FORO PRIVILEGIADO: A HERANÇA DOS TEMPOS DE COLÔNIA VIGORANDO EM NOSSO ORDENAMENTO.

Thiago Alves Peixoto de Melo

 

            O objetivo deste artigo é uma análise crítica da prerrogativa em função do cargo, levando em conta a sua história no ordenamento jurídico brasileiro comparando o que foi disposto nas constituições anteriores à vigente.

1-      INTRODUÇÃO: A CHEGADA NO BRASIL DA PRERROGATIVA DE FUNÇÃO.

Como conseqüência do domínio castelhano – no longínquo período compreendido entre os anos de 1560 e 1640 – quando Portugal esteve sob o domínio da Espanha, começaram a vigorar no reino português e em suas adjacências as Ordenações Filipinas. Essas Ordenações eram o resultado de uma compilação jurídica do Código Manuelino.

Contando um pouco dessa história, Filipe I de Portugal (ou Filipe II da Espanha) era um político habilidoso e para mostrar aos portugueses o respeito que tinha pelo seu tradicional ordenamento jurídico promoveu uma reforma nas Ordenações Manuelinas buscando elevar o “espírito tradicional lusitano” de onde surgiram as Ordenações Filipinas, mas foi no reinado de seu filho Filipe II de Portugal que elas começaram a vigorar, mais precisamente em 11 de janeiro de 1603. Algumas dessas disposições foram largamente utilizadas na então colônia portuguesa, a nossa pátria mãe gentil, o Brasil e se mantiveram em vigor até a promulgação do Código Civil de 1916.

Podemos dizer que o ordenamento jurídico retrata o que busca a sociedade sob tempo em que ele estiver vigente, caso contrário, é necessário uma reforma ou até mesmo a produção de um novo código composto por normas que possam atender e regular os anseios da população. Todavia, essas ordenações retratavam o preconceito português dentro uma legislação que passou longe do progresso e da revolução que as grandes nações vivenciavam, uma legislação completamente arcaica, atuando no sentido de retorno a uma situação passada, revogando mudanças sociais, morais, econômicas ou políticas.

Uma das provas desse retrocesso do ordenamento jurídico português é a matéria desse artigo, o que hoje chamamos de foro privilegiado ou prerrogativa em função do cargo já era naquela época estatuído conforme verificamos no texto do Livro V, Título XXXVIII das Ordenações Filipinas:

DO QUE MATOU SUA MULHER POR A ACHAR EM ADULTÉRIO:

Achando o homem casado a sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero for fidalgo ou nosso desembargador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adultério, não morrerá por isso mas será degredado para África com pregão na audiência pelo tempo que aos julgadores bem parecer, segundo a pessoa que matar, não passando de três anos.

Ordenações Filipinas: organização Lara, Silvia Hunold. Coleção Retratos do Brasil, Companhia das Letras, 1999.

            Diante do fato histórico mencionado é importante descrever como ocorre o foro privilegiado hoje para demonstrar que o presente esta arraigado do passado.

2-      DESENVOLVIMENTO: ANÁLISE CRÍTICA AO FORO PRIVILEGIADO.

            O foro privilegiado é uma vantagem concedida a autoridades políticas de serem julgadas por um tribunal diferente ao de primeira instância, regra esta a que se submetem os crimes comuns de natureza penal e os de responsabilidade (infrações político-administrativas).

Essa distinção, nos dizeres de Mirabete, funda-se "na utilidade pública, no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência dos tribunais superiores".

            Vejamos então quais são os beneficiados pela prerrogativa em função do cargo:

No Supremo Tribunal Federal:

  • Presidente e vice-presidente da República;
  • Deputados federais;
  • Senadores;
  • Ministros de Estado;
  • Procurador-geral da República;
  • Comandantes da Marinha do Exército e da Aeronáutica;
  • Membros do Tribunal de Contas da União;
  • Membros dos tribunais superiores (STF, STJ, TST, TSE e STM);
  • Chefes de missão diplomática de caráter permanente.

No Superior Tribunal de Justiça:

  • Governadores;
  • Desembargadores dos Tribunais de Justiça;
  • Membros dos Tribunais de Contas Estaduais;
  • Membros dos Tribunais Regionais Federais;
  • Membros dos Tribunais Regionais Eleitorais;
  • Membros dos Tribunais Regionais do Trabalho;
  • Membros dos conselhos e Tribunais de Contas dos municípios;
  • Membros do Ministério Público da União que atuem nos tribunais;

No Tribunal de Justiça

  • Prefeito
  • Deputado Estadual
  • E nos casos que as Constituições Estaduais prevêem: secretário de estado, vice-governador, vice-prefeito, vereadores, procuradores do estado, membros da advocacia pública.          

