritivas ou coercitivas que se façam indispensáveis no curso do processo só podem ser apostas ao acusado na perfeita medida de tal necessidade. Se existir diversas formas de dirigir a investigação, deve-se seguir a que traga menor constrangimento ao imputado e que acarrete a menor restrição possível a seus direitos. O Estado é o fidedigno possuidor do direito ao uso da força. Este domínio deve ser empregado em favor da coletividade, pois quando a força é praticada em desconformidade com o lícito ela torna-se violência. O princípio constitucional em esboço tem por desígnio evitar a aplicação antecipada e insensata da justiça. Através desta garantia, o acusado pela prática de uma infração penal, deixa de ser apenas um elemento de uma relação jurídica processual e torna-se um sujeito possuidor de direitos e garantias. O dispositivo constitucional em questão não afasta o julgamento através dos órgãos estatais, apenas proclama o fato de que nenhuma pessoa poderá ser avaliada culpada até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Ou seja, depois de ser julgada por meio de um devido processo legal sendo certificadas todas as garantias constitucionais. A ampla defesa e o Contraditório O conceito de princípio é tão dilatado e tão expressivo que valida a jurisdição e se entrelaça com o próprio Estado de Direito. De tal modo, aplica-se tanto na jurisdição civil e penal, quanto nos procedimentos administrativos. (PORTANOVA, 2003, p. 146). O Devido Processo Legal, como meio inerente ao processo, origina todos os demais princípios, face o seu caráter mantenedor e garantidor de uma ordem social justa. Este princípio de origem na jurisprudência anglo-saxônica faz-se presente em todos os outros de forma implícita e coerente (LEITE, 2010). O Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa são garantidos pelo artigo 5º, inciso LV da CF/88, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; pode ser definido também pela expressão “audiatur et altera pars”, que significa “ouça-se também a outra parte”. É intrínseco ao direito de defesa, pressuposto da bilateralidade do processo: quando uma das partes alega uma certa coisa, há de ser ouvida também a outra, dando-lhe ensejo de resposta. O Princípio do contraditório e ampla defesa é essencial à justiça, está “[...] tão intimamente ligado ao exercício do poder, sempre influente sobre a esfera jurídica das pessoas, que a doutrina moderna, como já dito alhures, o considera inerente à própria noção de processo” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p.61). Assim também é a explanação de Eugênio Pacelli Oliveira (2008, p.28): O contraditório, portanto, junto ao princípio da ampla defesa, institui-se como a pedra fundamental de todo processo e, particularmente, do processo penal. E assim é porque, como cláusula de garantia instituída para a proteção do cidadão diante do aparato persecutório penal, encontra-se solidamente encastelado no interesse público da realização de um processo justo e equitativo, único caminho para a imposição da sanção de natureza penal. A ampla defesa encontra conexão com o princípio do contraditório e é o dever que incumbe ao Estado possibilitar ao suspeito a chance da mais completa defesa quanto à acusação que lhe foi imputada. Compreende a autodefesa, concretizada pelo acusado em seu interrogatório, e a defesa técnica, que necessita da representação do réu por um defensor, que pode ser constituído, público, dativo ou ad hoc. Tereza Nascimento Rocha Doró (1999, p.129) expõe que: Esse princípio processual deriva da garantia constitucional de quem ninguém poderá ser privado de seus bens ou de sua liberdade sem o devido processo legal.Além de existir um processo, deverá ele assegurar a completa igualdade entre as partes, o contraditório e a ampla defesa.Essa ampla defesa compreende conhecer o completo teor da acusação, rebatê-la, acompanhar toda e qualquer produção de prova, contestando-a se necessário, ser defendido por advogado e recorrer de decisão que lhe seja desfavorável. Igor Luis Pereira e Silva (2012, p.270) disserta que: O princípio da ampla defesa determina a participação efetiva no processo penal, abrangendo a autodefesa, a defesa técnica, a defesa efetiva e a possibilidade de utilização de todos os meios de prova passíveis de demonstrar a inocência do acusado, incluindo as provas obtidas ilicitamente. Concluindo, Guilherme de Souza Nucci (2012, p.290) analisa que: A ampla possibilidade de se defender representa a mais copiosa, extensa e rica chance de se preservar o estado de inocência, outro atributo natural do ser humano Não se deve cercear a autoproteção, a oposição ou a justificação apresentada; ao contrário, exige-se a soltura das amarras formais, porventura existentes no processo, para que se cumpra, fielmente, a Constituição Federal. Na esteira do ordenamento constitucional, comungamos do ideal de nenhuma forma de