FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E AS LIMITAÇÕES AO DIREITO DE PROPRIEDADE

Rayssa Rios

Sumário: 1. Introdução; 2. Um breve histórico sobre a propriedade e sua função social; 3 A natureza jurídica do direito de propriedade.; 4.Limitações do direito a propriedade; 6. Conclusão; 7. Referências

OBJETIVO

O presente trabalho tem como objetivo central uma explanação sobre um dos institutos mais polêmicos da seara forense: a propriedade. A explanação tem como base o direito de propriedade com todas as limitações a ele inerentes, não deixando de contemplar a verdadeira função social da propriedade no modelo atual de sociedade. Para isso torna-se relevante, em um primeiro momento, abordar a evolução do conceito de propriedade, fazendo uma análise sobre os seus elementos, as suas características, seu tratamento constitucional, bem como a sua imprescindível importância no âmbito dos direitos reais.

PALAVRAS-CHAVES Limitações. Direito à propriedade. Função social.

1 INTRODUÇÃO

É sabido que o direito de propriedade, desde tempos remotos, era tido como um direito absoluto e ilimitado. Apesar do caráter inicial do direito de propriedade ter sido comunitarista, o que se percebeu com o passar dos tempos, foi uma mudança desse paradigma, uma vez que foram percebidos contornos nitidamente individualistas. O pensamento egocêntrico, disseminado entre os romanos, foi o impulsionador para as constantes lutas pela propriedade, uma vez que a sua noção, nessa época, era atrelada a direitos personalíssimos. A Constituição Federal de 1988, no entanto, veio para inaugurar a ordem jurídica e trouxe consigo o caráter socializador da propriedade, incluindo-a como um direito e garantia fundamental. Essa função social, que é nitidamente percebida nos dias de hoje e amparada constitucionalmente, é uma das grandes limitadoras, senão a maior, dos direitos inerentes à propriedade. A Carta Maior dispõe, em seu art. 5º, XXIII, que a propriedade deverá atender a sua função social e o Código Civil, em seu art. 1228, parágrafo 1º, preceitua que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais (...)”. Fica claro, portanto, que o legislador primou por estabelecer um dever jurídico ao proprietário, que tem que exercer o seu direito em conformidade com o bem comum. Além dessa, outras limitações do direito de propriedade se encontram espalhadas por todo o Ordenamento Jurídico, quais sejam: limitações de cunho constitucional, administrativo, privado, público, ambiental, dentre outros. Todas essas restrições ao direito de propriedade visam buscar a sua finalidade social, uma vez que esse direito é conferido a determinada pessoa, de modo que ela possa usar, gozar, usufruir e dispor da coisa, tendo em vista as exigências sociais. Assim sendo, o presente trabalho visa compreender o direito de propriedade e suas inúmeras limitações, não deixando de ressaltar a verdadeira função social desta no cenário atual.

