Resumo:
Este texto pretende discutir a relevância das Unidades Didáticas utilizadas na Educação Infantil, bem como sua influência no que se refere à concepção de infância, aluno e professor. Trata-se de um olhar acerca do sujeito, da escola e da sociedade, implícito nestes materiais didáticos que se caracterizam por desenhos coloridos e contos infantis, mas se revelam como instrumentos determinantes das práticas pedagógicas no cotidiano da escola infantil e que carregam um discurso, uma ideologia. Dentre as muitas opções apresentadas pelas editoras, buscamos um exemplar para fazer a análise considerando o atendimento a crianças de cinco anos de idade .

Palavras-chave:Educação infantil, recurso didático, Currículo.



ABSTRACT:

This article intends to examine the relevance of Didactical Units used in kindergarten and its influence concerning the concept of childhood, student and teacher, as well. This is a look on the subject, school and society, which are implicit in these didactic materials that are characterized by colorful, fairy tales, but are revealed as essential instruments of teaching practices in the day-by-day of school children and that takes a speech, an ideology. Among the many options presented by the publishers, we search for a copy to make the analysis taking account the care of five years old children .

Keywords: Early childhood education, teaching resources, Curriculum


Estudar não é um ato de consumir idéias, mas de criá-las e recriá-las.
Paulo Freire


Introdução:
O presente texto faz referência às fichas didáticas na Educação Infantil na Espanha. Trata-se de uma prática comum o uso de livro didático nas escolas infantis com base em orientações que reforçam/alimentam, através de um discurso, uma ideologia que institui tal ação como algo que não somente faz parte do cotidiano escolar, mas que se estabelece como elemento-chave no processo de formação das crianças no dito país. Uma idéia de educação que se aplica numa perspectiva de formação humana para a reprodução, obediência, alienação.
O discurso ideológico a partir das reflexões de Eagleton (1997) indica ser possível pensá-lo como uma complexa rede de elementos empíricos e normativos, dentro da qual a natureza e a organização dos primeiros é, em última análise, determinada pelos requisitos últimos. O autor se utiliza de filósofos como Althusser, Habermas, Foucault etc. para pensar a definição do termo ideologia. Utilizando Thompson, Eagleton nos diz que estudar ideologia é estudar os modos pelos quais o significado (ou significação) contribui para manter as relações de dominação. Com isso, indica que este é freqüentemente associado à idéia de relação de poder. Ideologia tem a ver com legitimar o poder de uma classe ou grupo social dominante (EAGLETON, 1997, p.19). Nestes termos, escapa da definição do conceito por uma via racionalista e propõe uma teoria que não nega os elementos cognitivos, mas exalta a subjetividade sem reduzir-se ao subjetivismo.
Em Eagleton percebemos ideologia como um conjunto de idéias e crenças que pode ser utilizado como instrumento de opressão, submissão quando contextualizada numa relação de poder. Mas, ao contrário, também pode ser ferramenta de subversão ao mesmo poder possibilitando a superação de tal relação. Assim, levantamos algumas questões:
1) Ao conceituar o termo ideologia tomamos como referência a subjetividade mais que a racionalidade?
2) Qual a relação da verdade/falsidade (tratadas por Eagleton) no conceito de ideologia?
3) Todo discurso é ideológico?
4) Toda ideologia necessita de um discurso que a legitime?
Para o referido autor, em uma sociedade totalmente justa, a ideologia, no sentido pejorativo não seria necessária, uma vez que não haveria nada a ser explicado. (...) a ideologia às vezes envolve distorção e mistificação, isso ocorre menos em virtude de algo inerente à linguagem ideológica do que em virtude de algo inerente à estrutura social à qual pertence essa linguagem (EAGLETON, 1997, p. 38). Podemos considerar que o discurso carrega uma ideologia que está associada a determinados interesses numa estrutura social onde a relação de poder está dada como algo estabelecido.
A adaptação deste à realidade brasileira se dá na medida em que busca a reflexão sobre os sujeitos (adultos e crianças) envolvidos nesta etapa da escolaridade tendo em vista o significado e sentido dados às práticas pedagógicas conforme determinadas perspectivas de trabalho.

