FORMAS DE INTERVENÇÃO DO ESTADO NO ÂMBITO FAMILIAR

 Lara Cecília Silveira Duque[1]

 

RESUMO

O instituto do poder familiar sofreu transformações durante o transcorrer do tempo e, hoje, ele é atribuído, em igualdade de condições, ao pai e à mãe. Este poder possui, na verdade, caráter de “poder-dever”, tendo os pais a obrigação de garantir condições dignas de desenvolvimento aos filhos. Caso haja o descumprimento desses deveres, o Estado pode intervir no âmbito familiar, impondo sansões que, em casos mais graves, ensejam a própria perda do poder familiar.

Palavras-chave: Poder familiar. Deveres. Estado. Intervenção.

 

INTRODUÇÃO

Já há algum tempo, doutrinadores e juristas preocupam-se com os cuidados destinados à criança e ao adolescente, visando ao seu bem-estar e desenvolvimento saudável.

Com o advento da Constituição Federal, norteou-se a área da infância e da juventude pelo caminho da dignidade da pessoa humana, transferindo estes indivíduos da condição de objetos da relação jurídica para a condição de sujeitos de direitos.

A promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente revela, sobremaneira, a preocupação do legislador com o bem estar dos jovens do país.

Ocorre que a história social da criança e do adolescente, bem como as normas que regulamentaram a relação jurídica na qual eles estavam inseridos, evidenciam que a população infanto-juvenil sempre foi frágil frente à sociedade.

Nas antigas civilizações, o pai era a autoridade máxima e a ele era facultado o exercício do poder absoluto sobre os filhos, podendo, inclusive, abandoná-lo ou matá-lo.

Com o passar do tempo, adotou-se o princípio da situação irregular, pelo qual o Estado começava-se a preocupar com as crianças e com os adolescentes, mas apenas em relação àqueles que se encontravam em situação de delinquência ou abandono.

A Constituição Federal de 1988 afastou a doutrina da situação irregular, até então em vigor, disseminada, sobretudo, pelo Código de Menores, e alçou a infância e juventude como prioridade absoluta dentro do Estado de Direito Brasileiro.

Desse modo, crianças e adolescentes passaram a ser sujeitos de direitos, sendo que a observância de seus direitos fundamentais tornou-se cogente não só para a família na qual estão inseridos, mas também para o Estado e a sociedade.

O Estatuto da Criança e do Adolescente veio, portanto, para regulamentar e dar efetividade ao texto constitucional. 

Acompanhando as transformações ocorridas no direito referente à infância e à juventude, o instituto do poder familiar sofreu grandes mudanças com o decorrer do tempo. Dentre essas mudanças, destaca-se a distribuição equânime da competência do poder familiar entre os genitores e a possibilidade da intervenção do Estado no âmbito familiar para impedir abusos e maus-tratos cometidos pelos pais.

Recentemente, houve a promulgação da Lei nº 18.010/2014 (“Lei menino Bernardo” ou “Lei da Palmada”), na qual há previsão de encaminhamento ao Conselho Tutelar dos pais ou responsáveis legais que aplicarem castigos físicos ou tratamento cruel e degradante,  para aplicação dos encaminhamentos destes para programa de proteção à família, para tratamento psicológico ou psiquiátrico, para programas de orientação e advertência, conforme demandar o caso. É obrigatório, contudo, o encaminhamento da criança, a tratamento especializado.

Vê-se, pois, que no intuito de proteção integral, o Estado tem criado leis e mecanismos para coibir a prática de maus-tratos e violência contra as crianças e os adolescentes, inclusive punindo os responsáveis por ela, quando não cumprem com responsabilidade a paternidade/maternidade.

 1 DO PÁTRIO PODER AO PODER FAMILIAR – BREVES COMENTÁRIOS

 O instituto do poder familiar originou-se na Idade Antiga (4.000 a.C. até 476 a.C.), com enfoque no Direito Romano, em que a figura do pai como chefe e patriarca da família era absoluta.

Essa situação foi relativizada na Idade Média (476 até 1453), em razão, sobretudo, da influência do cristianismo. As atribuições e responsabilidades em relação aos filhos foi, também, atribuída, em partes, à mãe, a qual passou a participar na criança e na educação dos filhos.