 

Posto isto, analisaremos o que dispõe a Constituição federal de 1988 que em seu artigo 5º, caput e inciso XXXVII:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;

É notória a disparidade que existe na Carta Magna brasileira, se por um lado ela institui a igualdade entre os brasileiros, por outro, e com a mesma mão que dá, ela retira do povo essa igualdade criando uma segregação entre seus filhos.  

Cabe salientar que essa medida determinada pela Constituição de 1988, tem o dever de assegurar que corruptos tenham o privilégio de ser julgados em uma instância diferente dos cidadãos comuns, tudo isso sob a justificativa de proteger o cargo ocupado e não a pessoa.

Mas nem sempre foi assim, no Brasil, o foro privilegiado, era admitido em caráter extraordinário e somente para julgar determinadas autoridades em determinados processos, como na Constituição de 1924 que trazia em seu artigo 179, XVII que não haveria foro privilegiado, bem como a Constituição de 1934 que expressamente proibia o foro privilegiado e os tribunais de exceção.

As constituições de 1946 de 1967 mantiveram em seu texto normativo a proibição de se criar tribunais de exceção e do foro privilegiado, entrementes, foi na constituição de 1988 apelidada de “constituição cidadã”, a mais democrática dentre as anteriores que essa proibição não está prevista, muito embora não disponibilize a criação de tribunais de exceção.

O mais impressionante é a alegação de que a própria sociedade clama por esse tipo de privilégio, já que estaríamos resguardando a ordem jurídica, a função pública que foi conferida àquela pessoa pelos cidadãos que nela depositaram seu voto, sua confiança e sua esperança.

Estatisticamente falando, segundo a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), o STF em 130 processos contra “autoridades” que têm foro privilegiado não condenou ninguém e somente 5 pessoas foram efetivamente condenadas em 435 ações no STJ  desde a criação dos dois órgãos.

Ora, em um país com tantas denúncias de corrupção é de se ficar estupefato com tamanha incompetência do judiciário para se julgar esses “homens privilegiados”, ou seria medo de algum tipo de represália? Pergunto isso por uma razão simples, vivemos em um país onde “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

Essa herança histórica dos tempos de colônia deve ser extirpada do nosso ordenamento em nome da igualdade e da democracia, somos muito gratos aos portugueses pelo progresso que trouxeram em suas caravelas, mas com o progresso também vieram as mazelas que assolam o povo brasileiro, o foro privilegiado é sinônimo de impunidade, uma vergonhosa alforria para aqueles de deveriam ser exemplo, uma enorme chaga nos três poderes, uma enfermidade trazida pelos irmãos lusitanos.

3-      CONCLUSÃO: ABAIXO O FORO PRIVILEGIADO

Por fim, como conclusão desse artigo penso que o princípio fundamental da nossa ordem jurídica é o princípio da igualdade, que como sabemos está cravado nas páginas do documento que – “nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus” – a Constituição da República Federativa do Brasil. Assim, em decorrência dessa igualdade todos são iguais perante a lei não havendo distinção entre nenhum do povo, cabendo um julgamento igual tanto para o cidadão sem poder político, que vota e elege o seu representante, quanto para o que se lança na vida política.

O foro privilegiado é uma aberração, uma manobra jurídica que mantém impunes aqueles que deveriam ser mais rigidamente punidos, os cidadãos que deveriam ser o exemplo da nação e cometem crimes deliberadamente e se escondem protegidos sob as asas de um sistema jurídico que, no terceiro milênio, permite normas obsoletas e promovedoras da separação dos homens que a ele estão submetidos.

4 – REFERÊNCIAS:

  • Veloso, Zeno. Abaixo o foro privilegiado. Acessado em 05/11/2011. Disponível em: http://www.amb.com.br/index.asp?secao=mostranoticia&mat_id=9287& ;
  • Competência por prerrogativa de função. Acessado em 05/11/2011. Disponível em: http://programadeapoioaoestudantededireito.blogspot.com/2008/10/competncia-por-prerrogativa-de-funo.html ;
  • MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 1998;
  • Rolim, Luiciano. Limitações constitucionais intangíveis ao foro privilegiado. Acessado em 05/11/2011. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/6510/limitacoes-constitucionais-intangiveis-ao-foro-privilegiado/1;
  • BRASIL. Código de Processo Penal. VADE MECUM. 60. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009;