Educação, infância e aluno: conceitos que se entrecruzam
Educação e Infância são conceitos que se relacionam quando a escolarização se revela como projeto de organização da sociedade. Entretanto, a infância, suas necessidades e demandas, tomam centralidade nestes projetos a partir do ponto de vista dos adultos. De fato, estes pequenos sujeitos não participam deste processo, nem opinam em nada. Suas diferenças, a singularidade das diversas infâncias, que estão dadas como uma realidade social, são desconsideradas como se esta categoria social fosse parte de um bloco único, homogêneo, bem como seus desejos, aspirações.
É a concepção dos adultos do que vem a ser infância que predomina nos textos e nas relações. Considerando as reflexões de Gimeno Sacristán (2003) a ideia de infância é, portanto, uma construção social que está vinculada a um discurso que a concebe e que, por sua vez, se embasa em um determinado ponto de vista. Este discurso está implícito nas práticas cotidianas com os pequenos, é absorvido e reproduzido no senso comum até que se convertem em ações naturais e passam despercebidas.
É nestas formulações que nos embasamos para garantir as práticas pedagógicas nas escolas de educação infantil que indicam uma das principais influências no processo de formação dos pequenos. A questão é saber o tipo de formação humana que vem se realizando quando nos valemos destas formulações. A projeção na infância como possibilidade de garantia de uma sociedade ideal é tratada como natural pelo adulto. Este projeta na infância seus desejos, expectativas, frustrações etc. que refletem-se não somente nas ações cotidianas, mas em documentos oficiais que tratam da criança como esperança de um futuro melhor.
A idade de ser menor é também um momento carregado de esperança para os adultos sobre o qual estes projetam os seus ideais, que refletem as aspirações da melhoria do grupo (família, tribo ou sociedade) e da humanidade em geral. Talvez o exemplo mais claro desta esperança possa ser visto no reconhecimento do valor dignificante da educação (GIMENO SACRISTÁN, 2003, p. 20).


Unidades de trabalho na Educação Infantil: as fichas de trabalho como base para pensar os sujeitos

Do mesmo modo, na medida em que se constitui como parte da ação pedagógica, a utilização de fichas de trabalho como recurso didático para desenvolver as atividades na Educação Infantil também nos revela como concebemos a(s) infância(s) que temos e o que projetamos na(s) mesma(s). Atrás de inocentes figuras coloridas e dos contos infantis existen ideologías y valores implícitos en los materiales que utilizamos en las aulas (MARTÍNEZ BONAFÉ, 2002, p. 26).
Valemo-nos de um material pedagógico direcionado a crianças de cinco anos de idade composto por três unidades didáticas (fichas de trabalho), três contos, um boletim de avaliação, um caderno informativo para os pais e um envelope com adesivos que devem, em algum momento, também preencher estas fichas. O conjunto de recursos nos informa o tipo de sujeito com que se deseja ter como modelo. Tanto o sujeito professor quanto o sujeito criança/aluno (nessa etapa da escolaridade mais do que nunca confundidos) se constituem a partir deste modelo. Com base no modelo apresentado pelo material didático, o professor, desde o primeiro dia de aula, tem as tarefas que realizará com as crianças já preparadas pelo autor do livro.
Por trás de objetivos que orientam, ou melhor, determinam o trabalho do professor e, que dizem tratar de conteúdos que visam ao reconhecimento do próprio corpo, da necessidade do trabalho em grupo, da compreensão da diversidade etc. temos atividades extremamente tradicionais que reduzem a experiência, a construção do conhecimento, a troca de saberes ao cobrir de pontilhados ou recortes de papel sem significado nenhum. A dimensão das ações que se definem como atividades ricas se perde e estas se limitam ao condicionamento de tarefas repetitivas, mecânicas como uma espécie de treinamento e não de aprendizagem.
Além de determinar o que se tem que aprender, o material também conforma uma visão única de cultura. A vida se reduz ao limite da folha de papel que indica um padrão de hábitos, valores e comportamentos. Desse modo, está claro para o aluno quais são suas tarefas e, com isso, sabe que cobrir numerais pontilhados na ficha de trabalho não será o mesmo que experimentar contar e/ou agrupar conchinhas na praia no período de férias com os irmãos. Mas o que será considerado como conhecimento relevante estará contido nas fichas de trabalho e não no que viverá no período de férias.
Los estudiantes aprenden que existen dos culturas disociadas; la que es importante puesto que se da en la escuela y está contenida en el libro de texto y la que no vale la pena aprender (?) y se encuentra en la calle, en las experiencias de su vida cotidiana. (?) al igual que ocurre con el profesorado, también el alumnado y las familias han construido parte de su saber sobre la práctica de la escolarización en relación con el uso continuado del libro de texto (MARTÍNEZ BONAFÉ, 2002, p.31).