No Brasil, entretanto, a sociedade se mantinha fortemente patriarcal. O primeiro Código Civil brasileiro, promulgado em 1916 (Lei nº 3.071, de 01 de janeiro de 1916), seguiu a linha do Direito Romano e atribuiu o pátrio poder somente ao cônjuge varão, além de estabelecer que o marido era “o chefe da sociedade conjugal” (art. 233). Naquela época, a mulher casada era considerada como relativamente incapaz, estando, ela também, sob o domínio do seu marido (“poder marital”).

Apesar das inovações da Constituição Federal de 1891, que já previa a igualdade entre as pessoas, o pátrio poder previsto no Código Civil de 1916 seguiu a tradição das legislações anteriores, reservando ao marido a prerrogativa de chefiar a família, ou seja, de exercer o pátrio poder de forma exclusiva. A mulher só poderia exercer o pátrio poder na falta ou impedimento do marido[2].

Com o advento da Lei nº 4.121/1962 (Estatuto da Mulher Casada), houve significativa alteração na situação da mulher no âmbito familiar, pois passou a prever a sua participação na administração dos assuntos da sociedade conjugal. A mulher passou a ter direito sobre os filhos, compartilhando do pátrio poder e podendo requisitar a guarda em caso de separação. Na condição de companheira, consorte e colaboradora do marido nos encargos familiares, na falta do pai, a mãe passa a ter o pátrio poder. Em caso de divergência, ainda prevalecia a vontade do pai, sendo facultado à mulher recorrer à justiça.

A promulgação da Constituição Federal, em 1988, estabeleceu, definitivamente, a igualdade entre homens e mulheres, quanto aos seus direitos e deveres (art. 5º, I). O exercício do “pátrio poder” foi atribuído, em conjunto, aos pais – mãe e pai, sejam casados ou não, conforme disposto no art. 226, § 5º: "Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher".

A partir da Constituição Federal, este poder-dever passa a ter caráter protecionista, em que uma série de deveres suplanta os poucos direitos. O pátrio poder ganha caráter eminentemente protetivo e de integridade às crianças e aos adolescentes.

Em 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069/90), que consolidou os direitos relativos à criança e ao adolescente, bem como garantiu a igualdade de condições do pai e da mãe para o exercício do pátrio poder (art. 21).

Enfim, em janeiro de 2003 passou a vigorar o novo Código Civil (Lei nº 10.406), que, entre as principais mudanças, suprimiu o chamado pátrio poder, substituindo-o pela expressão “poder familiar”, com maior amplitude, a ser exercido igualmente pela mulher e pelo homem.

Silvio Rodrigues define o poder familiar como “o conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, em relação à pessoa e aos bens dos filhos não emancipados, tendo em vista a proteção destes”[3]. Para este autor, ao impor deveres aos pais, com o fim de proteger os filhos, a lei realça o caráter de múnus público do poder familiar e o torna irrenunciável.

No mesmo sentido, Roberto João Elias conceitua o poder familiar como:

um conjunto de direitos e deveres, em relação à pessoa e aos bens dos filhos menores e não emancipados, com a finalidade de propiciar o desenvolvimento integral de sua personalidade[4].

 Trata-se, portanto, de um encargo atribuído pelo Estado aos pais, em benefício dos filhos. Apesar de haver a possibilidade de repassar a terceiros alguns aspectos do poder familiar, como no caso da guarda, por exemplo, trata-se de instituto indelegável e irrenunciável.

A liberdade conquistada pelos pais quanto às várias formas existentes de família, não deve prejudicar os filhos, impondo-se assim, a solidariedade do homem e da mulher em relação àqueles. O interesse da criança e do adolescente, tão frequentemente exarado pelo legislador contemporâneo, mas tantas vezes desviado de seus fins, deve verdadeiramente tornar-se o centro das preocupações de todos aqueles que refletirem sobre as novas famílias.

