1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

 

“Discorrendo sobre a personalidade do ser humano, Heidegger salientou que o seu humano apresenta essa característica singular em razão de uma evolução permanente inacabada.” (p. 456)

“Nos tempos modernos, tentamos chegar a um conceito mais preciso de dignidade da pessoa humana, cuja carência de precisão reflete com mais intensidade na esfera penal. Portanto, o conceito mais próximo a que podemos chegar é que a dignidade da pessoa humana consiste em atributos inerentes a cada ser coletivo, englobando o respeito a si mesmo e aos demais indivíduos, devendo o Estado assegurar e proporcionar todo e qualquer tipo de mecanismo para que o ser humano possa desenvolver suas potencialidades e viver harmonicamente com a sociedade, manifestando-se singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais indivíduos, tendo cada um o dever de tratamento igualitário em relação aos seus semelhantes, partindo o referido dever de três princípios advindos do Direito Romano: viver honestamente; não prejudique ninguém e dê a cada um o que lhe é devido.” (p. 456)

“A nossa suprema corte manifestou-se no sentido de que a dignidade da pessoa humana “é núcleo básico da ordem jurídica”.” (p. 457)

 

 

2. CESARE BONESANA

 

“O brilhantismo de Beccaria surgiu no momento mais propício da história: o absolutismo imperava ilimitadamente, o Estado desrespeitava expressamente direitos fundamentais individuais. Os indivíduos eram tratados de forma desumana no sistema carcerário e a máxima de que os fins justificam os meios reinava como força motriz do jus puniendi vigente à época. Beccaria o enfrentou construindo um sistema penal oposto, voltado para a necessidade social e protegendo totalmente o indivíduo contra as arbitrariedades do Estado.” (p. 457)

“Preso injustamente, deparou-se com o fato de eu somente debaixo das agruras do sofrimento o homem é capaz de analisar a si próprio e o que lhe ensinado. Fez uma análise crítica de si próprio, mostrando pelo seu exemplo o erro de nunca ter questionado as regras que lhe cercavam, precisando vivenciar os horrores de cárcere para conhecer a realidade do sistema penal injusto e desumano vigente, decidindo enfrenta-lo através do seu conhecimento adquirido pelos estudos anteriores à sua prisão. Demonstrou quão importante é basear nossas regras e conclusões em estudos científicos, análises e fatos.” (p. 457:458)

“Beccaria contribuiu para um dos grandes avanços do Direito que influenciou não somente os sistemas penais, mas todos os ordenamentos jurídicos: defendeu a legitimidade do poder de punir do Estado.” (p. 458)

“Sustentou ser contrário à pena de morte, fundamentando ser mais eficaz para a sociedade a substituição desta pela prisão perpétua, já que para alguns, a morte era rápida, ao passo que na prisão perpétua o sofrimento era duradouro e indeterminado.” (p.458)

“Na sua visão, os criminosos eram adversários da sociedade. Conceituou crimes graves como aqueles praticados contra os interesses da coletividade.” (p. 459)

“Cesare Bonesana estava no caminho correto para a evolução da humanidade. Sustentou que a prisão deveria ser a última ratio.” (p. 459)

“É considerado o maior propulsor do princípio da legalidade por criar teses que estabelecem critérios humanos e justos a respeito das leis e das penas – além de ser considerado o maior representante do sistema garantista em razão de ter construído um sistema protetor dos indivíduos contra o árbitro estatal.” (p. 460)

2.1 A influência de Beccaria no ordenamento jurídico brasileiro diante da dignidade da pessoa humana

“A reforma da parte geral do Código Penal pela Lei 7.209/84 incorporou normativamente o princípio da dignidade humana e seguiu as influências de Beccaria: humanizou-se as sanções penais, adotou-se penas alternativas de prisão, bem como reintroduziu o sistema de dias-multa e adotou-se o sistema vicariante para a aplicação das penas e alguns princípios estabelecidos por Beccaria.” (p. 461)

“A globalização acabou contaminando o sistema jurídico brasileiro, descriminalizando condutas que obstassem a eficiência econômica e adotando tipos penais que tutelam a maximização de riquezas.” (p. 463)