2 UM BREVE HISTÓRICO SOBRE A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL

Desde os primórdios, o assunto propriedade já vigorava nas antigas legislações, uma vez que o indivíduo sempre buscou satisfazer suas necessidades através da apropriação de bens. Em épocas mais remotas, a propriedade tinha característica coletiva, na qual todos utilizavam dela para sua sobrevivência e subsistência. Com o passar do tempo, a propriedade foi adquirindo um caráter individualista e personalíssimo. Em Roma foi onde se percebeu de forma mais nítida essa tendência, uma vez que era dado ao proprietário o direito de usar, gozar e usufruir de forma absoluta e perpétua a sua terra, excluindo a possibilidade de utilização dela por outras pessoas. Essa visão individualista do direito romano é muito importante para o entendimento de propriedade atual, pois é nesse sistema romano que se encontra a raiz histórica desse conceito. Com a queda do império romano e com início da Idade Média houve significativas mudanças em relação ao sentido dado a propriedade. Nesse período, marcado pelo sistema feudal, a propriedade, que antes era privada, passou a ter um caráter concorrente, uma vez que o senhor feudal concedia o direito ao vassalo para utilização da sua terra, em contrapartida este prestava serviço ao senhor, inclusive trabalhos militares. Esse sistema garantia que a propriedade permanecesse em determinada família, como afirma Carlos Roberto Gonçalves: “havia todo um sistema hereditário para garantir que o domínio permanecesse numa dada família de tal forma que esta não perdesse o seu poder no seu contexto do sistema político” (GONÇALVES, Carlos Roberto, p. 244). Com a Revolução Francesa de 1789 e, principalmente, com a promulgação do Código de Napoleão, também chamado de Código da Propriedade, foi estabelecida uma visão individualista da propriedade, retomando a idéia de propriedade do direito romano. Assim sendo, nesse período, procurou-se dá um caráter democrático à propriedade, visando diminuir os privilégios existentes no período feudal. No entanto, essa revolução foi um aparente movimento contra privilégios, uma vez que houve uma substituição dos privilégios do clero e da nobreza pelos privilégios da burguesia. Nota-se, portanto, que a propriedade assumiu uma feição meramente absoluta e incontestável, na qual o proprietário podia usar, dispor, gozar e usufruir da sua terra, desde que não violasse leis e regulamentos. Com o passar do tempo, essa visão egoísta e individualista da propriedade foi sendo modificada devido ao enfoque social que começou a ser dado ao direito de propriedade. Esse caráter social teve seu ápice com a Rerum Novarum, do Papa Leão XIII e Quadragésimo Ano, editada por Pio XI, que reconheceu que o Estado tinha o dever de proteger a propriedade em função do bem comum. Posteriormente, no século XX, com a influência dessa visão de socialização da propriedade houve a predominância do interesse público em relação ao privado. Assim, em decorrência de tal fato, o direito a propriedade deixou de ter um caráter ilimitado e absoluto, passando a ser um direito de finalidade social, influenciando todo o sistema jurídico. Nesse sentido, foi com a Constituição Federal de 1934, influenciada pela Constituição de Weimar, que pela primeira vez foi inserida essa idéia de socialização da propriedade no Brasil. Essa carta política, nos seus artigos 113 e 118, disciplinou de forma inovadora que o direito de propriedade não poderia ser exercido em desconformidade com o interesse social e coletivo. Essa idéia de uso da propriedade ligada ao bem-estar social se firmou também nas Constituições brasileiras de 1937, 1942 e 1946, mas foi com a Constituição Federal de 1967 que a função social da propriedade foi elevada à categoria de princípio da ordem econômica. Essa carta política disciplinou de forma expressa e textual a função social da propriedade, com o objetivo precípuo de estimular o proprietário a utilizar a sua propriedade de maneira proveitosa à sociedade. Atualmente, a Constituição Federal vigente contém vários dispositivos que substanciam essa idéia de socialização da propriedade. Nessa carta política, o princípio da função social da propriedade continuou sendo um princípio da ordem econômica, sendo disciplinado no seu artigo 5º, que trata dos direitos e garantias individuais. Este dispositivo, no inciso XXII e XXIII, afirma que é garantido o direito de propriedade a todos, no entanto para se tornar legítimo, esse direito à propriedade deve atender a sua função social. Assim sendo, caso o proprietário não entenda esse caráter socializador da propriedade, o Estado deve intervir para vê-lo atendido, tendo em vista manter o interesse coletivo prevalecendo sobre o individual. Como afirma Maria Helena Diniz: A função social da propriedade afasta