No Código Civil, os deveres que incumbem aos pais, no que diz respeito à pessoa de seus filhos, estão previstos no art. 1.634, que enumera-os, em sete incisos, com a seguinte redação:

Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:

I. dirigir-lhes a criação e educação;

II. tê-los em sua companhia e guarda;

III. conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;

IV. nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;

V. representá-los, até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;

VI. reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;

VII. exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

 O Estatuto da Criança e do Adolescente ampliou as hipóteses previstas no art. 1.634 do Código Civil, dispondo, em seu art. 22, que incumbe aos pais, ainda, o dever de cumprir as determinações judiciais.

 2 PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

 Um dos princípios balizadores dos direitos fundamentais da criança e do adolescente é o princípio da prevalência de seus interesses. Aliás, não poderia ser diferente, uma vez que a população infanto-juvenil, por ainda estar em desenvolvimento, é carente de cuidados especiais e, com isso, deve ter prioridade quando em confronto com outros segmentos da sociedade. Deve-se, portanto, prover a criança e o adolescente de condições jurídicas para que possam ver prevalecidos seus direitos.

A interpretação do texto legal deve observar a proteção dos interesses da criança e do adolescente, levando-se em conta a destinação social da lei e o respeito à condição peculiar de pessoas em desenvolvimento. Noutros termos, deve-se reconhecer que a criança e o adolescente não conhecem inteiramente os seus direitos, não têm condições de defendê-los e fazê-los valer de modo pleno e não sendo capazes de suprir, por si mesmas, as suas necessidades básicas, precisando de amparo e de respeito por parte dos adultos.

Dessa forma, diante das normas expressas na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, a população infanto-juvenil conquistou um enfoque normativo que prevê os seus direitos fundamentais, garantido-lhe o exercício de forma plena.

O Estatuto da Criança e do Adolescente tem por objetivo a proteção integral da criança e do adolescente, como previsto em seu art. 1º. Essa proteção integral abrange o seu pleno desenvolvimento, desde as exigências físicas, até o aprimoramento moral e social.

Wilson Donizeti Liberati, abordando o tema da proteção integral, esclarece que:

A Lei 8.069/90 revolucionou o Direito Infanto-juvenil, inovando e adotando a doutrina da proteção integral. Essa nova visão é baseada nos direitos próprios e especiais das crianças e adolescentes, que, na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, necessitam de proteção diferenciada, especializada e integral (TJSP, AC 19.688-0, Rel. Lair Loureiro). É integral, primeiro, porque assim diz a CF em seu art. 227, quando determina e assegura os direitos fundamentais de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de qualquer tipo; segundo, porque se contrapõe à teoria do “Direito tutelar do menor”, adotada pelo Código de Menores revogado (Lei 6.697/79), que considerava as crianças e os adolescentes como objetos de medidas judiciais, quando evidenciada a situação irregular, disciplinada no art. 2º da antiga lei[5].

 João Roberto Elias, por sua vez, leciona que:

Pode-se definir a proteção íntegra como sendo o fornecimento, à criança e ao adolescente, de toda assistência necessária ao pleno desenvolvimento de sua personalidade[6].

 Neste diapasão, a Constituição Federal, em seu art. 227, caput, dispõe e garante os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, nos seguintes termos:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (grifou-se).

 Um dos direitos essenciais assegurados a todo ser humano, em especial aos indivíduos em fase de desenvolvimento, é o direito ao respeito e à dignidade, com o objetivo de preservar a sua integridade física, psíquica e moral.

Portanto, segundo a legislação vigente, os pais devem garantir aos filhos um crescimento saudável e digno, respeitando os seus direitos inerentes à peculiar fase de desenvolvimento em que se encontram.

 3 INTERVENÇÃO DO ESTADO NO PODER FAMILIAR

 O Estado interfere efetivamente no poder familiar, amparado legalmente por normas jurídicas que, além de preverem a licitude dessa intervenção, determinam-na, visando-se a garantir a efetividade dos direitos referentes à infância e à juventude.

O Estado pode punir os pais ou responsáveis que descumprem suas obrigações decorrentes do poder familiar, inclusive por meio de imposição de multa, conforme disposto no art. 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Contudo, essa sanção se mostra muitas vezes inócua, dada a situação econômica precária e o consequente prejuízo de subsistência dessas famílias, em regra.

