O conceito de democracia no Brasil aparece apenas, segundo o autor, associado a dois períodos: democracia coroada, no Segundo Império (1840-1889) e democracia populista, no pós-guerra (1945-1964). "Mais recentemente (...), o novo modelo proposto pelos mentores da "abertura política" se autoproclamou "democracia relativa"." (p.47) Para Trindade, a discussão sobre democracia no Brasil tem sido uma preocupação recente e há pouca bibliografia a respeito, sendo que a maioria foca mais as "bases do autoritarismo" do que as "bases da democracia".

Partindo desse enfoque, Trindade pretende entender por que o liberalismo brasileiro não evolui, exceto em alguns períodos de transição, numa direção democratizante, inicialmente comparando o processo de construção do Estado com a dinâmica liberal brasileira e argentina e finalmente discutindo a questão do liberalismo em si.

A questão do liberalismo na América Latina tem sido insuficientemente analisada. "A maioria das análises (...) interpreta o liberalismo como uma manifestação puramente decorativa, fruto do modismo ou mimetismo intelectual" (p.50) de ideários inglês, francês ou americano.Deixou-se de considerar um dos traços fundamentais da política brasileira, o hibridismo institucionalizado (instituições liberais que se preservaram sob a hegemonia do autoritarismo).

O estabelecimento do Estado nas sociedades periféricas, especificamente na América Latina, foge ao modelo clássico. As consequências disso são que, além da função decisiva do Estado, a elite nacional é "filha" de um Estado que não é a síntese da sociedade civil existente, ao contrário é o agente de uma síntese numa sociedade profundamente heterogênea.

A formação do Estado nacional depende da estratégia de integração da elite política e do processo de estruturação econômica. Na Argentina deu-se de forma tardia devido a uma indecisão na constituição do centro e penetrou pela sociedade de forma lenta. No plano da dinâmica liberal, o ritmo de expansão da arena política foi mais forte e amplo, ocorrendo o mesmo com a ampliação da competição em termos de expansão da cidadania. A organização da economia produziu efeitos significativos sobre a distribuição territorial. No caso argentino, essa articulação foi relativamente restrita e isso tem, assim como a frouxa e descentralizada ligação com a Espanha e o longo e conflitivo processo de unificação nacional, efeitos sobre a formação do Estado argentino.

No Brasil, a formação do Estado nacional consolidou as estruturas monárquicas oriundas da colonização, baseadas na oligarquia agrícola, o que favoreceu a centralização precoce primeiro com o poder moderador no Império, depois com o federalismo na república. A respeito da dinâmica liberal, se desenvolveu de forma mais lenta e restrita, apenas entre as décadas de 1920 e 1930, assim como a ampliação da competição em termos de expansão da cidadania.No Brasil, o aparato administrativo colonial era mais complexo e transmitiu-se de forma pacífica, sendo que a diversificação da economia brasileira favoreceu a complexidade e rapidez da configuração estatal.

Todavia, variações no processo de independência e estabelecimento de uma unidade nacional não se explicam apenas pelo passado colonial, mas também por uma série de fatores do período pós- independentista. O Brasil conquistou sua independência rapidamente, derrotando movimentos emancipacionistas e deu continuidade a administração colonial, o que produziu a manutenção de sua unidade e legitimação do governo, enquanto que na Argentina transcorreu uma década entre o início e o fim do movimento de independência e houve uma descontinuidade no processo administrativo, o que gerou uma fragmentação territorial e minou a legitimidade de qualquer ordem política.

As diferenças entre os processos políticos brasileiro e argentino tornam-se mais nítidas se agregarmos três outros fatores que tiveram influência decisiva no ritmo de implantação do Estado: perfil básico da classe dirigente e seu papel na constituição de um aparato estatal, relações entre construção do Estado e desenvolvimento de formas de controle coercitivo sobre a sociedade e, por fim, maior ou menorintegração entre Igreja e poder político.

Da mesma forma, podem-se comparar as diferenças na dinâmica liberal através da análise de uma relação entre a penetração do Estado e o desenvolvimento da competição política. No Brasil, a penetração ampla e outros fatores como a formação de oligarquias e ausência de camadas médias organizadas tiveram um peso importante na incapacidade, até a década de 30, de institucionalização de formas de participação política e social da sociedade civil. Na Argentina, ao contrário, houve a emergência precoce da mobilização política e social que possibilitou uma participação política que superou o liberalismo oligárquico, o que provavelmente está ligado a uma expansão e intervenção mais limitada do Estado.

Na ótica da política brasileira, para se ter um Estado liberal é necessário primeiro que se tenha um Estado nacional. Para os argentinos, a meta é edificar um Estado nacional que seja, ao mesmo tempo, liberal e é essa diferença que permitiu a Argentina produzir precocemente as condições de emergência de um regime liberal democrático. Este contraste, todavia, não impede que na década de 30 se altere paradoxalmente o curso do processo político.

