JUSTIFICAÇÃO E ENSINO DE FILOSOFIA PARA VESTIBULAR: UMA CONSIDERAÇÃO INTERROGANTE

WERNER SCHRÖR LEBER

1 FUNDAMENTAÇÃO DO PROBLEMA E ONTOLOGIA DO CONHECIMENTO

A que gênero de conhecer pertence a filosofia quando dela se fala no ensino médio brasileiro? Alguns julgam a resposta fácil e óbvia. Entre esses, eu não me incluo. A filosofia, a rigor, é a disciplina que se ocupa com a questão do Ser. Porque é que há algo e não, antes, o nada é a pergunta sobre a qual se dá toda investigação filosófica, conhecida como ontologia, ou estudo dos entes ou das coisas que são. Constata-se que há algo. Sempre há algo! Mas o que há? Matemática, História, Física, Política, Biologia, Literatura, Técnica, Pensamento. O que é isso que há? Para a filosofia é o Ser. Isso não é novo. Já Parmênides disso sabia quando afirmou, o ser é e o não-ser não é. Toda ontologia é recorrente a Parmênides. De um modo direto a filosofia se resume a estudar o que há. De outro modo, portanto, é justo afirmar que toda filosofia, levada às últimas conseqüências, pratica ontologia, mesmo que na maioria das vezes isso não esteja expressamente ou explicitamente mencionado. Quem, por exemplo, estuda política ou medicina não diz abertamente que a ontologia constitui os pressupostos de seus estudos. É possível que não se aperceba de um modo direto disso. Mas é preciso haver algo que se reconheça como política e medicina para que se possa estudá-la. Ninguém poderá ser médico fora dessa moldura. Parece óbvio, mas nem sempre é. Também a preparação de alunos sobre os encaminhamentos de determinados textos filosóficos para um concurso, como é precisamente o caso em questão, não precisa ser encarado como um tratado de ontologia. O mesmo ocorre com a física, com a música e etc. Tudo que nos cerca é de algum modo, existe, pertencer ao ser. Do contrário não estaria em nossa alça de pensamento. O que não é, não existe e não pode ser pensado. Martin Heidegger, o mais influente fenomenólogo moderno afirma: “Somente na clara noite do nada da angústia surge a originária abertura do ente enquanto tal: o fato de que é ente – e não nada.[1] Ente, como se sabe, é sempre aquilo que é. As coisas são entes. A filosofia usa nomes complicados para falar de coisas óbvias. O que significa que quer procurar saber as razões das coisas serem como são e as formas racionais, lógicas, cognitivas de como se poderia falar daquilo que efetivamente é. Se há algo que é (o ser), então ele é a realidade e poderá ser compreendido. O ser humano se compreende como pertencente ao ser. Esse é o princípio mais elementar da filosofia e das ciências também. Essa é luta da razão; dela vem suas glórias e suas derrotas. Mas só isso, em última instância, dignifica o conhecimento. Nesse sentido, o estudo da filosofia permite que os acontecimentos que nos cercam, ao serem analisados justamente por um viés filosófico, tendam, por isso mesmo, sempre a serem vistos de modo crítico e não ingênuo ou dogmático. Dos dois, certamente, o último é o pior porque petrifica posições e postula verdades eternas ao nível da razão.[2]

 