o individualismo , coibindo o uso abusivo da propriedade , que deve ser utilizada para o bem comum. Condicionada essa convivência privada ao interesse coletivo visto que a propriedade passa a ter sua função social , não mais girando em torno dos interesses individuais do seu titular. (DINIZ, Maria Helena, p.107). A Constituição Federal de 1988, com o foco na propriedade urbana, no seu artigo 182, afirma que a propriedade urbana cumprirá com sua função social quando atender as exigências do plano diretor. Essa função social da cidade visa combater situações de desigualdade econômica e social existente nas cidades, assim a propriedade não pode ser alvo, por exemplo, de especulação imobiliária, pois isso acaba interferindo nos processos de desenvolvimento urbano, devido a utilização inadequada do imóvel. Assim, a conseqüência do não atendimento das exigências impostas pelo plano diretor é a perda do patrimônio pelo proprietário. Como afirma Rosenvald: A função social da cidade pode redirecionar os recursos e a riqueza de forma mais justa, combatendo situações de desigualdade econômica e social vivenciadas na em nossas cidades, garantindo um desenvolvimento urbano sustentável no qual a proteção ao direitos humanos sejam o foco, evitando-se a segregação de comunidades carentes. A prática da cidadania consiste assim em incorporar setores da sociedade aos mecanismos básicos de direito habitacionais. (ROSENVALD, Nelson, p. 252). Relacionado a função social da propriedade rural, o artigo 186 traz as exigências do cumprimento da função social por esse tipo de propriedade. Esse dispositivo define uma série de critérios que devem ser obedecidos de forma simultânea, quais sejam: “aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações do trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. Assim, caso algum desses requisitos não sejam cumpridos, a propriedade não cumprirá com sua função social de forma plena e eficaz, ensejando uma forma de desapropriação especial prevista no artigo 184. Como expõe Nelson Rosenvald: Incumbe ao proprietário, igualmente, cumprir com as obrigações trabalhistas (interesses coletivos) e preservar a esfera ambiental( interesses difusos) ecologicamente equilibrado. Todos esses interesses não proprietários devem ser simultaneamente satisfeitos, e sua infração poderá embasar uma forma especial de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária (art.184 da CF). Em resultado, a função social da propriedade urbana demanda requisitos de eficiência adequada de recurso ambientais e de utilidade comum, favorecendo o bem-estar dos trabalhadores. (ROSENVALD, Nelson, p.260) O Código Civil de 2002, no seu artigo 1228, parágrafo 1º, também disciplina acerca da função social da propriedade. Este dispositivo vai mais além, prevendo a função social da propriedade ao lado da função sócio-ambiental da propriedade. Assim sendo, este artigo previu que o direito de propriedade deve ser exercido, tendo em vista a proteção da fauna e da flora, da diversidade biológica, da água e do ar. Isso ocorre devido ao fato que o proprietário de determinado empreendimento não pode utilizar sua propriedade degradando o meio ambiente e colocando em risco a sociedade. Como afirma Maria Helena Diniz: O atendimento do princípio da função social da propriedade requer não só que o uso do bem seja efetivamente compatível com sua destinação socioeconômica, p. ex., se este imóvel rural,nele dever-se-a exercer atividade agrícola , pecuária, agropecuária, agroindustrial ou extrativa, mas também que sua utilização respeite o meio-ambiente, as relações de trabalho, o bem-estar social e a utilidade de exploração. (DINIZ,Maria Helena, p. 108). A obediência a esses valores normativos não leva o proprietário a uma abstenção ou uma limitação, mas pelo contrário, lhe impõe um dever de agir de acordo com os mandamentos legais. Isso tem respaldo na tese de que os direitos dos proprietários são plenamente respeitados, somente o exercício deles que deve levar em consideração o bem estar social. Por esse motivo, para Eros Grau, essa função social seria não só negativa (deixar de causar prejuízo a alguém), mas também, e principalmente, positiva, pois há a exigência de que a propriedade seja exercida em benefício de outrem. Portanto, como foi abordado anteriormente, a Constituição Federal garante o direito a propriedade a todos, todavia condiciona a observância da sua finalidade social. Dessa maneira, a função social passou a ser parte integrante do direito de propriedade que, de certa forma, acaba restringindo a atuação do proprietário, tendo em vista o interesse de toda coletividade. Enfim, a função social da propriedade é o resultado da supremacia do interesse público sobre o privado, tendo em vista alcançar uma sociedade econômica e socialmente equilibrada.

