Antes de descrever os argumentos vinculados a relação ou contradição, entre filosofia e espiritualidade é necessário conceituar os termos propostos. Compreende-se por Filosofia neste artigo, a arte de "escutar" a linguagem do cotidiano e do interior do ser, ou seja, é filosofia a capacidade de "escutar" o que o indivíduo comunica por palavra, o que omiti ao dizer, o que comunica na simbologia usada no dia-a-dia, o que fala com o corpo e o que guarda no seu silêncio interior. "Escutar" o outro e a sim mesmo. Assim é bom filósofo o indivíduo que "escuta e vê o que está diante e atrás da parede branca".

Esta conceituação filosófica encontra-se em algumas obras de variados filósofos. Por exemplo: saber escutar o logos trazido pelo mestre é condição para a formação do discípulo estóico. Sêneca relembra a Lucílio duas regras sobre a escuta. A primeira é a importância de escutar, interiorizar e recordar as verdades ensinadas pelo mestre. E a segunda é o controle, a vigilância sobre o que se deve escutar:

"A tua preparação de base era bastante ambiciosa: procura, portanto, atingir somente o alvo que te havias proposto e põe em prática os princípios que já interiorizaste. Em suma, para ser sábio, bastar-te-á manteres os ouvidos fechados; só que não será suficiente usar cera: necessitarás de uma matéria mais densa do que a usada por Ulisses nos seus companheiros. (...) a voz que deve precaver-nos não provém de um recife, mas ressoa sobre os quatro cantos do mundo" (SENECA, Lúcio Anneu. Cartas a Lucílio. 2ª. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 116).

Outra afirmação nesta mesma linha de raciocínio vem de Epicteto:

"Portanto, se falar como se deve é uma habilidade, vês que também o ouvir com proveito é uma habilidade? Eu hei de fazê-lo perfeitamente e com proveito; se queres vamos abandoná-lo por um momento, porque ambos estamos muito longe de tal coisa. Mas me parece que qualquer um estaria de acordo em que para escutar um filósofo se necessita certa prática de ouvir. Ou não?" (EPICTETO. Disertaciones: por Arriano. Madrid: Editorial Gredos, 1993, p 253).

O filósofo Michel Foucault, afirma que os termos gregos: Empeiría e tribé, isto é, a habilidade e a prática são as duas características principais para se escutar bem. (Cf. FOUCAULT. Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 408-409).

Conclui-se, contudo que a escuta constitui a forma de ascese primitiva, isto é, possibilita que, pelas informações interiorizadas, se possa conhecer algo. Na escuta é que se começa a ter contato com a verdade. Ela inicialmente é a porta de entrada, o princípio do conhecimento. Portanto, de certa forma, pode-se afirmar que a filosofia, ou parte dela é a "arte de escutar."

Por espiritualidade compreende-se também a arte de "escutar". "Escutar" o finito e o infinito, "escutar" o divino e o humano, "escutar" o silêncio e o barulho do ser. Há uma série de pensadores da espiritualidade, que fazem ou fizeram afirmações sinônimas ao argumento proposto acima. Anne Wilson Schaef em seus escritos diz que "ser capaz de escutar o silêncio é ser capaz de escutar o infinito." No livro do Profeta Oséias (Cf. 2,14) há uma afirmação que diz: "Levá-lo-ei ao meu silêncio e ai lhe falarei ao coração". Já São João da Cruz diz: o silêncio ensina-nos a esperar por Deus, mas sem deixar de procurá-lo, mesmo que se tenha de atravessar mares, desertos e chamas de incêndios. Catherine de Haeck Doherty também escreveu: "Tudo em mim é silente (...) e estou imersa no silêncio de Deus". O autor de Eclesiastes disse que "há tempo de estar calado, e tempo de falar" (Cf. Eclesiastes  3,7). Ou mais adiante, tem-se ainda: "Chegar-se para ouvir é melhor do que oferecer sacrifícios de tolos" (Cf. Eclesiastes 5,1). Portanto, conclui-se, não diferente do que na filosofia, que espiritualidade é "a arte de escutar". Mas "escutar" com o que "se sente", ou seja, escutar com o coração, ou ainda, "escutar" o Pathos. Nisto a espiritualidade difere-se da filosofia, mas não se opõe. Ambas se completam.

Na ciência filosófica o instrumento de trabalho é a razão. O homem "escuta" a realidade a partir da lógica da própria razão. Em outras palavras: "Escutar o Logos", isto é, ouvir a natureza fundamental do homem. Conforme afirma Heráclito: o Logos está sempre presente e os homens que não se predispõem a ouvi-lo não o conhecerão como tampouco terão capacidade de falar e de pensar. Já Heidegger, na Carta sobre o humanismo, entende o Logos como a "escuta do ser" através da poesia. Enfim, o exercício é frio, racional. É tarefa silenciosa que dispensa discursos e verborréias.

Já na arte da espiritualidade o instrumento de "escuta" é o "coração". "escutar o que se sente" O desafio é "escutar" a realidade e amar, satisfazer-se com o bom. "Escutar" a realidade e "chorar" o ruim e ainda transformá-lo em bom. "Escutar o Pathos", tarefa que se dá pelos sentidos.

Deste modo, tem-se Filosofia e Espiritualidade, Logos e Pathos, razão e emoção. Dois aspectos fundantes do ser. Um está para o outro. Filosofia e espiritualidade se relacionam se completam. O ser humano para realizar-se plenamente precisa "escutar" a realidade com a razão e o coração (emoção).

Portanto, "escutar o que se pensa", "escutar o Logos" é Filosofia. E "escutar o que se sente", "escutar o Pathos" é espiritualidade. E assim, Filosofia e Espiritualidade se complementampara fundar o ser humano.

Valdecí Augusto