2  OS CONTORNOS IMPORTANTES

Mas a filosofia transcende o nível de uma disciplina meramente acadêmica. Ela está simultaneamente aquém e além desse emolduramento. Tem caráter paradoxal. Não é preciso ser filósofo para estudar filosofia. Filosofia, a rigor, como sabia Wittgenstein, é uma forma de disciplinar o cérebro. A intuição e a inteligência, a abertura para o novo, a humildade diante do desconhecido, a curiosidade e a busca podem valer mais do que as enciclopédias. Daí a contundente afirmação do iluminista Immanuel Kant, não se aprende filosofia, mas tão somente a filosofar. Ela forma aquela elementaridade, denominada pressupostos, categorias e suportes do raciocínio, de onde as outras ciências partem para entabular seus discursos. Lamentavelmente isso tem sido muito mal interpretado e contribuído decisivamente nos tempos hodiernos para a destituição da filosofia da condição ciência primeira ou ciência dos entes, como queria Aristóteles. Dessa visão equivocada surgem afirmações as mais infundadas e acríticas possíveis. A bem conhecida e muito divulgada entre nós diz, o mundo, com filosofia ou sem ela, se mantém como é. Ledo engano. Aqui começa o motivo de uma universidade importante como a Universidade Federal do Paraná (UFPR) exigir provas sobre temas e assuntos filosóficos no seu processo seletivo para os cursos de graduação que oferece, mais conhecido entre nós como vestibular. O mundo tem sentido ontológico e é como é porque assim fizeram que fosse. Haveria outras possibilidades. Estudar filosofia significa sair do plano da natureza e perceber que a capacidade de fazer opções dá sentido a tudo que fazemos. Os conhecimentos, as ciências todas, participam do sentido da totalidade que integra o ser. Para que serve, afinal, o conhecimento que se busca?

Ademais, em outro sentido, o que constitui o pano de fundo dessa tentativa é constatação de que ninguém aprende a pensar só repetindo o que já se sabe. Até porque o que já se sabe pode não ser exatamente como se tinha acreditado. A finitude e o erro estão sempre no horizonte. Esse pressuposto esteve presente na filosofia das ciências de Karl Popper quando postulou que a verdadeira ciência é aquela que pode ser falseada. Se não errássemos, seríamos deuses. Porém, deuses não praticam filosofia porque conhecem as respostas de nossas indagações existenciais. Contudo, é incorreto imaginar que Deus não possa ser um assunto filosófico.[3]

Nesses últimos anos tem sido freqüente a noção de que o conhecimento possui uma dimensão interdisciplinar ou transdisciplinar. Esses temas não abordagens necessariamente filosóficas. Elas provêm das teorias educacionais modernas e os resultados desses estudos são amplos, mas não podem ser discutidos aqui.[4] Segundo essas teorias, não basta dominar determinados conhecimentos. Eles mudarão em breve. Os enfoques também. É mais importante saber como se pensa e, por isso, ensinar a pensar. Ensina-se a pescar, mas não se deve dar o peixe. É dentro dessa perspectiva que a filosofia chega a uma prova de vestibular. É preciso que se conheça os contornos daquilo que temos à nossa frente. Como chegamos até aqui? O ser humano muda também, mas primeiro precisa entender sua trajetória. Se não a entender também não entenderá as mudanças. O novo também surge porque os seres humanos se permitem mudar de atitudes e de concepções. O que assim é, o é por algum motivo. Conhecê-lo, dar lhe um nome, é a principal tarefa do pensar filosófico. O saber não é um território que deve ser defendido como um cachorro defende seu quintal. Esse princípio epistemológico também imperou entre nós durante muito tempo e transformou o conhecimento em ilhas que se perpetuam como outras ilhas.[5] É, pois, de uma visão atomizada de ser humano que urge colocar o conhecer em novos patamares.

Mas há problemas. Da forma como o programa da UFPR foi posto exige das escolas uma postura pragmática, ou seja, é preciso estudar determinados temas e com determinadas perspectivas também. Mas antes assim do que não. O telos filosófico, desse modo, fica menos focado na crítica filosófica às lógicas imperativas de nossa sociedade e mais focada no critério classificatório. Um Plano de Curso desta natureza, portanto, não se pauta tanto por um critério curricular dos assuntos pertinentes aos seriamento escolar, mas pelo assunto que será exigido nas provas de modo técnico.[6] A filosofia poderia ter sido invocada por outras razões. Mas é muito melhor assim não ser invocada. Disso se segue que até o mês de julho o curso se pautará por aquilo que se julga passível de estar nos objetivos amplos da prova. Trata-se se averiguar os problemas centrais da filosofia ao longo de seu tempo. Seria mais justo falar aqui em revisitar temas. Primeiramente se optará por um curso que aborde diferentes perspectivas filosóficas através de suas diferentes escolas de pensamento, como o essencialismo, pragmatismo, existencialismo, fenomenologia, criticismo. E num segundo momento, pensa-se aqui do Mês de Julho para adiante, o segundo semestre portanto, o Curso vise o centramento e alinhamento das questões que dizem respeito aos problemas e temas que o vestibular exigirá.