3 A NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE

A natureza jurídica da propriedade é alvo de muitas polêmicas no cenário forense e, por esse motivo, algumas teorias surgiram com a finalidade de explicar a origem e fundamentar a legitimidade desse direito. Marcada pela expressão “Quod enim nullius est, id naturale ratione occupanti conceditur”, a teoria da ocupação, ainda muito defendida por alguns autores, sustenta que aquilo que não é de ninguém - res nullius- deve pertencer a quem o ocupa. Para Washington Monteiro de Barros somente a lei pode incluir a ocupação como um modo de adquirir a propriedade, o que explica que aquela, por si só, não serve para justificar esse direito. Além disso, o doutrinador pontua que muitas vezes a ocupação dessa propriedade é feita por meio violento, interrompendo transmissões regulares. Carlos Roberto Gonçalves também mostra algumas críticas quanto a essa teoria: Outros defeitos podem ser apontados: a) desconhece que há muitas coisas cuja propriedade não é nem pode ser adquirida por ocupação, como, por exemplo, a dos produtos da indústria; b) não considera que a propriedade do solo, em muitos casos, derivou de concessões, doações ou distribuições do estado; c) atribui à ocupação, que é um fato de mero acaso e às vezes um ato de força, a virtude de criar um direito; d) torna possível a conseqüência de uma só pessoa poder ser proprietária dum vasto continente, se este for desabitado, o que ninguém hoje admitiria. (GONÇALVES, Carlos, p. 248, 2012) A segunda teoria que veio com o objetivo de tentar explicar a natureza jurídica da propriedade foi a teoria da especificação, que defendia que a propriedade deveria submeter-se ao domínio humano. Assim, somente o labor humano, que transforma a obra-prima e cria bens, poderia justificar esse direito à propriedade. Esse pensamento, no entanto, não tinha respaldo nenhum, uma vez que excluía pessoas deficientes, crianças e idosos desse direito, já que não eles não poderiam trabalhar e, por conseqüência, adquirir a propriedade de algum bem. Além disso, o pagamento em dinheiro ou outro tipo de remuneração é que deveria recompensar o trabalho e não o bem pelo homem produzido. (GONÇALVES, Carlos, p. 248, 2012) A teoria da lei, por sua vez, sustentada por Montesquieu, Bentham e Hobbes, defendia que a propriedade era justificada única e exclusivamente pela existência da lei, que criava e garantia esse direito. Assim, o legislador teria a discricionariedade de resguardar e suprimir a propriedade no momento que fosse oportuno a ele, de acordo com a sua conveniência e convicções. Ocorre, no entanto, que a propriedade é anterior à existência de leis, o que explica que estas não podem justificar aquela. As teorias acima mencionadas contam com um número considerável de críticos, por isso a mais aceita nos dias de hoje é aquela conhecida como Teoria da natureza humana. Essa teoria traduz uma visão muito próxima daquela que a Igreja Católica tem sobre propriedade, o que explica a sua maior aceitação. A propriedade é, aqui entendida, como um presente de Deus, dado aos homens para que eles pudessem atender plenamente às suas necessidades e de sua família (GONÇALVES, Carlos, p. 249, 2012). A propriedade, portanto, segundo essa teoria, é entendida como um direito natural, que é inerente à pessoa humana, sendo o lugar onde o homem pode satisfazer suas necessidades, motivo pelo qual nenhum legislador pode aboli-lo sem ferir o bem comum. Nesse sentido, pontua Francisco José Carvalho: “a terra, sem dúvida, fornece ao homem com abundância as coisas necessárias para a conservação da sua vida e ainda para o seu aperfeiçoamento, mas não poderia fornecê-las sem a cultura e sem os cuidados do homem”. (JOSÉ, Francisco, 2008). Portanto, essas teorias foram criadas com o intuito de justificar a propriedade dentro de um contexto histórico. Assim sendo e diante das críticas apontadas, nota-se que a teoria da natureza humana é a que melhor explica a natureza jurídica da propriedade, uma vez que por essa teoria a propriedade é vista como algo ínsito à natureza humana, sendo constituída como algo dado por Deus, para que o homem possa prover a suas necessidades.