Podemos dizer que a existência de uma seleção cultural de conhecimentos se constituindo a partir da exclusão de outros conhecimentos é uma evidência. Temos aí o currículo e a partir desta definição buscamos perceber que conteúdos culturais estão selecionados no material analisado e como se apresentam.
Certo vocabulário indica uma seleção de tarefas que se referem ao auto- conhecimento, a relação com o outro e ao conhecimento de mundo são freqüentes no material. Entretanto, tais conhecimentos se relacionam com razões ideológicas que estão implícitas. Trata-se de mascarar a realidade de modo que esta se faça presente, mas de acordo com as verdades pedagógicas estabelecidas como válidas por um modelo ideológico. Cabe ressaltar que estes conhecimentos pautam-se na legislação e na orientação do Ministério da Educação tendo em vista a interpretação das orientações administrativas a partir das lentes de grandes empresas produtoras de material didático que tomam como principal foco a venda de seus produtos. Com isso, os produtores/vendedores, fazem "orientações" aos professores de modo que estes possam ter sua tarefa docente "facilitada" pelo livro didático. Tomamos estas "orientações" como uma forma de desautorização profissional e entendemos a importância do olhar atento do professor como elemento fundamental para desmascarar os reais objetivos destas atividades pedagógicas. Por isso (...) conviene ser conscientes de estos intentos de comercialización y manipulación informativa y trabajar para impedirlos (TORRES, 2007, p. 196).
No material analisado há uma seqüência obedecida para que um tipo de conteúdo não se "misture" ao outro. Ou seja, embora constituindo um mesmo bloco de trabalho, conhecimentos lógico-matemáticos, por exemplo, não se relacionam aos conhecimentos que se referem à linguagem.
Em seguida, nos acercamos das estratégias didáticas modeladas pelo material buscando identificar a instrumentalização metodológica da transmissão cultural. Focamos a atenção, neste momento, nas atividades apresentadas pelo material como ação pedagógica de reprodução/transmissão cultural.
Percebemos que ao dizer o que fazer ao professor (com riqueza de detalhes sobre o que deve ser a sua ação pedagógica), as estratégias didáticas decidem o grupo que será atendido por este profissional, mesmo sem conhecer o mesmo. Isto significa que há uma padronização das expectativas, desejos e respostas das crianças diante do material.
Obedecendo a uma seqüência temporal, identificamos a educação emocional, por exemplo, como uma tarefa determinada com resultados demarcados de acordo com a experiência traçada como relevante pela unidade didática. Igualmente são identificados distintos modelos culturais através da diferença marcada pelas vestimentas, bem como a influência destas na cultura entendida como pertencente ao aluno que utilizará o material. Tais comentários se apresentam como uma espécie de obrigação em tratar da diversidade, o que, não revela de fato, a amplitude desta na atualidade. Entretanto, entendemos que la realidad de la vida desborda en todo momento este cuadro demasiado exiguo, como para recordarmos que trataremos en vano de sujetarla a nuestros métodos, sino que por el contrario son éstos los que habrán de enriquecerse y adquirir flexibilidad para servir y expansionar la vida (FREINET, 1982, p.39).

Profissionalidade docente e formação humana: alternativas ao modelo de condicionamento
Podemos dizer que assim como se fomenta um modelo de aprendizagem do aluno, também evidencia-se um modelo de profissionalidade docente através do material.
Martinez Bonafé (2002) indica ocho claves de interpretación sobre los distintos ámbitos de determinación del trabajo docente: 1) las políticas; 2) los discursos; 3) las agencias; 4) los escenarios; 5) las culturas; 6) el mercado; 7) las prácticas y 8) las resistencias.
Entendendo a importância tratada pelo autor na descrição destas oito chaves, chamamos atenção para as de número 2 e 8 ? los discursos y las resistencias.
Destacamos estas chaves pelos seguintes motivos: a primeira, por conter elementos que perpassam as demais e a segunda por se colocar como instrumento de superação da primeira. Neste sentido, nos valemos das reflexões deste autor para pensarmos também nosso texto. Com base em Foucault, o autor trata o discurso como um fator determinante na ação cotidiana e diz que A través del discurso se legitima social y culturalmente un tipo de prácticas y se excluye la posibilidad de otras alternativas (MARTÍNEZ BONAFÉ, 2002, p. 75). O discurso presente nos livros didáticos são embasados, como já mencionado anteriormente, nas prescrições administrativas. Estas respondem a um modelo educativo com base numa determinação ideológica que parece obscura diante do falso discurso de neutralidade educativa e de igualdade de direitos. Tendo em vista esta realidade, a resistência se coloca como uma necessidade na medida em que é instrumento para superação.
Tomando Stenhouse e Freinet, Martínez Bonafé (2002, p. 100) nos diz:
(...) la idea de la cultura como una práctica de emancipación y de la escuela como un espacio social para favorecer en el sujeto la comprensión crítica del modo y la capacidad autónoma de argumentación (?) el currículo como el artefacto estratégico que concretaba en prácticas escolares ese compromiso comunitario con el sujeto y la cultura.