 

3 MACROVISÃO: O ALVO  

A filosofia, presente há muito tempo no currículo do Ensino Médio, tem como objetivo primordial contribuir para que o acadêmico se sinta desafiado a ensaiar novas opiniões, novos conceitos sobre os espaços circundantes, sejam eles históricos, tecnológicos e culturais. Isso já ocorre, assim se espera, no Primeiro e Segundo ano do Ensino Médio. Entretanto é possível haver alunos que nunca tiveram contato com a filosofia. É preciso pensar também nesses.

Constata-se que a técnica, o modo de fazer, mudou as relações entre as pessoas. O homem moderno é o homem da técnica. Os conhecimentos escolares, em sua quase totalidade, objetivam ao saber fazer, que o mundo moderno exige. Sobre isso cabe o seguinte comentário: “Técnica é uma forma de desencobrimento. A técnica vige e vigora no âmbito onde se dá descobrimento e desencobrimento, onde acontece a verdade”.[7] Ora, a verdade, de modo direto, ocorre onde as diversas ciências lidam com seu objeto. Mas isso também desenraiza o homem, torna-o prisioneiro do fazer e esquece-se, em muitas das vezes, do pensar. De alguma maneira, o excesso de tecnicismo na educação atual, que mais torna as pessoas operadoras dentro de um sistema do qual não tem uma visão abrangente, (educação treinadora) é fruto já de um modelo dogmático de pensar, onde as posições são sempre vistas como estanques e inquestionáveis. A disciplina de filosofia, portanto, não poderá ter outro objetivo mais central a não ser aquele de questionar fronteiras, derrubar barreiras, questionar “o inquestionável” e apontar o quanto o ser humano esteve desde época remotíssimas envolvido com a pergunta “o que é a realidade?”; “o que é aquilo que desde sempre se apresenta à cognição como algo que é?”. Não seria isso que os Pró-Reitores da educação universitária tiveram em mente quando decidiram por uma prova de filosofia no concurso classificatório? Praticar filosofia é uma forma de transgredir fronteiras com elegância e sabedoria. Mas é também uma forma de revisitar temas e problemas centrais de nossa tradição, já esquecidos em algum lugar. E mais, perguntar qual o sentido disso à nossa existência e nossa prática social.

Além disso ainda, a filosofia precisa ser, como denota a etimologia do termo “filosofia”, uma paixão pelo saber, uma amizade pela sabedoria. Filosofar, tanto em nossos tempos como em tempos passados, constituiu sempre um ato de bravura pela liberdade e pela dignidade contra a covardia daqueles que consideram a busca pelo prazer de aprender, pela alegria de saber, um ato inútil.

REFERÊNCIAS

[1] HEIDEGGER, O que é metafísica? In: Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 41.

[2] O dogmatismo não é algo apenas presente nas religiões, na teologia. As concepções que nos cercam são extremamente dogmatizadas, na maioria das vezes porque um grande número de pessoas tem preguiça de pensar. Sobre isso ver KANT, Resposta à pergunta: que é esclarecimento? In: Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 113. Ver também do mesmo autor, Realidade e existência: Lições de metafísica. São Paulo: Paulus, 2002, p. 49 ss.

[3] TILLICH, A coragem de ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. Esse texto é um exemplo de como Deus também ocupa as páginas da filosofia.

[4] Por exemplo, SOMMERMAN, Inter ou transdisciplinaridade? São Paulo: Paulus, 2006. Também FAZENDA, Ivani. Interdisciplinaridade: qual o sentido? São Paulo: Paulus, 2003.

[5] Sobre isso é muito importante o estudo de JAPIASSU, A atitude interdisciplinar no sistema de ensino. Revista Tempo Brasileiro, 1992, nº 108, p. 83-94.

[6] Entretanto é preciso reconhecer que isso também é currículo, pois currículo é sempre a perspectiva política dentro da qual algum saber é estipulado e exigido. É disso que trata de modo geral o estudo de APLLE, O conhecimento oficial. Petrópolis: Vozes, 1999.

[7] HEIDEGGER, Ensaios e conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 18.