190 - FOLHAS DE OUTONO

 

José parou de ler o jornal  e recostou-se na poltrona.

Alto, forte, saudável, apesar de já estar beirando os sessenta, acabava de se aposentar e poderia ficar tranqüilo, vendo o tempo passar.

Toda a sua vida tinha sido antiquário e sua persistência tinha frutificado. Não poderia se queixar da sorte. Havia juntado uma boa fortuna.

Tinha, porém, uma única, grande mágoa: a segunda esposa, dois meses antes, de repente, sem prévio aviso, tinha-lhe dado o fora.

Um trauma do qual ainda não conseguira se recuperar. 

Se o seu par, o seu companheiro, ficar doente e morrer, você custa a aceitar, sofre, se desespera; mas no final se conforma; faz parte da vida, um dos dois tem que ir primeiro e por muito triste que seja, o vento que leva as nuvens acaba levando também a sua dor.

Um dia você acorda menos infeliz, mais resignado.

Isto tinha acontecido com a primeira esposa do José, levada por uma gripe mal cuidada,  após vinte anos de um casamento comum, mas sólido, feliz.  Naquele tempo tinham criado uma família, construído uma casa, montado um plano de vida.

Tudo ruíra, no espaço de uma semana.

Ele queixara-se com os filhos:

“Tantos casais que não se dão, que não se suportam; que continuam juntos apenas para tornar a vida de ambos um inferno, .e nós, que nos dávamos tão bem, fomos separados assim..”

O gosto amargo da injustiça sofrida demorara muito a ser assimilado.

Depois, a vida empurrara José; com 50 e poucos, sob insistência dos filhos, recomeçara a viajar, a passear; freqüentava um clube, lia, conversava, jogava baralho.

Logo viu que não resistiria por muito tempo ao assalto das viúvas de aço inox.

Elas sobrevivem aos maridos por muitos, longuíssimos outonos, mantendo afastado o inverno com todas as armas possíveis: novos interesses, livros românticos, filmes antigos, clube, academia, roupinhas alegres, atitudes modernas; mas principalmente cremes, pomadas, perfumes, enfeites; e cabeleireiros, manicures, massagistas. 

E conseguem milagres: ainda estarão passeando pelo shopping Iguatemi, enquanto os netos quase quarentões, ainda cursam caríssimos MBAs, custeados pela herança do vovô, que Deus o tenha.

Não foi bem uma dessas inconformadas vovós, que fisgou o José.

Foi uma quarentona agradável e bem em forma, que irrompeu com toda a sua vitalidade na vida dele. Que ficou lisonjeado com suas atenções e apressadamente combinou o casamento..

Transcorreram meses e anos. 

O fogo aquietou-se, a temperatura amornou, a vida começou a se arrastar, cada vez mais lenta.  Sem perceber, chegaram ao fatídico portão dos sete anos. É uma prova crítica, como saltar sobre uma fogueira, de mãos dadas: você pula, mas  as mãos se separam, porque cada um tem seu jeito, seu tempo e sua velocidade.

Finalmente, uma carta sobre a cômoda atingiu o José, com o impacto de uma luva de boxe.  “..... “Sigo o meu coração” – dizia entre outras frases lamurientas;” Obrigada por tudo, José; foi bom estar com você; nunca vou esquecê-lo, nunca deixarei de amá-lo.... mas o Gustavo é a minha paixão, meu ídolo, meu ..... “  

José deu de ombros e picou a carta; abriu a janela e soltou mil floquinhos brancos, que navegaram  no ar quente e abafado  de fevereiro.

Mas o orgulho ferido ardeu; sua vaidade sofreu um baque profundo.

Nada a ver com a perda da primeira esposa.

Desta vez não sentiu desespero, nem dor.

Talvez, apenas despeito, uma raiva surda, contida, superficial. .

Agora, estava sozinho, de novo, o tempo transcorrendo de formas diferentes; o do mundo, se arrastando com uma lentidão preguiçosa; o da sua vida, voando tão rápido que escavava rugas, afundava olheiras, soltava cabelos, e pintava de branco,  dia após  dia os poucos que sobravam.  

José puxou um suspiro fundo e ficou parado, o olhar vagando pela sala, o pensamento imóvel no ar.

A semana santa estava aí, chegando com seu feriado e os semi-feriados.

Os filhos iriam cada um  para um canto e José tinha recusado os repetidos convites deles. Preferia ficar sozinho.

Mas de repente, sentiu que tudo se tornava extremamente pesado, difícil de suportar; a solidão; e a casa; e a família; e as poucas obrigações diárias: levantar, vestir, despir, deitar, comer.  Ler o jornal, então: insuportável.

Sentiu um momento de desânimo – quase de desespero.  Mas reagiu logo. Não era de sua natureza, ceder a tais impulsos.

Levantou-se, abriu o caderninho de anotações, encontrou um nome, mentalizou o número; acomodou-se novamente na poltrona e o digitou.

 

 

Do outro lado da cidade, num antigo palacete, tão anguloso e  arrogante como a própria arquitetura dos anos vinte, o famigerado “novecentos”,  o telefone tocou.

