O Estado Civil em Espinosa seria contrário ao uso da Razão?

"Mas – pode-se objetar – não será contrária à injunção da Razão submeter-se inteiramente ao julgamento de outrem? O Estado Civil seria então contrário à Razão?"

Bem, o presente estudo tem por finalidade demonstrar uma visão, porém sem a pretensão de exaurir o tema, sobre uma possível resposta, formada através da leitura do Tratado Político de Espinosa, para as indagações supra citadas.

Ao iniciar o Tratado Político, Espinosa faz uma crítica voraz aos filósofos políticos da época, afirmando que os mesmos, ao desenvolver seus trabalhos, se deixaram levar pelos extremos da personalidade humana com se fossem sua natureza, como disse brilhantemente Marilena Chauí, ao interpretar Espinosa em seu Espinosa: Uma Filosofia da Liberdade (página 73) "Angelizando ou diabolizando os seres humanos, os filósofos apenas escreveram utopias e sátiras, jamais uma política aplicável".

O que podemos enxergar, cristalinamente, do referido trecho é que os filósofos ao caírem neste vício, se tornam incompetentes nos seus propósitos, assim, em vez de estarem escrevendo de e para homens estavam escrevendo de quimeras para os não-homens.

Assim, nas palavras do próprio Espinosa "entre todas as ciências que têm uma aplicação, é a política o campo em que a teoria passa por diferir mais da prática, e não há homens que se pense menos próprios para governar o Estado do que os teóricos, quer dizer, os filósofos" (grifo nosso) (Tratado Político, Capítulo I, § 1°).

Então, Espinosa ao tratar da real natureza dos seres humanos, chega a conclusão que os mesmos são seres passionais, que visam buscar seu próprio interesse, ou seja, buscam a auto preservação, como quer Espinosa, mesmo que para isso tenha que prejudicar outro semelhante.

Sendo assim, ao analisar a natureza humana, Espinosa trata das emoções, não como vícios, mas sim como características inerentes à condição de humana. Portanto, para Espinosa, não existe homens submetidos plenamente àRazão, pois é de sua natureza, a presença de emoções (paixões).

Destarte, no Estado Natural, o homem vive "conforme sua própria compleição", sendo que ao surgirem conflitos, nada obsta que os homens se esmaguem mutuamente, e conseqüentemente, sendo glorificado, ou melhor, conseguindo conservar a si próprio, o vitorioso, ou seja, o que teve maior poder de se auto preservar.

Fato assaz importante neste Estado é o fato de nele não haver pecado, uma vez que não há o sentimento de preservação do grupo, mas apenas o de preservação de si próprio, e, como salientado anteriormente, podendo até prejudicar terceiro para a efetivação desta preservação. A figura de pecado somente surgirá com o Estado Civil (trataremos mais profundamente este assunto adiante).

No Estado Natural os homens estão somente submetidos ao Direito Natural, que são as regras da natureza segundo tudo acontece, e tais regras decorrem de um Deus que possui Liberdade absoluta, portanto, o Direito Natural nada mais é do que o próprio poder de Deus.

Para Espinosa, Direito é o mesmo que Poder, ou seja, "o direito natural da Natureza inteira, e conseqüentemente de cada indivíduo, estende-se até onde vai a sua capacidade, e portanto tudo o que faz um homem, seguindo as leis da sua própria natureza, fá-lo em virtude de um direito natural soberano, e tem, sobre a Natureza tanto direito quanto poder"(grifo nosso) (Tratado Político, Capítulo II, § 4°), assim o direito natural é o poder de agir de um indivíduo, ou seja, o conatus individual.

Cada indivíduo, exercendo seu conatus, não estará submetido a usar plenamente sua razão, uma vez que o homem não é totalmente livre, sendo mais livre, quem faz maior uso da Razão, assim, "concluímos, portanto, que não está no poder de cada homem usar sempre da Razão e manter-se no cume da liberdade humana" (Tratado Político, Capítulo II, § 8°).

Segue-se, que para Espinosa, quanto mais um homem usa da Razão, e prefere o bem ao mal, mais este homem é livre. Porém, não esta na natureza humana, atingir o cume da liberdade, uma vez que inevitavelmente estará submetido às paixões, tal fato é concebível somente a Deus.

Assim, conservar-se-á melhor a sua pessoa aquele que fizer maior uso da Razão, pois se razão é liberdadee esta é poder, podemos dizer que quanto mais uma pessoa usa da Razão mais Direito ela possui.

Para Espinosa, a relação de dependência (submissão a um senhor) é uma relação de poder, ou seja, de Direito, e este "dependente" viverá segundo a compleição de seu senhor, em outras palavras, viverá para preservar o seu senhor em vez de si mesmo.

Para manter um indivíduo em seu poder o senhor poderá fazer uso de duas vias de dominação: a força, desarmando o indivíduo e tirando-lhe todos os meios de defesa ou de fugir desta dominação, este meio atingi o corpo do indivíduo; e outro é pela dominação moral no qual a submissão surge pelo temor ao senhor, sendo assim, esta dominação atinge a alma do individuo.

Segue-se que se duas ou mais pessoas unem suas forças, terão assim, mais poder, logo, por conseqüência, terão mais direito do que cada um isoladamente, ou seja, quanto maior o agrupamento, mais direito usufruirão. Assim terão também uma melhor preservação de suas pessoas.

A partir daí, observamos nitidamente a necessidade dos seres humanos se agruparem, para que possam melhor se preservarem, garantindo a liberdade de cada um, ocasionando numa vida harmônica, não mais aquela do Estado Natural, onde cada um pode usar que qualquer meio para se auto preservar.