Nos casos mais graves como, por exemplo, abandono completo da criança e do adolescente por seus genitores, o Código Civil e o ECA preveem a possibilidade de suspensão ou destituição do poder familiar.

Antes, porém, de adotar tais medidas, o ECA dispõe que a família em questão deve ser orientada e encaminhada aos órgãos competentes, visando-se à sua promoção social. Para tanto, podem ser requisitadas a inclusão em programas sociais, a requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, tratamento para alcoólatras e toxicômanos, dentre outras providências que possibilitem a reestruturação familiar para amparar os filhos menores.

Assim, constatada a situação de vulnerabilidade social da criança e do adolescente, estes podem ser encaminhados a instituições de acolhimento, até que haja a reabilitação dos genitores e, apenas em caso de não obtenção de êxito, é que há o encaminhamento a família substituta, por meio de guarda, tutela e adoção.

Em face das sequelas que a suspensão ou a perda do poder familiar gera, elas devem ser decretadas somente quando a manutenção do poder familiar coloca em perigo a segurança ou a dignidade do filho.

 3.1 Suspensão do poder familiar

 O poder familiar é um poder-dever que nasce de raízes naturais, mas não está a salvo de deparar-se com obstáculos que lhe reduzam as possibilidades ou até mesmo o sujeite à perda de todas as prerrogativas que lhe são inerentes.

A suspensão do poder familiar consiste nas restrições do exercício da função de pai e mãe, total ou parcialidade, por um certo tempo.

Carlos Alberto Bittar define suspensão do poder familiar como “a cessão temporária do exercício do poder, por determinação judicial, em processo próprio e sob motivo definido em lei.”[7]

Denise Damo Comel, por sua vez, assim define suspensão do poder familiar:

Consiste numa restrição imposta judicialmente àquele que exerce o poder familiar e que vier ou abusar de sua função em prejuízo do filho, ou a estar impedido temporariamente de exercê-la, pela qual se retira parcela de sua autoridade[8].

 A suspensão é decretada sempre que os pais descumprem, injustificadamente, os deveres e obrigações que a lei os incumbe e persiste enquanto durar a situação que ensejou essa medida, existindo a possibilidade de recuperação posterior do poder.

O art. 1.637 do Código Civil estabelece que o poder familiar dos pais poderá ser suspenso se eles abusarem de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes, ou arruinando os bens dos filhos; e, ainda, se os pais forem condenados por sentença irrecorrível, em crime cuja pena exceda a dois anos de prisão.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 24, acrescenta a possibilidade de ser aplicada a pena de suspensão do poder familiar também na hipótese de descumprimento injustificado pelos pais de determinações judiciais (art. 22 do ECA).

Em qualquer das situações acima mencionadas, cabe ao juiz, analisando o caso concreto, adotar a medida que lhe pareça mais adequada para preservar a segurança e os interesses da criança e/ou adolescente.

A suspensão só deverá ser adotada pelo juiz quando outra medida não produzir o efeito desejado.

Trata-se, pois, de medida facultativa, tendo em vista que o magistrado pode deixar de aplicá-la, ou, ainda, aplicá-la somente em relação a um dos filhos, ou abranger apenas algumas prerrogativas do poder familiar, como, por exemplo, afastar o genitor da administração dos bens dos filhos, em razão de má gestão, permanecendo com os demais encargos que lhe são impostos.

O art. 24 do Estatuto Criança e do Adolescente prevê que a suspensão é decretada mediante decisão judicial, em procedimento contraditório, assegurando às partes a ampla defesa.

A autoridade judiciária competente será, em regra, o juiz da Vara da Infância e da Juventude. Tem legitimidade para propor a competente ação de suspensão do poder familiar o Ministério Público, que pode ajuizar de ofício ou provocado por algum interessado ou pelo Conselho Tutelar, e, também, qualquer parente ou quem tenha legítimo interesse. A medida será decretada mediante sentença judicial, com as devidas formalidades a ela inerentes.

Se a suspensão se referir a apenas um dos pais, caberá ao outro exercer o poder familiar em sua totalidade. Entretanto, se a suspensão se referir a ambos os genitores, deverá ser nomeado tutor à criança e/ou ao adolescente.