investigação de ilícito deve, e nem pode, refrear a Carta Política de 1988. O acusado não pode ser tratado como objeto, mas deve sim, ser tratado como sujeito de direitos, dispondo das garantias legais e constitucionais a ele avalizadas. Destarte, qualquer indivíduo que seja suspeito da prática de um ato ilícito será socorrido pelos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, independente se o ato ilícito por ele empreendido foi de repercussão geral ou não. O devido processo legal O princípio do devido processo legal pode ser visto como o princípio norteador do ordenamento jurídico brasileiro, deve ser compreendido como uma garantia fundamental do cidadão, na medida em que as inferências que podem ser tiradas do principio são inúmeras, a exemplo dos princípios do acesso à justiça, da ampla defesa e do contraditório. É o princípio conforme o qual o processo deve seguir impreterivelmente a legalidade, desígnio de qualquer Estado de Direito. É o “due process of law” dos americanos. Relaciona-se também com a legitimidade. A esse escopo, conforme Cintra (2001, p. 131), o devido processo legal é o “processo devidamente estruturado” mediante o qual se faz presente a legitimidade da jurisdição, apreendida jurisdição como poder, função e atividade. Alvim (1999, p. 64) articula que um dos exemplos do princípio do devido processo legal se localiza no princípio nula poena sine iudicio – não há pena sem processo. Trata-se de um princípio do direito penal, “significando que nenhuma sanção penal pode ser imposta sem a intervenção do juiz, através do competente processo. Nem com a concordância do próprio infrator da norma penal, pode ele sujeitar-se à sanção, extrajudicialmente”. Podemos analisar o devido processo legal sob duas perspectivas: substancial e processual. Este é empregado no sentido estrito, podendo referir-se tanto ao processo judicial quanto ao administrativo, garante aos litigantes várias direitos no âmbito processual, abarcando, por exemplo, a citação, a ampla defesa, a apresentação de provas na tutela de seus interesses, defesa técnica, o juiz natural, o duplo grau de jurisdição, uma sentença fundamentada. Concernente a esse aspecto, se faz uso da expressão ‘devido processo legal’ e se acrescenta o contraditório, que, conjugado ao direito de ação, ampla defesa e igualdade formal, enfeixa o direito à justiça. Segundo Nery Júnior (S.d., p. 41), o devido processo legal, sob a ótica unicamente processual, “nada mais é do que a possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível”. Por seu turno, Brindeiro (1998, p. 51) deixa anotado: “Segundo sua concepção originária e adjetiva, [...] a cláusula do devido processo legal não visava a questionar a substância ou o conteúdo dos atos do Poder Público, mas sim a assegurar o direito a um processo regular e justo. Por isso, nesse sentido, aplica-se a denominação procedural due process.” O devido processo legal substancial traduz o direito material e demanda uma produção legislativa com razoabilidade, quer dizer, as leis traduzir as aspirações do grupo social a que se designam. É justamente na razoabilidade das normas que se configuram os contornos imprescindíveis ao poder legiferante do Estado, na busca de um Governo comprometido com os verdadeiros interesses sociais. Leis denominadas razoáveis devem atender aos reclamos da sociedade. O princípio do devido processo legal propõe-se a tutelar bens jurídicos como a vida, a liberdade e propriedade, por serem considerados como valores. Refere-se a garantia da prestação de um processo justo. Vislumbra-se a importância do princípio em comento ao consideramos a realidade nacional. Diante de tantas leis desrespeitadas, a sociedade almeja uma jurisdição atuante e o respeito devido à legalidade e a legitimidade, sob pena de transforma-se em um caos social. O direito ao silêncio Pressupõe-se a inocência de todo agente. Não há pena sem culpabilidade ( nulla poena sine culpa ) e esta só pode ser reconhecida após o devido processo legal. O direito ao silêncio, fixado entre os direitos fundamentais, é privilégio constitucional atribuídoa aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, que são investigados ou respondem a processos criminais. Uma das ramificações do devido processo legal é o direito do agente de não auto incriminar-se. Tal direito possui várias dimensões, sendo uma delas, evidentemente, o direito ao silêncio. O direito ao silêncio está considerado expressamente tanto na CF brasileira como na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, como se verá mais adiante. Origina-se na conjugação da presunção de inocência, tendo em vista que esta impede que o exercício daquele seja interpretado em desfavor de quem o exerce, e da ampla defesa. Ao acusado cabe a alternativa de fornecer ou não a sua versão pessoal sobre os fatos que são objetos de prova No HC 92.219-SP o Min. Celso de Mello deixa consignado que : "A garantia constitucional do silêncio encerra que ninguém está compelido a auto incriminar-se. Não há como decretar a preventiva com base em postura do acusado reveladora de não estar disposto a colaborar com as investigações e com a instrução processual.