Fichamento: "A Ruptura"
BOURDIEU, Pierre. "A Ruptura" in: Ofício de Sociólogo. Petrópolis: Vozes, 2004. P. 23-44.
Introdução
Bourdieu trata do assunto da ruptura com o senso comum na Sociologia, porque enxerga a dificuldade dessa separação nas "ciências dos homens" devido à familiaridade do cientista com o objeto de estudo.
1- O fato é conquistado contra a ilusão do saber imediato
As noções comuns que se tem sobre um fato são superficiais, não têm autoridade para explicar este fato, pois são "esquemáticas e sumárias", formadas pelo e para o sistema.
Esta "(...) influência das noções comuns é tão forte que todas as técnicas de objetivação devem ser utilizadas para realizar efetivamente a ruptura(...)" (p. 24)
Uma crítica das noções, bem como da linguagem comum é indispensável para elaboração de noções científicas.
A apreensão do fato inesperado pressupõe uma atenção metódica, além de pertinência e coerência nas indagações. O ato da invenção que conduz à solução de um problema deve quebrar as relações aparentes para fazer surgir um novo sistema de relações.
A análise estatística contribui para tornar possível a construção de novas relações, pois impõe a busca por relações de natureza superior que justificam as totalidades, colocando critérios mais objetivos.
1.2- A ilusão da transparência e o princípio da não consciência
A Sociologia só pode constituir uma teoria separada do senso comum se opuser a resistência de uma teoria do conhecimento do social cujos princípios contradizem os pressupostos da "filosofia primeira do social". Em suma, a ilusão da transparência nos leva a acreditar que a explicação para os fatos sociais é aquilo que facilmente se vê, entretanto, Bourdieu cita os clássicos da Sociologia para mostrar que as explicações provêm de causas profundas que escapam à consciência.
Tendo dito isto, a função do princípio da não-consciência é demonstrar que a ciência (cita mais especificamente a antropologia) não é reflexiva e ao mesmo tempo definir as condições metodológicas que a tornem ciência experimental.
O autor fala que algumas vezes a sociologia espontânea aparece em meio a sociologia erudita porque alguns sociólogos não querem retirar do indivíduo sua capacidade de ação, deixando de perceber o sistema completo das relações nas quais e pelas quais as ações ocorrem. Sobre isso o autor diz:
Não é a descrição das atitudes, opiniões e aspirações individuais que tem a possibilidade de proporcionar o princípio explicativo do funcionamento de uma organização, mas a apreensão lógica objetiva da organização é que conduz ao princípio capaz de explicar, por acréscimo, as atitudes, opiniões e aspirações. (BOURDIEU, P., 2004, p. 29)
1.3- Natureza e cultura: substância e sistema de relações
Bourdieu alerta para o problema de se utilizar ingenuamente de critérios de análise naturais, trans-históricos ou transculturais "cuja eficácia poderia ser apreendida independentemente das condições históricas e sociais que os constituem em sua especificidade" (BOURDIEU, P., 2004, p. 30) para explicar fatos sociais, caindo no erro de deixar escapar especificidades históricas ou originalidades culturais.
1.4- A sociologia espontânea e os poderes da linguagem
A sociologia tem uma dificuldade particular em decorrência da relação particular que se estabelece entre as expressões e experiências eruditas e ingênuas. Por isso, o autor acredita que não basta perceber a ilusão de transparência e adotar princípios para romper com os pressupostos, pois há o problema da linguagem corrente que passa despercebida e inevitavelmente é utilizada pelo sociólogo.
Tendo isto em vista, o sociólogo deve submeter as palavras e metáforas que utiliza a uma crítica metódica, com intuito de evitar a contaminação das noções com as prenoções, da sociologia erudita pela sociologia espontânea.
1.5- A tentação do profetismo
O sociólogo, por falar daquilo que é humano, está sujeito aos julgamentos dos indivíduos, afinal, cada um se sente um pouco sociólogo. Brourdieu alerta para o perigo de o sociólogo tornar-se profeta social para atender a demanda de seu público, não passando de sistematização da sociologia espontânea. Para exemplificar, o autor cita uma frase de Marx, que diz que as belas fórmulas literárias que organizam tudo, a primeira vista parecem engenhosas, mas quando repetidas revelam-se idiotas.
1.6- Teoria e tradição teórica
Bourdieu demonstra que a ciência deve estar sempre sujeita a ruptura, pois só assim poderá progredir. Entretanto, essa é uma tarefa árdua na sociologia, visto que não se tratam de teorias construídas de forma consciente e axiomática, mas de tradições teóricas, que o autor chega a comparar à tradição dos textos canônicos, que os teólogos ou canonistas compilavam. Em suma, a teoria "nunca deixa de ser a reelaboração indefinida dos elementos teóricos artificialmente extraídos de um corpo escolhido de autoridade". (BOURDIEU, P., 2004, p. 40)
Por isso, muitas vezes o sociólogo deixa de tratar de temas relevantes ou trata de apenas alguns temas devido àquilo que a tradição teórica vem abordando. A ruptura com tais tradições não passa de um caso particular de ruptura com a sociologia espontânea.
1.7-Teoria do conhecimento sociológico e teoria do sistema social
A representação tradicional da teoria e a representação positivista têm em comum a qualidade de desapossar a teoria de sua função primordial, garantir a ruptura conduzindo ao sistema capaz de justificar quaisquer incoerências ou lacunas que surjam no sistema de leis estabelecidas.
Alguns teóricos excluem a possibilidade de teorias regionais, confinando a pesquisa ao "tudo ou nada", a uma teoria universal. Segundo o autor, devemos dissipar essa confusão encorajada pelos autores da tradição do século XIX, "para termos possibilidade de reconhecer (...) a convergência das grandes teorias clássicas em relação aos princípios fundamentais que definem a teoria do conhecimento sociológico como fundamento das teorias parciais". (BOURDIEU, P., 2004, p. 43)
Bourdieu cita uma frase de Keynes que diz que a teoria econômica não fornece conclusões estabelecidas e imediatamente aplicáveis, mas trata-se de um método, uma técnica de pensamento que leva a tirar conclusões corretas. Da mesma forma, a sociologia é o "princípio gerador das diferentes teorias sociais" (BOURDIEU, P., 2004, p. 43) e não deve ser confundida com uma teoria unitária.
Conclusão
Pierre Bourdieu apresenta em seu livro "O ofício do sociólogo" uma teoria prática da Sociologia, sempre com intuito de levar o cientista social a buscar uma atitude científica, que implica na utilização de procedimentos metodológicos, tais como o contínuo questionamento, a ruptura com o senso comum e com a tradição. O autor é muito cuidadoso em alertar sobre as dificuldades do ofício, como a tentação do profetismo, a ilusão de que o que explica um fato é aquilo que se vê, a tendência de utilizarmos vocabulários do senso comum sem o devido cuidado, entre outros aspectos.
O texto é bastante prolixo, todavia, traz informações que algumas vezes nos parecem óbvias, mas são bastante preciosas para o desenvolvimento das "ciências do homem", pois apesar de parecerem estar se tornando intrínsecas à pesquisa das ciências sociais, muitas vezes são esquecidas ou simplesmente ignoradas.