Não há previsão legal acerca do tempo que a suspensão deve perdurar, cabendo ao magistrado, na qualidade de condutor do procedimento, analisar os fatos e estabelecer prazo razoável, resguardando, sempre, o interesse da criança e do adolescente.

O parágrafo único do art. 1.637 do Código Civil ainda prevê a suspensão do poder familiar nos casos em que os genitores forem condenados “por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão”.

A doutrina anterior ao Código Civil interpretava, via de regra, que a suspensão, do então denominado pátrio poder em virtude de sentença penal condenatória era entendida como uma consequência necessária da sentença criminal, que ocorria de pleno direito, ainda que a sentença nada mencionasse a respeito. Reputava-se cabível diante de toda e qualquer condenação criminal, independentemente da natureza do delito ou da conduta incriminada. Concluía-se não haver que se perquirir a culpa do pai condenado, conferindo a norma o caráter objetivo, quer dizer, apenas a existência da condenação criminal em face de um dos pais era suficiente para preencher o requisito da suspensão do pátrio poder.

Atualmente, contudo, a norma exige nova interpretação, devendo ser analisado o caso concreto, tendo em vista que algumas condenações em nada afetam o poder familiar, como, por exemplo, a condenação por crimes contra a Administração Pública.

 3.2 Destituição do poder familiar

 A destituição do poder familiar é considerada a medida jurídica mais grave imposta aos pais que não exercem de forma satisfatória os deveres inerentes ao poder familiar. Sua previsão legal encontra-se no art. 1.638 do Código Civil[9], sendo que as hipóteses previstas são consideradas exaustivas, não permitindo interpretação extensiva.

Naturalmente, as razões que possibilitam esse ato extremo são absolutamente pertinentes, se levarmos em conta que é dever do Estado tutelar a criança, para que não sofra danos que possam não só criar-lhe sofrimento, como influir na degeneração de sua personalidade.

Dentre as hipóteses previstas para a destituição do poder familiar está o castigo imoderado (inciso I). O castigo imoderado deve ser considerado não só físico, mas também psíquico.

Sobre o tema, Silvio Rodrigues leciona:

O advérbio “imoderadamente” serve para legitimar o jus corrigendi na pessoa do pai, pois a infração ao dever só se caracteriza quando for excessivo o castigo. Portanto, enquanto não exorbita, pode o pai aplicar castigos físicos ao filho, com o propósito de emendá-lo[10].

 Essa análise feita pelo ilustre doutrinador deve ser relativizada frente à promulgação da Lei nº 18.010/2014, que prevê a aplicação de medidas disciplinares aos pais que castigarem fisicamente os filhos.

O pai que age de modo a castigar o filho imoderadamente demonstra não possuir condições pessoais de exercer a função a ele imposta, configurando, inclusive, a caracterização de crime de maus-tratos, nos termos do art. 136 do Código Penal. 

O inciso II do art. 1.638 prevê que os pais perderão o poder familiar se deixarem o filho em abandono. Abandono não é apenas o ato de deixar o filho sem assistência material, fora do lar, mas, sim, o descaso intencional pela sua criação, educação e moralidade. Esse abandono abrange a falta de assistência material, o apoio psicológico e intelectual, que também são entendidos como crime, nos termos dos arts. 244, 246 e 245 do Código Penal, respectivamente.

A prática de atos contrários à moral e aos bons costumes (inciso III) também enseja a destituição do poder familiar. Essa conduta dos genitores é aferida objetivamente, incluindo as condutas que o direito considera ilícitas. Os pais, na função de educadores do filho, devem servir de exemplo, agindo de forma honesta e proba, condição fundamental para a boa educação da prole.

Aquele que pratica atos ilegais, afrontando os bons costumes e a moral não está apto para criar um filho, sendo este, portanto, considerado um relevante motivo para a perda do poder familiar.

Quanto à hipótese de perda, em caso de incidência reiterada na falta aos deveres inerentes ao poder familiar (inciso IV), inova o legislador, de maneira louvável, porquanto, evita o abuso dos pais.