Uma senhora elegante, de seus cinqüenta e poucos anos, parou instantaneamente de esbravejar e dirigiu-se à modesta mesinha de cerejeira no canto da sala, levantando o aparelho.

 - “Sim? (ela nunca dizia “alô”, ou “pronto”) Sim?..... Correto, é da residência da condessa. Como? Não. Ela não está.”.

Sem esperar, sem dar chances ao interlocutor, repôs o telefone no suporte e voltou ao outro lado da sala. 

A condessa Marika Von Kloten de Bavária estava usando suas energias e os termos mais grosseiros que o seu modesto vocabulário possuía, numa luta inglória contra um simples tapete.

 

Última descendente de famosa família austro húngara, empobrecida pela primeira guerra mundial, arruinada pela segunda e arrancada de suas raízes pela miséria do pós guerra, a Condessa não se rendia facilmente. Aliás, nunca se rendera. A nada, a ninguém; ao destino, às evidências, ao pai, aos maridos, aos generais.

 

O adversário nesse momento não era um tapete qualquer.

Tal como quase tudo o que existia naquela casa, era uma relíquia valiosíssima de tempos melhores – bem melhores, na verdade. Nobres e soberanos tinham pisado nele, ao longo dos anos – séculos talvez.  Possuía uma história – e uma geografia, pois tinha peregrinado pelo mundo, seguindo o destino da família Von Kloten.

 

Aquele trapo – assim o definiríamos nós, na nossa santa ignorância - teimava em se enrolar nos cantos, como se fosse um pergaminho.    E a Condessa não deixava por menos. Difícil dizer quem  ganharia. Mas nossa preferência iria francamente para a Dama.  

 

A Condessa tinha perdido quase tudo, ao longo dos anos; passara fome, ficara endividada, mas não tinha cedido o título – e nunca o cederia. A ninguém.  Condessa era e Condessa ficaria.

 

Mas os tempos eram bicudos. Os chacais rondavam o palacete, os urubus davam longas e pacientes voltas, todos à espera de um seu momento de fraqueza.

 

O telefone voltou a tocar. Com um gesto de impaciência,  a Condessa abandonou a luta chutando com desprezo o tapete  -  que se enrolou do outro lado.

 

“Sim?” o tom soou áspero, agressivo – e ela o percebeu claramente.

“Marika, sou eu, o José, o antiquário!”

“Bom dia, senhor José; está tudo bem?” Assim; assim era bem melhor; mais manso, conciliador .

Incrível como uma mulher consegue mudar de tom, entre uma palavra e outra; da raiva à paixão, da súplica à ordem, em um piscar de olhos; é um dom que os homens sempre invejarão, pois eles precisam de vários minutos para se adaptar a novas circunstâncias.  

“Aqui tudo bem, senhora; a sua saúde está boa? “ – José estava fazendo cera.

“Sim, sim!” a Condessa já estava impaciente e o José notou-o. “O que quer, José?”

Ele ficou indeciso entre perguntar a razão da pressa e passar direto ao pedido .

 

“Bem, a Senhora sabe que eu me encontro sozinho; meus filhos estão fora e estes dias feriados vão ser muito solitários e demorados. Sei que a Senhora conhece várias moças que gostariam de partilhar de um pouco de companhia.... Seria difícil me conseguir um encontro....digamos de quinta à tarde até segunda de manhã....”

As palavras estavam vindo com tanta dificuldade que:

“Senhor José!” interrompeu ela, com decisão – “o senhor tomou só reticências, hoje, no café da manhã? Não se lembrou de beber um pouco de pontos de exclamação, uns “pontos e parágrafo”, uns travessões?”

José engoliu em seco, e ficou sem resposta. Mas mesmo assim, não deixou o assunto cair:

“ A senhora está ficando realmente insuportável, sabe?”

E acrescentou, arrependido:

“Desculpe, Senhora, mas não estou bem, estou deprimido....”

“Então, precisa de duas ou três moças, não apenas uma! “ Mas falou em tom de brincadeira, quase a confortá-lo.

E continuou:

“O senhor sabe que eu gerencio um negócio sério. As meninas podem não ser todas umas freiras, mas em geral evito contato com prostitutas e moças sem cultura, sem modos, sem educação. O senhor sabe ao que me refiro....”

“Agora as reticências são suas, Senhora... Vê como é importante ter varias a disposição, quando o assunto não é fácil de tratar?” 

José ganhara confiança, depois de ter colocado o sapo na mesa. .    

“Bem, bem, o senhor quer uma companhia agradável, para a semana santa.  Vai viajar?”

“Não. Quero ficar aqui mesmo, em minha casa. O restaurante do Flat manda refeições com cardápio variado, e nem precisamos sair de casa, se não quisermos. Há bastante diversão, música, DVD, livros, jogos. – não me atrevo a pedir, mas adoraria um jogo de xadrez......”