“No plano concreto, o sistema penitenciário peca pela inobservância da dignidade humana: a superlotação nas celas que, além de sujas, úmidas, anti-higiênicas, ainda possuem o “sistema de revezamento”, que consiste na condição de certo número de presos dormir sentado, enquanto outros revezam em pé, acordados; rituais pelos quais passam o indivíduo é a verdadeira degradação do ser humano em si, vez que ingressando na prisão, passa por todo um procedimento: inicialmente perde o próprio nome, perde todos os seus pertences pessoais e lhe é fornecido um uniforme padrão igual aos demais reclusos. Diante de tais fatos, o indivíduo acaba sendo socializado para a prisão e não ressocializando para a vida em sociedade; a prisão ajuda o preso a perder, com o tempo, a pouca dignidade que lhe resta, funcionando como verdadeiras “fábricas do crime”.” (p. 463:464)

“A base naval da Guantánamo pode ser comparada a um hotel cinco estrelas perto da precariedade das nossas prisões. Todos têm direito a três refeições diárias, chinelos e um exemplar do Alcorão.” (p. 465)

“A prisão de Guantánamo é de fazer inveja ao sistema carcerário brasileiro pelo fato de seus detentos possuírem melhores condições carcerárias ainda que submetidos às regras do sistema do Direito Penal do Inimigo.” (p. 465)

“A Lei 9.099/1995 merece maior destaque por conter medidas despenalizadoras: a composição civil e a transação penal. Constatou-se que muitos fatos delituosos solucionados consensualmente, diminuindo sensivelmente o acúmulo de processos no Poder Judiciário, tanto em primeiro quanto em segundo grau.” (p. 466:467)

“Um dos maiores méritos desta Lei foi o redescobrimento da vítima, valorando-a através da reparação dos danos causados pelo autor; abriu espaço para a adoção de sanções alternativas à pena privativa de liberdade de maneira mais eficiente do que a aplicação daquelas penas alternativas inseridas na parte geral do Código Penal na hipótese de qualquer renúncia penal diante da reparação de danos.” (p. 467)

 

2. GÜNTHER JAKOBS

“O autor sustenta duas grandes teorias causadoras de grande polêmica na atualidade, principalmente nos países latinos: a teoria da imputação objetiva e o Direito Penal do Inimigo, sendo o responsável pela elaboração desta última.” (p. 467)

“Seguindo Niklas Luhmann, concebe o Direito Penal como um sistema normativo fechado, autopoiético e limita a dogmática jurídico-penal à analise normativo-funcional do Direito positivo com a exclusão de considerações empíricas não normativas e de valorizações externas ao sistema jurídico-positivo, levando em conta apenas as necessidades sistêmicas, ajustando-se a essas o Direito Penal.” (p. 468)

“Para Jakobs a imputação objetiva antecede a imputação subjetiva; defende a permanência da causalidade natural no campo da responsabilidade criminal, razão pela qual possui a função de restringir o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado produzido e, sob o fundamento de que o papel do homem está vinculado a papéis sociais individuais já estabelecidos, desenvolve quatro instituições jurídico-penais sobre as quais é analisada a teoria da imputação objetiva, sustentando a sua ausência mediante quatro princípios: (a) princípio do risco permitido; (b) princípio da confiança; (c) proibição do regresso; (d) competência ou capacidade da vítima.” (p. 468:469)

“Em suma, na visão de Jakobs somente importa a ciência dos indivíduos sobre os limites do comportamento nos quais não poderão ser ultrapassados.” (p. 469)

3.1 Direito Penal do Inimigo

“Modelo de sistema penal que comprova ser verdadeira a frase: “quando o homem não luta por necessidade, luta por ambição”.” (p. 469)

“O Direito Penal do Inimigo frente a tais acontecimentos ganha cada vez mais espaço nas legislações mundiais. Também conhecido como modelo “tolerância zero”, caracteriza-se em um verdadeiro “Direito Penal máximo”, cuja marca é o excesso de severidade, a incerteza e imprevisibilidade de condenações e penas de réus, sob o fundamento de que nenhum culpado pode ficar impune, ainda que se tenha de sacrificar certos inocentes.” (p. 470)