O art. 92, inciso II do Código Penal ainda prevê, como efeito da condenação penal, a “incapacidade para o exercício do pátrio poder (...), nos crimes dolosos, sujeitos à pena de reclusão, cometidos contra filho”. Neste caso, a medida é decretada pelo magistrado criminal, que deverá analisar minuciosamente o seu enquadramento, tendo em vista que, mesmo com a reabilitação criminal, não haverá restabelecimento dos laços paternos.

Enfim, a destituição do poder familiar só deve ser aplicada em casos excepcionais, aqueles em que os pais venham por circunstâncias extremas pôr em risco a dignidade de seus filhos, observando, em todos os casos, a prevalência do interesse da criança e do adolescente.

A destituição do poder familiar deve abranger toda a prole, pois representa o reconhecimento judicial da incapacidade do titular de desempenhar de maneira correta o seu exercício.

De acordo com o art. 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente, tanto na suspensão como na destituição do poder familiar, é necessária a instauração formal de um procedimento judicial contraditório, que assegure a possibilidade de ampla defesa dos interessados, bem como a imparcialidade e a justiça na decisão proferida pelo magistrado.

A autoridade judiciária competente para analisar essas demandas é o juiz da Vara da Infância e da Juventude, conforme o parágrafo único, alínea “b”, do artigo 148 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Para propositura da competente ação de destituição do poder familiar, tem legitimidade ativa o Ministério Público ou quem tenha legítimo interesse jurídico, moral ou econômico (art. 155, ECA), como, por exemplo, guardião pretendente de tutela ou adoção.

Decretada a destituição do poder familiar, os genitores perdem todos os direitos em relação ao filho, em caráter irrevogável.

Durante a tramitação da demanda de destituição, as crianças permanecem em instituições de acolhimento ou são colocadas em famílias substitutas.

 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Ao longo da História, o poder familiar, outrora denominado de pátrio poder, sofreu significativa transformação.

No Brasil, até a vigência do Código Civil de 1916, o poder familiar era atribuído apenas ao homem da família, que possuía poder em relação à esposa e aos filhos, de forma quase absoluta.

Entretanto, com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, essa concepção machista foi extirpada do ordenamento jurídico, sendo conferida uma situação de igualdade entre homem e mulher, no que concerne ao poder exercido em relação aos filhos e aos bens destes.

Em 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que consolidou os direitos relativos à população infanto-juvenil e ratificou a igualdade de condições do pai e da mãe para o exercício do poder familiar (art. 21).

Enfim, em janeiro de 2003 passou a vigorar o novo Código Civil (Lei nº 10.406), que, entre as principais mudanças, suprimiu o chamado pátrio poder, substituindo-o pela expressão poder familiar, a ser exercido igualmente pela mulher e pelo homem.

Observa-se que foram necessários 462 (quatrocentos e sessenta e dois) anos, contados do início da colonização portuguesa, para a mulher casada deixar de ser considerada relativamente incapaz, o que só ocorreu em 1962, com a promulgação da Lei nº 4.121/62 (Estatuto da Mulher Casada). Ainda, foram necessários mais 26 (vinte e seis) anos para consumar a igualdade de direitos e deveres na família, com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, pondo fim, em definitivo, ao antigo pátrio poder e ao poder marital.

Pode-se dizer, assim, que o poder familiar consiste em direitos e obrigações dos pais em relação à pessoa e bens do filho menor, ainda não emancipado, exercido, em igualdade de condições, por ambos os genitores, a fim de desempenharem os encargos decorrentes da lei, visando, sobretudo, ao interesse e à proteção da criança e do adolescente.

A regulamentação do instituto do poder familiar pelo Estado se justifica pelo fato de que interessa a este a manutenção da ordem social e do desenvolvimento sadio de todos os cidadãos, principalmente das crianças e dos adolescentes. Logo, trata-se de um encargo imposto pelo Estado aos genitores, com o escopo destes zelarem pelo futuro de seus filhos.

Ao impor deveres aos pais, com o fim de proteger os filhos, a lei realça o caráter de múnus público do poder familiar e o torna irrenunciável.

Os deveres inerentes aos pais são aqueles previstos na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e no próprio Código Civil, em artigos dispersos, sobretudo no que diz respeito ao sustento, guarda e educação dos filhos.