(?) La pedagogía de Freinet era popular y se basaba en la cooperación. Partía de una política de reconocimiento del niño, de su voz, de sus deseos y sus necesidades. Pretendía construir la libertad también en el trabajo diario en aulas, confiando en la creatividad de los sujetos y en su capacidad para desarrollar juntos proyectos de trabajo ilusionantes. (?) En la Pedagogía Freinet los profesores se reúnen, intercambian y aprenden su profesión en las experiencias de cooperación.

Nesta perspectiva, o currículo não é tomado como um pacote de conhecimentos que são reproduzidos a partir de "orientações" que determinam o trabalho docente. Ao contrário, se constitui como uma proposta teórico-prática de desenvolvimento do mesmo, um instrumento de mediação e intervenção cultural significativa. O material de apoio, ou o recurso pedagógico utilizado não se limita a fichas de trabalho que determinam disciplinas, separam conteúdos e conhecimentos. Na medida em que o conhecimento recebe um tratamento diferenciado tomando sua dimensão e diversidade a partir da experiência e da troca, outras alternativas são pensadas como recurso didático. La idea motriz de la cooperación pone en crisis los soportes y formatos del curriculum que individualizan el proceso de enseñanza y aprendizaje (MARTÍNEZ BONAFÉ, 2002, p. 107).
Considerados os desejos, as aspirações, as necessidades históricas dos homens que fazem acontecer a própria história, esta não se faz por conta própria, mas a partir destas necessidades. A questão é saber quais necessidades vêm sendo priorizadas e quem toma nas mãos os rumos da história. Se entendemos que a sociedade é dividida em classes e uma classe se coloca como dominante, obviamente as necessidades garantidas são de uma determinada classe e não de outra. A classe subalterna não possui necessidades, mas obrigações de produzir para garantir as necessidades da classe dominante que se renovam, bem como suas riquezas.
Os fatores objetivos que originarão a consciência de classe dependem do desenvolvimento de auto-consciência que garanta a consciência da necessidade de desalienação. Podemos nos perguntar: em benefício de quem e do que vem se realizando a educação? Ou ainda: contra o que ou quem? Para quê/ a quem serve o discurso pedagógico? Para quê/ a quem serve a escolaridade?
O fato é que a educação não acontece de forma neutra diante da realidade social e este reconhecimento é um passo para avançar contrariamente a perspectivas que anulam e submetem os sujeitos. Romper com a lógica do capital na área da educação equivale, portanto, a substituir as formas onipresentes e profundamente enraizadas de internalização mistificadora por uma alternativa concreta abrangente (MÉSZÁROS, 2005, p. 47).
Podemos pensar em algumas questões no que se refere a real necessidade das fichas de trabalho ? unidades didáticas ? como recurso didático na realização de atividades com crianças da educação infantil. Para que estamos formando estes pequenos sujeitos? Qual o objetivo da educação infantil? O que se pretende realizar como proposta de formação humana quando usamos este tipo de material? Estas questões se colocam a partir de outra que desenha a função social da escola desde que a educação se apresenta como direito: Que sujeito e, portanto, que sociedade estamos permanentemente construindo considerando as bases ideológicas que sustentam estes materiais?

Referências Bibliográficas:
EAGLETON, T. Ideologia. Uma introdução. Trad. Silvana Vieira, Luis Carlos Borges. São Paulo: Editora UNESP: Editora Boitempo, 1997.

FREINET, Célestin. Por una escuela del pueblo. 9ª edición. Barcelona: Editorial Laia, 1982.
GIMENO SACRISTÁN, José. O aluno como invenção. Tradução: Fernando Ferreira Alves. Porto: Porto Editora, 2003.
MARTÍNEZ BONAFÉ, J. Políticas del libro de texto escolar. Madrid: Morata, 2002.
MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. Tradução: Isa Tavares, São Paulo, SP: Boitempo, 2005.
TORRES, J. Educación en tiempos de neoliberalismo. Segunda Edición. Madrid: Morata, 2007.