Marika calculou quantos anos tinham passado depois de seu último, apaixonante jogo de xadrez; sua resposta se fez ouvir com um pouco de atraso, como se ela estivesse longe dali: “E conversação, espero...”

“Sim, é claro, conversação, que é uma coisa de que sinto muita falta....”

“Bem, senhor José, deixe-me pensar um pouco, dar uns telefonemas e aguarde minha resposta daqui a umas duas horas”

“Obrigado, senhora” 

“De nada, José. Até logo”.

 

Imediatamente depois de encerrar a ligação, Marika (agora que a conhecemos um pouco melhor podemos deixar de lado a etiqueta) abriu seu note book e analisou a lista de correspondentes, mandando diversas mensagens.

Procurava naturalmente uma garota simpática mas não atirada, culta sem ser pedante, inteligente sem parecer um gênio, bonita sem ser convencida.

Em resumo,   aplicando a velha máxima latina :”In médio stat virtus” , aquela pessoa média, na qual podemos encontrar todas as virtudes (no sentido mais amplo, se é que me entendem). 

Os gostos do seu amigo José tinham vindo refinando-se, ao longo dos anos, no contato constante com ambientes,  pessoas e objetos bonitos,  sofisticados, valiosos e elegantes.

A partir de certo ponto, o dinheiro passa para um segundo plano; a abrangência dos artigos que se compra e vende, que se oferece e manipula, acaba produzindo uma massa de informações que se tornam o próprio alimento do “dia a dia”.  

É o contato com a arte, que gera e desenvolve o crítico,  o conhecedor, o apreciador.

 

 As três primeiras escolhas – o computador facilitando enormemente as decisões, com o cruzamento das diversas  informações  -  infelizmente falharam.

Uma das moças estava comprometida com um seminário corporativo, a outra viajara para o exterior, a terceira ia transcorrer a Páscoa com os pais no mato - no interior, ela disse,  longe de tudo e de todos.

As restantes deixavam muito a desejar, pelo padrão de qualidade que Marika exigia.

Marika conhecia perfeitamente o tipo de moça que devia achar para o senhor José .

E não queria desapontá-lo.

A procura ia se tornando mais ansiosa, mais nervosa a cada hora que passava.

As alternativas diminuíam, o tempo ficava escasso.

Por fim, a Condessa deixou-se cair pesadamente na velha poltrona do salão principal.

O velho tapete, ao lado, continuava com as pontas enroladas.

Nada pudera ser resolvido. Uma falha completa.  Com tantas possíveis candidatas,

o resultado fora uma bolha de sabão. Ficou desesperada.

 

Marika não conseguiu coragem para comunicar sua falha por telefone.

Preferia ir falar pessoalmente, explicar-se  com o senhor José.

Encheu a banheira, enfiou-se na água quente e tomou um longo, relaxante banho.

Vestiu com esmero seu melhor tailleur azul claro, a clássica blusa de seda branca, um “foulard” azul-marinho,  meias e sapatos de salto alto, que nos últimos tempos  quase não tinha usado; preparou-se com paciência e diria,  quase com carinho; enquanto se penteava cuidadosamente, as idéias iam se ordenando na sua cabeça, deixando-a tranqüila e segura de si. Usou apenas umas gotas – as últimas do vidro, por sinal -  de um perfume discreto e envolvente.

Pronta, olhou-se no espelho – e este lhe sussurrou que ela estava muito bem, pela idade que tinha, pelos sofrimentos e provações que havia suportado; a solidão tinha sido um bom remédio...e a falta de dinheiro também.

Quando chegou à casa do senhor José, já não era mais Marika.

Era a Condessa Marika Von Kloten da Bavária, com todo o seu charme, sua distinção, o porte altivo, as feições elegantes.

José foi abrir a porta. Ficou fascinado; quase não a reconheceu.

Ela entrou rapidamente, avançando para o vestíbulo na penumbra.

Sentou-se na poltrona que José lhe ofereceu e começou a se desculpar, enquanto o José, ainda surpreso, sorrindo, avançou o sinal, dizendo-lhe, sem reticências desta vez: “Não pensei de ter tanta sorte, Marika; podia esperar alguma garotinha bonita e insossa, e já estava me resignando a deixar as coisas andarem. Mas esta é uma surpresa, uma grande surpresa, uma deliciosa surpresa! Você vai mesmo querer passar este tempo todo comigo? Vai agüentar minha chatice? ...

Marika ficou mais surpresa ainda pelo inesperado da situação, mas não resistiu.

Olhou para ele, sorrindo e disse: “Mas eu sou apenas uma folha de outono. Sou amarelada e ressequida; meu verão já se foi há muito; posso cair a qualquer momento....”

“E eu estarei aqui para recolhê-la e guardá-la comigo” concluiu José.

A tarde caia rápida lá fora. A semi escuridão envolvia todas as coisas preciosas que o José tinha guardado na casa e na alma, pelos anos afora.  “Não vamos acender a luz, Marika; assim ficamos mais próximos, mais íntimos.  Vamos conversar um pouco...O jogo de xadrez pode ficar para amanhã....