4 LIMITAÇÕES DO DIREITO À PROPRIEDADE

Para Arruda Alvim, mais certo do que falar em limitações do direito de propriedade, é falar em “elementos que participam do delinear dos contornos do direito de propriedade, do traçar seu perfil, tal qual, hoje, se apresenta”. Isso porque, segundo o renomado autor, o que se tem concebido de forma diversa é tudo o que envolve a prática dos poderes inerentes ao ‘dominus’ e não a essência do direito de propriedade. (GONÇALVES apud ARRUDA, 2012, p. 246) Carlos Roberto Gonçalves ressalta esse perfil atual do direito de propriedade no ordenamento pátrio, reconhecendo que o direito deixou de ser absoluto e ilimitado para ter um caráter social. Assim, o mosaico de inúmeras leis vai fazendo que esse direito seja restrito, dentre elas: Código de Mineração, Código Florestal, Lei de Proteção ao Meio Ambiente, Leis de Zoneamento e a Constituição Federal. Washington de Barros Monteiro assim preceitua acerca dessas limitações: O direito de propriedade não mais se reveste do caráter absoluto e intangível, de que outrora se impregnava. Está ele, sujeito, na atualidade, a numerosas limitações, impostas no interesse público e no interesse privado, inclusive nos princípios da justiça e do bem comum. Várias disposições constitucionais, administrativas, militares, penais e civis restringem o seu exercício, de tal modo que se pode afirmar ser totalmente impossível a completa enumeração de todas as restrições (...). (MONTEIRO, Washington, 2003, p.92) Como uma das limitações que estão no âmbito do Direito Privado e dentro dos interesses individuais, o direito de vizinhança é claramente percebido como um grande limitador do direito aqui tratado. Nesse sentido, Washington de Barros Monteiro: Os direitos de vizinhança constituem limitações impostas pela boa convivência social, que se inspira na lealdade e na boa-fé. A propriedade deve ser usada de tal maneira que se torne possível a coexistência social. Se assim não se procedesse, se os proprietários pudessem invocar uns contra os outros seu direito absoluto e ilimitado, não poderiam praticar qualquer direito, pois as propriedades se aniquilariam no entrechoque de suas várias faculdades. (MONTEIRO, Washington, 2003, p.135) Assim, e guiado por essa função social, os vizinhos têm não só que se abster da prática de determinados atos, como também permitir a prática de alguns deles. Carlos Roberto Gonçalves elenca como exemplo das práticas de abstenção a proibição imposta ao proprietário de fazer mau uso do prédio e a de abrir uma janela a menos de metro e meio do prédio de seu confinante; como exemplo das práticas de permissão, o autor cita que o vizinho deve conceder passagem ao dono do prédio encravado e a obrigação do dono do prédio inferior em receber as águas que fluem do prédio superior. (GONÇALVES, p. 350, 2012) Para Sílvio Venosa, as limitações à propriedade que são decorrentes da vizinhança estão entre as obrigações e os direitos reais. As limitações que são impostas pelo ordenamento jurídico vieram como uma forma de conciliar os interesses dos proprietários e regular a convivência entre eles através de uma redução dos poderes inerentes ao domínio (DAIBERT, p. 212,1976). Assim, em diversos artigos do Código Civil o legislador consegue deixar claro a sua preocupação em harmonizar os interesses dos vizinhos, que devem se ater aos limites estipulados também nas convenções e nos regulamentos administrativos. Além dos direitos de vizinhança como limitações do direito privado, pode-se perceber que a co-propriedade, considerando a interferência nas faculdades dos co-proprietários- usar, gozar e dispor- também é algo que limita a propriedade. Os condomínios são caracterizados pela presença de áreas comuns, que são de titularidade de todos os condôminos. Assim, diante da dissonância de opiniões e conflitos cotidianos, cresce exponencialmente a necessidade de terem leis que regulem todas essas divergências, dando tratamento equânime a todos os condôminos. É de se ressaltar ainda que não só própria lei faz inúmeras restrições