Vê-se, assim, que o poder familiar possui, na atualidade, caráter eminentemente protetivo, para resguardar a integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente.

Mesmo no caso de não haver coabitação do filho com um dos genitores ou nos casos de separação dos pais, persistirá, para ambos, aos deveres intrínsecos do poder familiar, devendo ser respeitados e cumpridos integralmente.

Caso os genitores não respeitem os direitos garantidos aos jovens, colocando-os em situação de risco, o Estado poderá intervir no âmbito familiar para fazer cumprir a lei protetiva, seja por meio de aplicação de multa ou de medidas disciplinares, seja, nos casos mais graves, decretando a suspensão ou perda do poder familiar. Essas medidas, por serem extremas, devem ser adotadas apenas em último caso pelo magistrado, nas hipóteses previstas na lei, pois afastam os filhos do convívio familiar.

As hipóteses de suspensão do poder familiar estão previstas no art. 1.637 do Código Civil, bem como art. 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Essa medida poderá ser aplicada pelo magistrado quando os pais descumprirem, injustificadamente, os deveres e obrigações que a lei os incumbe e persiste enquanto durar a situação que a ensejou, existindo a possibilidade de recuperação posterior do poder.

A destituição do poder familiar, por sua vez, é considerada a medida jurídica mais grave imposta aos pais que não exercem de forma satisfatória os deveres inerentes ao poder familiar. Sua previsão legal encontra-se no art. 1.638 do Código Civil, sendo que as hipóteses previstas são consideradas exaustivas, não permitindo interpretação extensiva.

Decretada a destituição do poder familiar, os genitores perdem todos os direitos em relação ao filho, em caráter irrevogável.

Em face das sequelas que a perda do poder familiar gera, deve somente ser decretada a suspensão ou a destituição do poder familiar quando sua manutenção coloca em perigo a segurança ou a dignidade do filho.

Em qualquer das situações acima mencionadas, caberá ao juiz, analisando o caso concreto, adotar a medida que lhe pareça mais adequada para preservar a segurança e os interesses da criança e do adolescente.

Registre-se, por fim, que a intenção do legislador é a manutenção do infante em sua família natural ou extensa, devendo o Estado criar condições para sua promoção social e bem-estar. As medidas de afastamento devem ser aplicadas pelo magistrado com muita cautela, pois acarretará o rompimento de vínculos afetivos e graves danos psicológicos e morais para as crianças e adolescentes.

Portanto, o poder familiar se sujeita à fiscalização e ao controle do Estado, nos termos da lei, sendo dever deste garantir, em conjunto com os pais, os direitos da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer situação de risco.

 REFERÊNCIAS

 ______Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

 _____Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm

 ______Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916 (Código Civil). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm.

 ______Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962 (Estatuto da Mulher Casada). Disponível em: http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1962/4121.htm.

 ______Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979 (Código de Menores). Disponível em: http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/cao_infancia_juventude/legislacao_geral/leg_geral_federal/LEI_6697_79.HTM.

 ______Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm.

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[1] Pós-graduada em Direito de Família, pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected]

[2] Conforme redação original do art. 380 do Código Civil: “Durante o casamento, exerce o pátrio poder o marido, como chefe da família (art. 233), e, na falta ou impedimento seu, a mulher”.

[3] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito de família: volume 6. São Paulo, Saraiva, 2004, p. 153.

[4] ELIAS, Roberto João. Pátrio Poder: guarda dos filhos e direito de visitas. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 6.

[5]LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 7. ed. rev. e ampl., de acordo com o novo Código Civil (Lei 10.406/2002). São Paulo: Malheiros Ed., 2003, p. 15.

[6] ELIAS, João Roberto. Direitos fundamentais da criança e do adolescente. São Paulo: Saraiva, 2005, p.2.

[7] BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Pátrio poder: regime jurídico atual. RT 676/83, São Paulo, fev. 1992, p. 392.

[8] COMEL, Denise Damo. Do Poder Familiar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 262.

[9] Art. 1.638, CC. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:

I - castigar imoderadamente o filho;

II - deixar o filho em abandono;

III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;

IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.

[10] Ibid., p. 370