Porém, nesse agrupamento de pessoas, que assim como Espinosa, designaremos como Estado Civil, cada indivíduo tem o dever de preservar o grupo, assim, o indivíduo não pode mais usar de todos os meios para se preservar. Agora o individuo deve fazer o melhor para preservar o Estado, fazendo isso de acordo com o Direito Civil.

Surge nesse ponto a figura do pecado, que "consisteem fazer o que segundo a lei não pode ser feito, ou é por ela proibido" (grifo nosso) (Tratado Político, Capítulo II, § 19°). Conclui-se que o pecado não é concebido numa sociedade onde todos podem usar de todos artifícios para se auto preservarem, ou seja, no Estado Natural não há como conceber o pecado, uma vez que o individuo é obrigado a somente agradar a si mesmo.

O Estado Civil em contrapartida é controlado por um Poder Publico, que pode ser: I) Democracia, se o esse poder é exercido por uma assembléia composta por todos os cidadãos, II) Aristocracia, se nessa assembléia estão somente alguns escolhidos, e III) Monarquia, se o poder publico é exercido apenas por uma pessoa.

Portanto, Estado Civil surge para assegurar a liberdade, a segurança e a utilidade dos indivíduos, posto que no Estado Natural é impossível assegurar estes atributos.

Ao contrário de Hobbes, Espinosa descarta a idéia de contrato social, para ele o que faz o povo se unir são as vantagens que obterão no Estado Civil. Espinosa vê essa massa reunida (Estado) como um sujeito político, ou seja, um sujeito indivisível, onde todos fazem parte do todo.

Por fim podemos afirmar que a humanidade dos seres humanos é política.

Aqui neste ponto surge uma questão, colocada pelo próprio Espinosa, em seu Tratado Político (Capitulo III, § 6):"não será contrário à injunção da Razão submeter-se inteiramente ao julgamento de outrem? O Estado Civil seria então contrário à Razão?"

A partir deste ponto, nosso principal foco será obter uma possível resposta a estas indagações.

Posto que com o uso da Razão, o ser humano, preferiria o bem ao mal, julgamos que o Estado Civil não é contrário à Razão, pelos fatos e fundamentos a seguir expostos.

O individuo, no Estado Natural, esta mais sujeito à suas paixões, assim, poderia, muito facilmente, preferir o mal ao bem, e por conseguinte, usar este mal para preservar o seu ser, uma vez que a única ambição do individuo neste tipo de estado é a de preservar o seu ser, custe o que custar.

Sendo assim, num Estado Natural os que possuem menos poder sucumbirão frente aos que possuem mais poder de se preservar, ou seja, quem possui mais poder possui também mais direito.

Refletindo sobre tal Estado (Natural), inconcebível é a noção de liberdade (pois neste estado estamos mais sujeitos às paixões, assim fazemos menos uso da razão, e é mais livre que usa mais da razão), de segurança (uma vez que cada um pode fazer qualquer coisa para se preservar, mesmo que para isso tenha que tenham que eliminar o próximo), ou seja, nesse estado o individuo se torna vulnerável ao mais poderoso, ou seja, o que tem mais poder de auto preservação.

Porém, como ressaltado anteriormente, ao se reunir em grupos, os indivíduos somam seus poderes, ou seja, quanto maior o agrupamento mais direito este grupo usufruirá, estando ai a pedra de toque da criação do Estado Civil.

Destarte, no Estado Civil os indivíduos gozarão de direitos inconcebíveis num Estado Natural. Os mesmos possuirão uma maior liberdade, posto que poderão fazer um maior uso da Razão, e não estarão tão sujeitos às cóleras da paixão. Sendo cada individuo responsável pela preservação do todo, ou seja, do Estado Civil, mantendo suas condutas regradas por meio do Direito Civil, visando assim a preservação desse estado.

Portanto, a nosso ver, não seria contrario à Razão o Estado Civil, pois, nos guiando pela Razão, preferiremos o bem frente ao mal, e ao conceber o Estado Civil, o homem visa o próprio bem e dos demais, resultando numa vida harmônica, lutando todos para se auto-preservarem mutuamente, preservando assim o Estado Civil.

Agora nos resta analisar se é contrário à Razão submetermos inteiramente ao julgamento de outrem. Novamente nosso entendimento será negativo, pois o Estado Civil é criado para harmonizar a vida no Estado Natural, assim o Direito Civil nasce para regrar as condutas neste novo estado surgido para aprimorar o Estado Natural.

O poder deste estado, emana de um poder público, que como exposto anteriormente, poderá ser a democracia, a aristocracia e a monarquia.

Ao nosso ver em qualquer forma de Estado Civil o poder público ao usar de sua capacidade racional, escolherá o bem frente ao mal, assim resultará numa administração visando a preservação de todos os indivíduos pertencentes a este estado.

Destarte, mesmo que o poder público emane de um só individuo, estando esta pessoa fazendo uso da Razão, o povo, submetido a este poder, estará de acordo com a Razão, uma vez que o poder público, para preservar o todo, escolherá o bem, ou seja, o que melhor couber para preservar a sociedade numa convivência harmônica.

Referências:

CHAUÍ, Marilena; Espinosa, Uma Filosofia da Liberdade – São Paulo, Moderna, 1995;

CHAUÍ, Marilena; Política em Espinosa – São Paulo, Companhia das Letras, 2003;

Cadernos de Ética e Filosofia Política, 4, p.9-44 – São Paulo, USP, 2002;

ESPINOSA, Tratado Político, Pensadores, 1973