“A finalidade do Direito Penal do Inimigo é a de detectar e separar os “inimigos” dos cidadãos comuns dentro de um mesmo sistema normativo penal, sendo ambos regidos por regulamentos jurídicos distintos: de um lado estão os “cidadãos” e as normas que devem a ele ser aplicadas, com garantias penais e processuais respeitadas e possuindo todos os direitos do homem livre a ele assegurados após o cárcere; do outro lado, estão os “inimigos”, com a sua regulamentação jurídica diversa do “cidadão”, considerando uma fonte de perigo para a sociedade, possui tratamento igualitário ao combate de guerra, inexistindo o direito de ser um cidadão após a sua prisão, pouco importando se o indivíduo praticou ou não algum delito.” (p. 471)

“Jakobs defende que a realidade atual das sociedades em geral, deve ser refreada, sustentando a legitimidade desta teoria, sob três fundamentos: (a) o Estado te legitimidade de aplicar institutos válidos contra aquele que ameaçam a segurança deste e da sociedade; (b) os cidadãos têm o direito de exigir do Estado medidas eficazes que assegurem a ordem social; (c) teoria da prevenção geral negativa da pena que possibilita a neutralização e até mesmo a eliminação de indivíduos considerados delinquentes. Inserida nessa teoria, a pena de prisão tem duplo significado: o Direito Penal Simbólico que asseguram a segurança social e o surgimento do positivismo.” (p. 472)

“No sistema do Direito Penal do Inimigo, o indivíduo eleito “inimigo” sequer tem o direito de ser cidadão após a prisão: é um ser sem identidade, sem direitos. Desta maneira, percebemos que o Direito Penal do Inimigo insere mais um fator negativo no ser humano após o cárcere: faz dele um “não humano”, contraditoriamente livre e inexistente, porém, sempre aprisionado – dentro de si mesmo.” (p. 473)

 

4. DO ONTOLOGISMO DE BECCARIA AO NORMATIVISMO DE JAKOBS E OS IMPACTOS DESTA TEORIA ANTE A DIGNIDADE HUMANA

“O Sistema Clássico surgiu no ano de 1900 e foi construída a teoria naturalista ou causalista da ação. Deu ao Direito uma posição normativista e formal, respeitando sob todos os aspectos a segurança jurídica e o princípio da legalidade.” (p. 473:474)

“O Sistema Neoclássico também adotou a teoria naturalista da ação. Enquanto o Sistema Clássico atribuía prioridade ao “ser” do Direito, este sistema propõe um conceito de ciência Jurídica que valoriza o “dever ser” do Direito, mediante considerações axiológicas e materiais.” (p. 474)

“O Sistema Finalista retira do estudo do Direito Penal a ideia de que o cidadão é um criminoso habitual e traz a ideia de um indivíduo que assume compromissos sociais.” (p. 474)

“O Sistema Funcionalista surgiu com a finalidade de superação da ideia de Direito Penal como ciência de estudo das intenções do agente, porém, com a ideia de ciência e com a função específica de manter o Estado escolhido pela sociedade, através da funcionalidade e eficácia do sistema social, tendo a visão do Direito Penal como um regulador de desvios. Consequentemente, a conduta deixou de ter um conceito ontológico para ter um conceito normativo, não necessitando que esta seja um produto natural, mas assim deve ser aquela que o legislador determinar.” (p. 474)

“Jakobs ao propor a reformulação da teoria do crime, transformou-a em teoria da imputação. Dessa maneira, foi possível o normativismo puro e radical de Jakobs defender o Direito Penal do Inimigo. A cidadania e a pessoalidade transformaram-se em conceitos axiológicos e foi através do conceito normativo e axiológico da conduta que a dignidade humana simplesmente desapareceu, ingressando a norma ao ordenamento jurídico com efeitos erga omnes, ocorrendo o fenômeno denominado “normatização do juízo valorativo” (p. 474:475)

“Os efeitos dessa transformação são drásticos por destruir completamente as teses de Beccaria e a dignidade humana até então conquistadas.” (p. 475)

“É o mundo penal do sistema desenvolvido por Jakobs. Transforma o humano em “não humano”; é aquele que aplica uma sanção para uma “coisa”, apegando-se nos detalhes dos conceitos.” (p. 477)