"No Brasil as primeiras pressões democratizantes buscando alterar a ordem liberal excludente se desencadeiam apenas na década dos 20, quando se inicia a crise da República Velha, que, com a Revolução de 30, submerge no centro de suas próprias contradições." (p.60) O sufrágio se torna secreto e quase universal, inclusive com a introdução do voto feminino. Entretanto, a experiência dura pouco, menos de uma década. Estabelece-se uma situação de crise que legitima o golpe militar, e instaura o Estado Novo, completamente autoritário e centralizado.

O Brasil possui dois traços básicos de interação Estado- sociedade civil, ambos bloqueadores do desenvolvimento democrático: a expansão do controle estatal e a atitude persistente das elites políticas de dissuadir as formas de participação de tipo liberal-democrático. Nas diferentes fases da evolução do sistema político, os arranjos entre Estado e elite e as formas de controle do Estado se diversificam e se consolidam.

No Império, o desafio era a integração nacional das forças regionais, tornando-se a formação de um sistema político estável a maior preocupação da classe dirigente. A agregação dos interesses forma facções que se tornam partidos mais tarde. Com a República, estabelece-se o federalismo que funciona a partir de relações do presidente com os estados através da "política dos governadores" e dos estados com os municípios, através do "arranjo coronelístico".

O modelo entra em colapso e eclode a Revolução que leva à ascensão de Vargas. Dirigindo-se para uma república populista que tem o desafio de definir um novo modelo capaz de substituir o oligárquico decadente, a Era Vargas se elabora pela via estatal sob proteção do estamento militar, modernizando a economia, reestruturando de forma mais autônoma as relações com as oligarquias regionais, definindo formas de representação dos novos interesses industriais e da organização corporativa do sindicalismo. A elite agrária não perde seu poder, mas perde sua exclusividade, passando a dividi-lo com as elites industrializantes.

A urbanização e industrialização abrem novas perspectivas aos militares, que adquirem perfil de "corporação e classe controladora". Essa situação se consolida com o golpe de 1937, quando ocorre uma simbiose Exército- Estado. Apesar das divergências, os militares eram, no geral, anti-rurais e antiestados.

Constata-se que o controle do Estado pela classe dominante rural, mesmo com a passagem de um regime para outro e com a introdução de mão de obra livre na produção de café (que repercutiu também na urbanização), praticamente não se altera até a década de 30. "Como explicar", então, "que, numa sociedade em que prepondera um secular autoritarismo social e político, coexistam instituições e práticas liberais?" (p.66) Estudos recentes mostram que, "mais do que uma importação cultural", o ideário liberal "correspondia a certos interesses e aspirações reais das elites brasileiras desde a época anterior à Independência". (p.66) No Brasil, o liberalismo se preocupa com a necessidade de uma ordenação do poder nacional, porque nasceu em virtude da vontade do próprio governo, não por uma revolução e "se revelou instrumental no processo político econômico do país" (p.68).

A idéia subjacente a concepção liberal é de que "tudo deveria ser feito para o povo, mas nada pelo povo". Há também um fundamento religioso: ao contrário do Estado anglo-saxão que existia para garantir aos homens a fruição de suas propriedades, para a política luso-brasileira, segundo preceitos católicos, a acumulação era uma função do Estado, que passava a exercer o papel de protetor da sociedade. (Baretto)

"Apesar das disposições liberais dos republicanos e do avanço que representou a expansão da representação e participação política, não seria excessivo insistir que o exercício do liberalismo no Brasil foi bastante condicionado pela dominação econômica das elites agrárias. Esta observação torna-se ainda mais significativa quando se compara a lentidão e atraso da "dinâmica liberal" no Brasil com a experiência liberal-democrática ocorrida na Argentina." (p.68)

Para Santos, que é citado pelo autor, no Brasil há uma tendência à centralização, mas ele conclui contraditoriamente que o autoritarismo poderia ser a maneira mais rápida de conseguir edificar uma sociedade liberal e que isto feito, o caráter autoritário seria questionado e abolido. Mas o que explicaria, então, sua longa vigência no Brasil?

"A singularidade do sistema político brasileiro é sua persistente hibridez ideológica e institucional, combinando estruturas e práticas autoritárias liberais." (p.70) Há uma alternância de dominação e surtos de expansão liberal, geralmente frustrados por crises políticas e instabilidades cíclicas. Nesse raciocínio, entende-se que ideologias liberais estabelecem entraves a consolidação do autoritarismo e este, por sua vez, define limites aceitáveis de democracia política.

O autor observa que se deve tomar cuidado com o uso indiscriminado do termo "autoritarismo" e, no sentido de uma democracia relativa, acredita na possibilidade de admitir-se o termo autoritarismo liberal.

Por fim conclui que, "na compreensão da lógica liberal que coexiste persistentemente com uma práxis autoritária, encontra-se o segredo da dialética do sistema político brasileiro no passado e no presente." (p.72)

TRINDADE, Hélgio (1985). Bases da democracia brasileira: lógica liberal e práxis autoritária (1822/1945), in ROUQUÉ, LAMOUNIER e SCHVARZER (orgs), Como renascem as democracias. Ed. Brasiliense.