(...)” Quem pratica um direito não pode ser punido -ou lesado- por tê-lo exercido. A origem do direito ao silêncio ou do direito de não autoincriminação emana da presunção de inocência: "Tais consequências - direito individual de não produzir provas contra si mesmo, de um lado, e obrigação estatal de não tratar qualquer pessoa como culpada antes do trânsito em julgado da condenação penal, de outro - qualificam-se como direta emanação da presunção de inocência, hoje expressamente contemplada no texto da vigente Constituição da República (CF , art. 5º , inciso LVII).Não se pode desconhecer, por relevante, que a presunção de inocência, além de representar importante garantia constitucional estabelecida em favor de qualquer pessoa, não obstante a gravidade do delito por ela supostamente cometido, também impõe significativa limitação ao poder do Estado, pois impede-o de formular, de modo abstrato, e por antecipação, juízo de culpabilidade contra aquele que ainda não sofreu condenação criminal transitada em julgado." O direito ao silêncio é um dos importantes institutos processuais que constituem limitações do Poder estatal, fruto das aspirações democráticas da CF/88 em conflito com um ordenamento processual autoritário. Tourinho Filho (1997. p.273) perfilha haver a Constituição Federal de forma explícita, consagrado o direito ao silêncio quando preleciona que: "o acusado tem a faculdade de responder, ou não, às perguntas que lhe forem formuladas pelo Juiz. É a consagração do direito ao silêncio que lhe foi conferido constitucionalmente como decorrência lógica do princípio do nemo tenetur se detegere e do da ampla defesa. É possível que o Magistrado tenha uma impressão desfavorável quando o acusado guardar silêncio, entretanto, não se pode admitir que tal impressão desfavorável se converta em indício para um decreto condenatório. O acusado é um único árbitro da conveniência, ou não, de responder. E ninguém pode impedir-lhe o exercício desse direito. Muito menos de ameaçá-lo, sob a alegação de que o seu silêncio poderá prejudicar-lhe a defesa. Do contrário, a defesa não estaria sendo ampla, nem respeitado o seu direito ao silêncio". Até o ano de 2003, quando houve alteração do art. 186 do Novel Código de Ritos, o silêncio do acusado poderia ser interpretado em prejuízo próprio a defesa, a despeito do mandamento constitucional assegurar o direito ao silêncio. Tal choque entre a Lei Maior e a lei ordinário era esdrúxulo. Alinhava Ada Pellegrini (p. 29, 1976): "Fazer do silêncio do réu elemento que pode ser interpretado em prejuízo da defesa significa valorá-lo como indício de culpa. Ora, é evidente que do silêncio não podem deduzir-se presunções que superem a presunção de inocência do réu, consagrado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da O.N.U. (art. 9º). Ressalte-se, enfim, que quem não reconhece a existência de presunções ou ficções pró-réu no processo penal, com muito maior razão afasta toda e qualquer presunção ou ficção que lhe seja contrária". Nessa senda, cumpre apresentar as lições do mestre Mirabete ( 1996, p. 241): "Essa ressalva, porém, foi revogada pelo art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, que prevê o direito de permanecer calado, sem qualquer restrição, proibindo, assim, que decorra do silêncio qualquer consequência desfavorável ao acusado (nemo tenetur se detegere). Decorre, aliás, dos princípios de presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa". O nemo tenetur se detegere é um direito constitucional que está fundamentalmente ligado à liberdade e a dignidade da pessoa humana, na medida em que afiança o direito ao investigado de não auto incriminar-se, baseia a legitimidade do nosso atual Estado Democrático de Direito, agasalhando-se o direito ao contraditório e a ampla defesa. É precisamente na tutela dos interesses do acusado que assenta-se o amparo dos direitos fundamentais. Logo, nem a própria Lei possui o poder de abreviar direitos assegurados pela Constituição Federal. Hodiernamente há o reconhecimento de nossos tribunais, através de inúmeras decisões, do preceito constitucional de que o acusado pode calar-se. Cumpre-nos permanecer em alerta para impedir que a letra constitucional seja aviltada. A defesa dos direitos fundamentais é uma tarefa que se impõe a todos os cidadãos. De todo o exposto, importa esboçar que o desígnio primordial do princípio do “nemo tenetur se detegere” é a tutela dos direitos do acusado quando da produção de provas, impedindo-se assim que haja transgressão de direitos como o do silêncio, da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade corporal e da honra.