4.1 A existência e as consequências do Direito Penal do Inimigo na sociedade e no ordenamento jurídico brasileiro

“A aplicação do Direito Penal do Inimigo somente traz malefícios para as camadas mais baixas da sociedade, lado da sociedade mais sacrificado em face deste modelo penal.” (p. 480)

“O efeito da Globalização gerou enorme desproporcionalidade entre crimes cometidos pela minoria privilegiada e pela grande maioria populacional. O contexto é desproporcional: na hipótese de crime de furto simples, a reparação do dano antes do recebimento da denúncia acarreta no instituto do arrependimento posterior ao agente, ao passo que o indivíduo que pratica um crime contra a ordem tributária poderá efetuar o pagamento do tributo não recolhido em qualquer momento processual, acarretando na extinção da punibilidade.” (p. 483)

 

5. CONCLUSÃO

“O Direito Penal do Inimigo é um Direito Penal do Autor, ou seja, o sujeito é punido pelo que ele “é” ferindo o princípio da exteriorização do fato e da culpabilidade;” (p. 484)

“Fere o princípio da proporcionalidade, vez que não descarta a ideia de que as penas sejam desproporcionais – ao contrário -, como se pune a periculosidade do agente, a proporcionalidade da pena em relação ao delito é secundária;” (p. 484)

“É produto de um Direito Penal simbólico somado ao Direito Penal punitivo, cuja característica é a antecipação exagerada da tutela penal que viola os princípios da legalidade e da presunção de inocência;” (p. (484)

“Se o Direito Penal somente pode ser aquele vinculado com a constituição Democrática, conclui-se que o Direito Penal do cidadão é um pleonasmo, enquanto o Direito Penal do Inimigo é uma contradição em razão deste ser um “não Direito”, inconcebível dentro de nosso regramento jurídico;” (p. 485)

“Ao diferenciar cidadãos de inimigos, o Direito Penal do Inimigo viola o princípio da igualdade no âmbito do pilar constitucional da dignidade humana;” (p. 486)

“A melhor solução para que seja refreado o Direito Penal do Inimigo reside na implantação de uma política pública séria e eficaz, de abordagem multidisciplinar. Medidas preventivas e eficazes podem ser citadas, também para fins de diminuir a criminalidade: (a) neutralização de crimes através de programas ecológicos e territoriais; (b) luta contra a pobreza e desigualdade social; (c) investimento na prevenção primária do crime; (d) implantação de programas de reinserção do recluso à sociedade, sendo o regresso no mercado de trabalho um dos maiores aliados para tanto; (e) programas que objetivam eliminar valores criminógenos e que insistem permanecer nas regras éticas e morais da sociedade.” (p. 487)

“O legislador ordinário deve, com a humildade de todo o ser humano que assume seus erros, aprender com os mesmos. Conhecer a realidade é imprescindível para a elaboração de normas, assim como abolir condutas cujos bens juridicamente tutelados pelo Direito Penal deixaram de ser importantes para a sociedade faz com que um ordenamento seja mais sintético e eficaz, vez que somente aqueles bens que são imprescindíveis para esta e que não cabe à outra esfera solucionar serão tutelados pela esfera penal, cumprindo assim, o Direito Penal o seu papel de última ratio, contribuindo para a sua efetiva evolução.” (p. 488)

“O mais importante é que o legislador tenha como norte os princípios constitucionais existentes, dando a liberdade para o legislador inserir princípios no ordenamento penal que não estão inseridos na Lei Maior, desde que se encontrem em perfeita harmonia com a mesma.” (p. 488)

“Os magistrados possuem os principais mecanismos tanto para que o Direito Penal do Inimigo não encontre espaço para filtrar-se no nosso regramento jurídico penal quanto para retirá-lo se observado no ordenamento.” (p. 488)

“Poderá o magistrado retirar a dignidade da pessoa humana do plano abstrato e coloca-la no plano concreto: agindo dessa maneira, finalmente poderemos enxergar a dignidade humana sendo aplicada no seu verdadeiro sentido: a dignidade histórica, racional, originária da nossa sociedade e dos nossos valores.” (p.489)