a esse convívio, mas os regimentos internos de cada condomínio, que foram feitos com o objetivo precípuo de reger todas as relações que permeiam a vida condominial. É claro que todas essas restrições devem ser levadas em consideração juntamente com a função social da propriedade, que deve ser lembrada sempre que houver uma dúvida sobre a constitucionalidade ou legalidade de tal limitação. Os próprios condôminos elaboram disposições na Convenção do Condomínio, que devem ser seguidas de maneira igual por todos. Assim, é comum algumas normas estipuladas, tais como: salão de festas usado somente até determinado horário, proibição de animais de estimação, o pagamento de taxas para usar áreas comuns ou a proibição de levar determinados objetos em elevador social. É bem verdade que todas essas regras restringem, de algum modo, a liberdade individual, no entanto há que se considerar que o estrito cumprimento de todas elas é crucial para um convívio harmônico. Para Eduardo Beil e Álvaro Borges de Oliveira, o condomínio é uma micro-sociedade que reproduz tudo que ocorre em termos globais, daí a necessidade de se obedecer o que preceitua a Constituição Federal a respeito dessa função. Isso porque, como já foi dito antes, todas as limitações impostas aos condôminos devem ser pensadas à luz daquela, pois há interesses antagônicos nesse contexto e tudo deve ser resolvido com as boas regras de convivência interna que, por óbvio, devem guiar-se pela Carta Maior. A Administração Pública, fazendo uso de suas atribuições legais, também desponta como limitadora da função, já que, prezando pelo bem comum, intervém na propriedade particular sempre que necessário. Assim, o Estado se utiliza de alguns “aparatos” para realizar essa função, tais como: o tombamento, a ocupação temporária, a servidão administrativa, a requisição, a desapropriação e o parcelamento e edificação compulsórios. O tombamento é uma limitação administrativa que veio com a função de obrigar o particular a restringir o uso e a fruição de seu bem, tendo em vista a preservação dos valores históricos, culturais e artísticos. Assim, o Poder Público age em defesa do patrimônio cultural através da conservação de alguns bens, sejam eles públicos ou particulares. A ocupação temporária, segundo José dos Santos Carvalho Filho, tem o objetivo de “permitir que o poder público deixe alocados, em algum terreno desocupado, máquinas, equipamentos, barracões de operários, por pequeno espaço de tempo”. Por assim ser, é um tipo de restrição que somente é aplicável em relação aos bens imóveis e a utilização desses bens pode ser gratuita ou remunerada, dependendo do caso concreto. Para a professora Maria Sylvia Zanella di Pietro, a servidão administrativa é “um direito real, de natureza pública, instituído sobre imóvel de propriedade alheia, com base em lei, por entidade pública, ou por seus delegados, em favor de coisa afetada a fins de utilidade pública”. Assim, diante da finalidade com que foi instituída, é indenizável os prejuízos que são advindos das limitações impostas a alguns atributos inerentes à propriedade. Isso porque a propriedade continua sendo de titularidade privada, mas o proprietário deve suportar todas as medidas decorrentes do poder de polícia da Administração, já que há uma imposição unilateral, específica e onerosa. A desapropriação é uma forma de limitar a propriedade que decorre de uma imposição administrativa na qual o poder público, diante de uma evidente necessidade, faz com que o proprietário perca o seu bem e o recompensa com uma justa indenização (Di Pietro, 2001, p. 151). É cabível ressaltar, no entanto, que esse despojamento compulsório somente poderá ocorrer em determinados casos específicos, tais como: necessidade pública, utilidade pública e interesse social. A requisição, por sua vez, é um tipo de limitação que só incide em momentos de iminente perigo público ou risco de guerra, cabendo à Administração Pública requisitar e também se responsabilizar pela indenização posterior. Esse tipo de limitação tem em vista o interesse coletivo e somente pode ser utilizado em casos excepcionais, podendo ter como objeto bens móveis e imóveis e a prestação de serviços. O parcelamento e edificação compulsórios, segundo Celso Antônio Bandeira de Melo, importam em obrigações de fazer, de acordo com o art. 182 da Constituição Federal. Esses atos emanados do poder público são unilaterais e municipais e foram feitos para observar a função social da propriedade, daí o seu caráter limitador. Oportuno ressaltar que esses meios são utilizados somente para aqueles proprietários que não usam adequadamente a sua propriedade. (Di Pietro, p. 119, 2001) Compondo a função social da propriedade, verifica-se que o direito ambiental veio como um limitador público e privado também. Assim, tem-se como limitação ambiental o patrimônio histórico-cultural, a preservação da fauna e da flora, o dever de observância em relação à emissão de produtos químicos, o cumprimento de normas que se referem ao urbanismo e ao zoneamento, dentre outros. Fábio Félix Ferreira fala com maestria no assunto: Por efeito do texto constitucional - art. 225, estabeleceu-se no país um modelo de cooperação entre Estado e Coletividade no trato das questões ambientais. Assim, a sociedade civil organizada passa a participar da formulação, implementação e gestão das políticas públicas ambientais. São nesses espaços públicos - Conselhos de Meio Ambiente, Câmaras Ambientais, Movimentos Sociais, dentre outros, onde a sociedade pode/deve responsabilizar-se pela efetiva aplicação da disciplina e limitações à propriedade, visando a conservação dos recursos naturais. Ademais, compete a sociedade estimular a utilização dos instrumentos jurídicos disponíveis - ação civil pública, ação popular, mandado de segurança individual e coletivo, ações possessórias, dentre outros, para a defesa de direitos e garantias ambientais, tendo-se em vista que a todo direito corresponde uma ação. Se a legislação, constitucional e infra-constitucional, disciplina e limita a propriedade à satisfação de fins sócio-ambientais, numa crescente configuração de uma teoria das limitações, necessário que a Coletividade co-responsabilize-se pela implementação e consolidação dos institutos jurídico-políticos já existentes, estimulando uma ordem cidadã, onde os direitos e garantias transindividuais, dos quais o direito ambiental faz parte, (re)concilie propriedade, desenvolvimento e conservação de recursos naturais. Assim, consolidar-se-á a evolução do direito de propriedade rumo aos fins sociais, assegurando a plena eficácia das limitações impostas pela legislação em vigor. (FERREIRA, 2008, grifo nosso) Conclui-se, portanto, através de todas as restrições acima apontadas, que o direito de propriedade não pode mais ser considerado como absoluto e ilimitado, já que a função social da propriedade deve, segundo a Carta Maior, ser cumprida em sua plenitude. Assim, as inúmeras limitações que são feitas vieram como forma de atualizar as jurisprudências e os posicionamentos doutrinários a respeito do tema, tendo em vista que o novo perfil de função social da propriedade deve ser entendido como uma máxima a ser respeitada, sob pena de descumprir os comandos constitucionais e infraconstitucionais a respeito do tema.

5 CONCLUSÃO

Como foi abordado, a Constituição Federal garante o direito de propriedade condicionando ao atendimento da sua função social. Nesse sentido, nota-se que a propriedade não possui mais um caráter absoluto, e sim limitador, resultante da prevalência do interesse público em relação ao privado, uma vez que há vários dispositivos legais que restringem o proprietário dos poderes inerentes a propriedade, tendo em vista a satisfação do bem-estar social. Portanto, a função social da propriedade, no cenário forense atual, constitui parte integrante do conceito de propriedade, cujo respaldo normativo se encontra na parte dos direitos e garantias fundamentais, constituindo-se como uma cláusula pétrea consagrada pelo nosso sistema jurídico.

REFERÊNCIAS

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